Chuva De Sangue
“Nesta Floresta vivia um Demônio solitário e cruel
que se alimentava da alma humana
inclusive as dos soldados
que batalharam sozinhos numa guerra de fel
esperando o dia que voltariam para as suas esposas
e nunca voltaram
afundando-se na areia movediça e seu amaldiçoado mausoléu.”
Eu olhei para trás e dei alguns passos. Virei-me e corri, mas não pude sair. Era como andar em círculos tortuosos a cada minuto que desejava sair daquele lugar agourento, gélido e escuro. Não tinha saída exceto se eu entrasse e percorresse todo o caminho.
Em toda a minha experiência com este lugar, isso nunca aconteceu. Eu podia muito bem sair correndo e negar entrar, embora o desafio estivesse iminente. Eu sempre fugia da boca da floresta e caso entrasse, saía. Naquele momento, todavia, a impaciência era gritante. Eu devia entrar, não existia saída alguma. Um bolo de ansiedade subiu amargo pela garganta e sufocou, a minha vida dependia daquela floresta. Eu sempre dei um jeito de contornar diversas situações, minhas opções eram infindáveis. Eu podia manipular, eu podia tentar convencer, fugir, ponderar. Ali a bocarra da vegetação não aceitaria mais extensões. Estender-se a ofenderia, eu sentia seu hálito em cada poro do meu corpo.
Olhei para trás esperando ver se o cenário tinha mudado. O mesmo chão cercado de folhas secas me assistia. O horizonte prometendo fuga e não proporcionando. Cansado de iludir-me, eu ofeguei em um choro que crescia mas não se atreveu a descer. Então, entrei.
As árvores eram altas, frondosas, como da última vez. Tão altas ao ponto de impedir que a única luz, proveniente da Lua, entrasse por entre as folhas e viesse me socorrer. É claro, havia os filetes, mas não era suficiente. Como se o local, vigiado por pouca iluminação, mas a suficiente para ver um finito caminho, estivesse fazendo isso por sadismo. E estava, eu sentia. A floresta era viva e me engolia.
Eu tremia e ofegava, os flashes de algo me agredindo vindo a tona. De minutos em minutos eu era jogado contra as copas arbóreas, no chão, via facas brilhando sem mãos. Eu ouvia gritos, gargarejos, rosnados e choro. Eu via sorrisos dentro da escuridão, brilhando dentes afiados. Eu queria sair, eu sabia que ia acontecer tudo aquilo, eu temia tanto aquele lugar. Tanto. Só sentia dor, desespero, promessas de ainda mais desgraça se abatendo sobre o meu ser como chicotadas de um demônio risonho. E quanto mais eu sofria, a floresta ficava ainda maior.
Agarrando-me a um tronco, ouvi alguém me chamar. Era voz feminina. Hesitei olhar para onde vinha, mas a presença se aproximava. Quando fitei, vi uma moça de cabelos loiros desbotados e acinzentados, sedosos. Ela penteava os fios, trajando uma roupa elegante de qualquer adolescente no ápice da moda.
-- Você está bem? Sabe como eu posso sair daqui? -- Ela sussurrou. A luz da Lua veio esclarecer mais sobre a menina. Suas pernas sujas de lama me fizeram ver que talvez estivesse passando pelo mesmo que eu. Mas a expressão era calma, surreal demais.
-- Não! Eu não sei! -- Exclamei, minha voz não parecia a mesma. Era estridente como a de uma criança chorando a horas. Percebi, portanto, que chorava -- Você sabe?! Você está aqui a muito tempo?
-- Estou! Eu e minhas amigas! Não conseguimos sair. Disseram que a experiência ia nos ensinar alguma coisa, mas o quê? A quanto tempo estamos aqui? Eu só vejo folhas, e dor, e sangue…-- Ela olhou para cima, começou a chorar também. Eu fui ao seu auxílio, segurando os pulsos gelados e finos.
-- Fique comigo. Por favor. -- Eu implorei -- Onde estão suas amigas?
-- Elas...Elas estavam atrás de mim. -- O som de algo caindo no chão foi audível. Dei um salto para trás e o autor do barulho parecia zombar de mim por ser algo tão pequeno. Era a escova de cabelo da moça. -- Alison? Zoe?
Não houve resposta. Temi pelo pior, mas os minutos se passaram e o farfalhar das folhas denunciou que alguém estava vindo.
-- Michela?! Michela! -- Outra voz. Uma moça não muito mais velha que a tal Michela saiu dentre as árvores puxando o pulso de outra. Enquanto era morena, a companheira possuía as madeixas ruivas. -- Michela! Quem é este, Michela?!
-- Eu não sei! Quem é você?
-- Eu não me lembro…--Chorei, eu, tão vão e tolo, desejando ser engolido pelo chão. Não me lembrava do nome que me deram, não me lembrava de nada. Eu apenas queria sair dali e ao mesmo tempo não queria avançar.
-- Faz tanto tempo...Tanto tempo…-- A morena murmurava, meio apática -- Como chegamos aqui? Eu estou com tanta sede.
-- Talvez, se ficarmos todos juntos, possamos achar a saída. -- Michela me disse, sendo a sua vez de segurar minhas mãos -- Não vamos deixar você sozinho.
-- Havia um poema que falava sobre este lugar, eu tenho certeza que havia. E ele dizia onde era, porque estamos aqui. -- Tentei. Não me lembrava do meu próprio nome, mas a recordação do poema vinha em fragmentos. A única coisa que restava na minha cabeça e ecoava era algo a ver com a floresta. -- Ao lado...De uma estrada…-- Eu chorava e chorava. Meus joelhos perderam a força, mas Michela não me permitiu ajoelhar. Ela me segurou.
-- Ao lado de uma estrada, sob a face do Diabo, havia uma floresta de caminhos infindáveis, galhos secos e espinhos frondosos. -- A ruiva continuou, a quem devia ser ou Alison ou Zoe, proferindo palavras a que também chorava, olhando para o lado e para frente.
"Ao lado de uma estrada
sob a face do Diabo
havia uma Floresta
de caminhos infindáveis
galhos secos
e espinhos frondosos. “
-- Tem mais, tem mais. Eu sei que tem mais. Fala sobre um soldado, e também fel. Pertence à satanás, eu sei que sim, à satanás e uma horda inteira de demônios! -- Minha voz se abraçava a presença de Michela e qualquer um que ali me abraçasse. Mas eu tinha certeza que em breve ela me abandonaria, ela não ficaria ali para sempre, ela não me mostraria o caminho. -- Eu quero ir para casa, eu quero sair daqui.
-- Casa? -- A morena debochou -- Isso não existe mais aqui. Não existe casa, seu chorão.
-- Ele se alimenta da minha alma e sua também! Não pararei, não pararei! -- Ofendido, se é que eu tinha forças para ficar, me defendi. Michela veio a meu socorro:
-- Tu não podes ficar parado, portanto. Só avançando que se resolve tudo. Você não pode mais fugir, você não pode mais fugir!
Eu choraminguei algo inaudível e nem sei o que disse, mas eu avancei. Com elas, lentamente, avancei dentre as árvores em um cenário que só mudava no formato das pedras cheias de musgo e eventuais lagos de água parada, com folhas secas na superfície e aparência suja.
O medo é um sentimento poderoso, comecei a pensar. Um sentimento tão poderoso que só deixava duas opções, ou petrificar-se no local ou avançar. O medo não deixava oportunidades, era tão urgente e desesperador que não se pensava. Só agia, às vezes de boa ou má fé. Dificilmente se petrificava, todavia. Eu queria ficar no início da floresta e nunca avançar, mas senti, também, o medo de algo muito pior desenrolar à minha frente. Costumam dizer que é importante ficar parado enquanto o predador olha nos seus olhos justamente para não provocá-lo. Aquela floresta, por sua vez, ofendia-se com a minha falta de conduta. Ficar parado a faria reagir pior ainda, minha mente não permitia nada, apenas ações. Apenas correr e gritar, chorar, procurar ajuda, mas nunca petrificar-se. E o poderoso medo aumentava no aproximar do desconhecido, o medo era tão doloroso ao ponto de ser físico. Eu sentia náuseas, meu cérebro gritava. Eu não sabia mais se estava com medo ou se me tornei o próprio medo.
-- Por que não entramos na água? -- A ruiva tentou, quase enlouquecendo -- Talvez dê para beber, não há sangue na água ainda.
O diálogo surreal dela entre ela mesma se sucedeu no ápice da loucura, a menina de cabelos ruivos falava sozinha, ou com as árvores, espectros que só existiam na sua mente e começaram a existir na nossa lentamente. Mas eu tinha certeza que fazia sentido aquelas palavras. A floresta sempre existiu, e muitos a visitaram. Ela chorava sangue.
Mais lagos vieram enriquecer de forma mórbida a paisagem. Mais musgo escorregadio abaixo de nossos pés. Michela estava sempre comigo, horas segurando minha mão, horas massageando minha costa. Mas a sua presença não me ajudava, ela apenas intensificava a sensação de abandono. De terror. Não só a dela, mas as de suas companheiras ainda mais estranhas, olhando para trás com certa frequência.
A luz da Lua começou a diminuir e a Floresta não parecia evoluir. Era sempre o cenário dos lagos imundos, peixes e folhas boiando. A escuridão foi tomando conta. E sucessivamente eu via minhas companheiras com mais dificuldade.
-- Vocês ainda estão aí? Eu não posso vê-las muito bem…-- Trêmulo eu procurei mais do braço de Michela. Apalpei, senti a carne. Ela estava ali.
-- Eu estou com sede. -- Uma delas proferiu, a voz ganhando um tom mais baixo e grave, como o de um animal nocivo. -- Muita sede. Venha cá, chorão, venha cá..
Michela apertou meu pulso e me empurrou para trás.
-- Corra! Corra! -- Gritou, e por um filete muito fino eu vi seu rosto modificado para algo ainda mais pálido. Os olhos, outrora azulados, agora eram um par rubro de ísis esfomeadas. A boca, cheia de dentes, era muito parecida com o sorriso na escuridão que vi no início da minha jornada. Estremeci.
“E enquanto morriam, seu sangue se juntou ao solo
tornando-se belas e obscuras rosas, esperando o dia
em que guiariam almas de volta para o Paraíso.”
As outras duas se jogaram no chão, engatinhando como bestas. Eu gritei mais alto que podia, não por ajuda, mas pelo verbalizar do desespero contido até aquele momento. Eu ainda temia gritar e chorar por julgamentos, mas quem ali me julgaria? Os juízes de outrora eram monstros e somente uma tentava impedi-las no chão, empurrando seus ombros e mordendo suas carnes.
-- Corra! Vai-te! -- Michela implorou, as vampiras pareciam cegas mas enxergavam muito bem. Ela arranhou as próprias coxas e rasgou parte do vestido, iludindo as companheiras que procuraram as feridas para tomar. Morderam e se satisfizeram por minutos e eu quis estendê-los. Levantei-me para correr, mas fui impedido por um relâmpago violento nos céus, partindo uma das árvores ao meio.
A copa caiu no chão perto de mim e eu desviei com dificuldade,o líquido preto saía da árvore como se ela estivesse sangrando. E realmente sangrava. Pela sua ausência, vi que a lua se tornou vermelha como o sangue de minhas veias e vermelho como o sangue vertendo das chagas de Michela, a vampira que se sacrificava por minha oportunidade de fuga. Tentei correr novamente, mas abaixo de meus pés, algo era molhado como a lama de um pântano e o cheiro era de ferro.
Olhei para baixo. Eu pisava em sangue. Sangue em todos os lugares. Sangue vertendo do próprio chão ao que era assistido pela lua escarlate. As vampiras pararam de atacar Michela e, vendo a abundância no chão, beberam do néctar selvagemente.
-- Michela! -- Gritei, tendo certeza que suas companheiras não parariam o banquete -- Venha comigo! Venha comigo!
Ela olhou para Alison e Zoe uma última vez e veio a mim, com dificuldade, devido o sangue acumulado até seus tornozelos. Quanto mais andávamos, mais profundo nossos pés entravam e eu conseguia sentir a densidade daquele sangue. O chão sangrava.
Eu segurei o pulso dela, sentindo um rombo de coragem dentro do meu âmago. Eu iria sair dali, eu queria sair. Eu era forte dentro do meu desespero. Outro relâmpago caiu perto de nós e matou mais uma árvore, vimos sua chaga negra. O poema vinha na minha mente. A chuva de sangue viria.
E veio.
Primeiro gotas escassas, depois uma tempestade vermelha, morna, caindo.
-- É isso! Estamos livres! Livres! -- Michela riu, enlaçando seu braço ao meu. A floresta começou a mudar, uma trilha interrompeu as árvores e o que víamos eram poucas abrindo um caminho escarlate. Era rubro e ao invés de sujar, limpava.
“E ali prestes a perecer
O menino se lembrou das rosas esperando por redenção
Na parcial escuridão.
Ele as jogou no ar, e penduradas nos galhos frondosos
se tornaram sangue na chuva suplicando perdão.
Os banhou como o amor banha os apaixonados
morna, encontrando seu caminho
e fazendo com que eles achassem o próprio.”
Eu olhei para Michela e seus olhos, seu sorriso pontiagudo. Achávamos o caminho e um sentimento quente nasceu em meu peito, a vontade de voltar para casa sendo concretizada. A floresta permanecia medonha, molhada e vermelha, mas eu queria a vampira ao meu lado. O sentimento de abandono permanecia ao som de trovões e chuva de sangue. Era como ser tocado pelo néctar das rosas, tudo aquilo vindo de seus pulsos. E eu sofria, eu sofria, eu chorava junto com o sangue e as lágrimas se misturavam, eu não sabia mais se pararia de chorar.
Atravessamos a trilha ainda correndo, sem jamais olhar para trás. Algo me dizia para não olhar para trás, como se Hades estivesse dizendo a mim o que disse á Orfeu: Não olhe ou tua salvação desaparecerá. Era somente para frente, Michela escorregadia na minha mão, mas ainda presente. No horizonte encontramos a saída, a vegetação escarlata cessando assim como a chuva. Não existia sangue, só grama e algumas montanhas mais à frente. Grama verde, lagos límpidos.
-- Estamos chegando! Vamos ficar bem! Vamos ficar bem! -- Eu repetia. Estávamos chegando, a chuva passaria.
Quando chegamos na boca da saída, Michela deu um trinco.
Ela não andou mais, apenas ficou parada olhando para frente. Eu caí no chão, de quatro, e senti a terra molhada de sangue nas mãos e dentro das unhas. Me levantei e lhe disse:
-- O que houve?!
-- Vá! Vá, daqui eu não posso prosseguir. Vá, você aprendeu o que precisava. -- Michela sorriu, pousando ambas as mãos ao meu rosto, limpando em vão as marcas do sangue que caía cada vez mais.
-- Michela, venha comigo. Venha…-- Eu pedi, a dor do abandono se fazendo palpável agora. Ela me abraçou, afagou minha costa e beijou minha testa, seus lábios de sangue sedosos como pétalas de rosa. Empurrou-me pelo peito e eu atravessei a fronteira da floresta, o ar gelado secando o sangue que maculava a minha pele.
Eu perdi as horas do quanto eu fiquei chorando para que minha salvadora saísse da floresta. Mas ela apenas me olhava e apontava para frente, sorrindo dócil e paciente.
-- Você sabe como termina o poema? -- Ela perguntou retoricamente -- A floresta ficou para trás, assim como o sangue. Vá.
Olhei por toda a extensão da vegetação vermelha, procurei uma nuvem de mesma cor acima mas não existia. Chovia apenas lá dentro, no surreal lugar que eu tanto temia e agora deixava. Michela deu alguns passos para trás e desapareceu na escuridão.
Então eu me virei para frente e mais uma vez comecei a correr…
Acordei. Ofegante. Suado. Chorando. Era meu quarto, minha cama, minhas paredes. O dia amanhecia. O tom do céu era roxo claro, o laranja rompia, o amarelo se aproximava. A janela aberta soprava um vento gelado na minha pele e rapidamente eu me recompus, porque embora eu não soubesse onde estava enquanto sonhava, agora eu sabia.
Olhei para minhas mãos e as vi sujas de sangue, assim como os braços, pernas e lençóis. Era como se houvesse sido acometido as brincadeiras dos colegas de Carrie White. Mas ao redor do cômodo, tudo estava limpo.
O medo desapareceu completamente embora a adrenalina ainda fizesse parte do meu sistema nervoso. Sentia-me cansado e ao mesmo tempo cheio de energia. A realização de ter superado algo tão poderoso me deixava ofegante, a sensação de ter aprendido que não se deve parar e ficar olhando, deve-se reagir ao medo. Ele é poderoso, muito poderoso, mas eu podia controlá-lo. Eu podia ter poder sobre ele. Eu podia reagir e lutar para sair da floresta, ela tinha saída.
Sorri, negando com a cabeça, passando a mão nos cabelos ensanguentados. Eu havia voltado para lá e eu voltaria, enquanto fosse permitido minha presença.
Como daquela vez que escrevi o poema.
“A Floresta ficou para trás
coberta de sangue
e o Diabo nela esperou com um sorriso, claramente disposto a ensinar
quem estiver disposto a aprender. "