O Massacre do Melão
"Esta é uma história que para muitos poderá parecer uma invenção", começou o moço com camisa de quadrinhos azuis e bermuda meio rasgada que estava ao meu lado no ônibus, "mas é a mais pura verdade. Sei que ninguém vai acreditar em mim, mas não posso mais viver com a verdade entalada na garganta".
Ele falava olhando fixo para a frente, não olhou nem uma vez na minha direção, assim que eu fingi que não tinha ouvido. Ele contou então uma das histórias mais ridículas que eu já ouvira, mas de tão louca ficou grudada na minha cabeça. Ele continuou falando:
"O dia em que tudo aconteceu começou como qualquer outro. Minha mãe acordou bem cedo e foi preparar o café enquanto meus irmãos e eu fazíamos as camas e tomávamos banho. Eu ainda era moleque, mas me lembro de tudo como se tivesse sido ontem. Minha mãe deixou o café na garrafa térmica e foi à cozinha pegar a manteiga, o pão e as frutas que sempre comemos de manhã. Esse dia levou à mesa um belo melão que tinha comprado na feira o dia anterior.
Tudo normal, meus irmãos como sempre fazendo bagunça, minha mãe gritando comigo por demorar muito em descer para tomar o café. Eu estava no meu quarto, terminando de colocar minhas coisas na mochila, quando escutei um grito que me arrepiou todo. Era um grito de minha mãe, mas não de briga. Foi um grito de puro terror. Eu larguei minha mochila no chão e desci correndo as escadas, parecia que tudo se desenrolava em câmera lenta, as escadas nunca acababam, aos gritos da minha mãe se juntaram os gritos dos meus irmãos.
Finalmente cheguei ao primeiro andar, e fui correndo à copa, que ficava do outro lado da sala, na parte de trás da casa. Enquanto eu ia ouvia os gritos cada vez mais agudos, e um barulho de copos quebrando e cadeiras sendo arrastadas. Quando cheguei à porta da copa fiquei parado como uma estátua pela cena chocante que eu vi. Até hoje não consigo dormir direito, sempre sonho com essa cena.
Minha mãe e meus irmãos estavam atrás da mesa, minha mãe segurava um prato grande para se defender, um dos meus irmãos, uma criança de oito anos, segurava nas mãos trêmulas a faca que minha mãe usava para fatiar as frutas. E no meio da sala, flutuando no ar como se isso fosse a coisa mais normal do mundo, estava o melão que minha mãe tinha comprado. Mas não estava só flutuando. Um dos lados, que imagino minha mãe tinha começado a fatiar, estava escancarado como uma boca horrível, as sementes alinhadas como dentes terríveis prontos a morder. Meu irmão menor chorava de terror, estava ensanguentado, e vi que no braço tinha marcas de mordida.
O melão estava chegando perto da minha família e produzia uns ruídos esquisitos, como uivos, como se ao sugar o ar por entre os dentes-semente estes vibrassem. As fibras que normalmente mantêm as sementes juntas estavam para fora da boca da fruta, como um língua porosa que se aproximava da mão trêmula do meu irmão, o qual não conseguia firmá-la para se defender com a faca, que a mala pena empunhava.
Minha mãe viu que eu cheguei e implorou por ajuda, e suas palavras me acordaram do choque em que estava. Eu entrei correndo e peguei o primeiro que vi pela frente: uma cadeira. Mas o melão "viu" o que eu estava fazendo e virou-se na minha direção. Eu peguei a cadeira pelas pernas e com o encosto tentei bater no melão, que me parecia ter o triplo do tamanho do dia anterior. Minha mãe aproveitou para sair de trás da mesa e correr para a cozinha junto com meus irmãos mais novos.
Entretanto o melão conseguiu evitar o meu golpe e com um movimento no ar conseguiu ficar do lado da minha cabeça. Com um sibilo que saiu dessa boca terrorífica, ele voou para cima da mim e me mordeu na testa. O sangue começou a jorrar, caindo nos meus olhos e ofuscando-me a visão. O melão então se pendurou na minha orelha e se mexeu de um lado ao outro, com os dentes-semente penetrando cada vez mais forte na minha carne, até que senti a cabeça leve. Limpei-me os olhos do sangue e vi, com o terror correndo pelo meu corpo inteiro, o melão de frente a mim, fechando e abrindo a boca, como mastigando o que, ao pousar a mão na minha orelha, descobri ser um pedaço dela. O sangue saía da minha testa e da minha orelha, e a minha cabeça começou a girar (Nesse ponto eu já estava tão concentrada na narração que, como para confirmar, com o canto do olho tentei ver a orelha do rapaz, mas seus cabelos compridos ma ocultavam à vista).
Com a visão borrada pela perda de sangue e ofuscada pelo sangue da minha testa, vi que melão ainda não se contentara e estava tornando ao ataque. Com as forças que me restavam arrastei os pés em direção à mesa para ver se conseguia agarrar uma faca ou algo para atacar essa maldita fruta, mas ela foi mais rápida que eu: deu meia volta e me atacou por trás. Senti uma dor intensa no ombro, e desesperado bati nele com a mão, para tentar arrancar o melão da minha carne. A cabeça rodopiava cada vez mais, e do nada me vi no chão; nem senti quando cai. Como estava de costas, aproveitei e me mexi de um lado ao outro para ver se amassava o melão, ainda pendurado do meu ombro esquerdo. Ele emitiu grunhidos e silbidos que pareciam saídos dos infernos, e que me deixaram meio surdo, mas não largou a presa. Eu pressionei com todas as forças, e finalmente o desgraçado soltou meu ombro, rodou no chão para sair de baixo de mim e se elevou de novo no ar. Esta vez atacou de novo minha cabeça, mordendo de novo a testa, a outra orelha, as bochechas. Eu só sentia o sangue escorrer, estava cada vez mais fraco.
Não sei em que momento perdi a consciência, nem quanto tempo fiquei no chão, inconsciente. Quando acordei a casa estava em silêncio. Com uma sensação de angústia invadindo-me o peito levantei-me como melhor pude e fui correndo à cozinha. Da minha família não havia sinais. As janelas estavam todas quebradas, a porta que dava pro quintal estava escancarada, batendo cada vez que o vento soprava. No chão havia manchas de sangue. Meu sangue congelou quando vi um pedaço do que parecia ser um dedo ao lado do fogão. Gritei com todas as forças por ajuda, gritei o nome dos meus irmãos, chamei a minha mãe. Mas só houve silêncio. O melão também havia desaparecido. Eu corri para a rua e chamei os vizinhos, mas ninguém quis abrir a porta. Agora que penso deviam ter ficado assustados, pois eu estava coberto de sangue e caminhava como se estivesse bêbado. Entrei de novo na cozinha e liguei para a polícia. Quando eles chegaram e me viram nessas condições, me prenderam na hora. Nem quiseram ouvir explicações."
Nesse ponto o moço calou-se, e olhou um tempo pela janela. Eu estava ansiosa por saber o fim do relato, e estava nervosa pois o ponto em que deveria descer se aproximava. Ele fechou os olhos. Eu já me resignava a ficar com a história inconclusa quando ele começou a falar, ainda de olhos fechados. Disse o seguinte:
"Esse melão acabou com minha vida. Matou minha família. A polícia me deteve quase um mês enquanto procuravam a minha mãe e meus irmãos, me perguntavam onde tinha escondido os corpos. Eu contava uma e outra vez o que aconteceu, dizia que não tinha sido eu, que eu estava morrendo de dor de não achar a minha família viva. Eles não acreditaram. Mas não acharam provas de que eu tivesse matado eles, então tiveram que soltar-me. Eu voltei correndo ao meu lar, mas as pessoas já tinham acabado com tudo. Deixaram só as paredes, o resto levaram embora, até as portas e as janelas. Não tinha mais como saber o que tinha acontecido com minha família. Eu chorei quase um mês. Não queria saber de comer, de viver. Mas a vida não quis me abandonar. E aqui estou, ainda procurando saber se minha mãe ou meus irmãos, quem sabe todos, estão bem. Maldito melão...!"
Ele ficou em silêncio outra vez. Até o momento em que desci do ônibus ele não abriu boca, nem voltou a abrir os olhos. Eu estava comovida pelo seu relato. E depois, caminhando de volta à casa desde o ponto de ônibus, me atravessou um arrepio, enquanto eu caía na conta: ainda ninguém tinha caturado o melão assassino!!