Assim ou ...nem tanto. 105
O Ovo
Era o começo. Senti as paredes curvas, a boca nos joelhos, as mãos a alisar a pele das coxas e uma vontade enorme de alargar aquele espaço acanhado onde, milímetro a milímetro, eu cabia exatamente sem folga alguma. Se respirasse não caberia. E vi, uma vez mais o rio vermelho do meu sangue percorrer as artérias mais superficiais, azular-se nas veias, sobressair nos vasos que volteavam porque era curto o espaço para tanta vontade de andar. E senti crescer o corpo como se ao desdobrar toda a sua potencialidade o lugar tivesse de quebrar-se abrindo brechas de luz coada por finas peles residuais. Já não precisava delas tão apto me sentia para experimentar a novidade, o desabrigado do mundo, a força que me nascia da anterior dolência, sono que me teve calmo todo o tempo da gestação. E, por fim, desenrolando pernas e mãos, patas e asas, abri com a boca-bico a casca e nasci. Adivinhei-me com o corpo húmido, as penas ainda enquistadas na sua forma mais primária e aqueci-me ao sol ainda desamparado neste misterioso nascer. Decidira ser, desta vez, pássaro e nascer outra vez para que o início pudesse apagar o anterior caminho, desvanecer cicatrizes, esquecer do que tanto sujara a minha alma humana. E olhei com olhos turvos, o mundo azul e verde, as pedras altas, a serra a correr pela encosta e tive medo de cair. Regredir já não podia, cresci tanto que o ovo me seria pequeno. E esperei. No fim do tempo, empurrado por mãos invisíveis, a meio da queda, voei. E o voo levou o meu corpo à casa velha, à tua cama desfeita, à tua boca cheia de palavras e música, de ternura que havia esquecido no sonho e decidi aceitar-me como homem. O teu homem.