Connoisseur de Comidas Falantes

Era fim de tarde. Charles voltava de seu trabalho cansado e ansioso para o fim de semana. Como de costume, tinha decidido se recompensar essa noite com um jantar elegante. Ultimamente, havia crescido em si um grande interesse por experimentar diversos novos tipos de comida, apesar de que desde sua infância nunca tenha tido um paladar particularmente apurado.

Após tomar um banho refrescante, seguiu para arrumar a mesa de jantar. Colocou uma toalha especial, um prato e talher especiais e uma elegante taça ao lado. Olhou para sua mesa satisfeito. Morava sozinho, e via esses momentos como um de seus maiores prazeres em sua rotina.

Finalmente, chegara a hora de preparar o cardápio. Abriu a geladeira. Nesse momento, várias vozes começaram a ressurgir em sua cabeça. “Essa não, chegou a hora!”, “Socorro, eu não quero ser devorada!”, “Saia daqui, seu bruto!”. As diversas comidas em sua geladeira repetiam. Era até possível discernir de onde viam. Os enlatados geralmente apenas gritavam por socorro, a comida instantânea se virava para xingamentos baixos, enquanto as bebidas apenas amaldiçoavam a própria sorte. Ao ver essa cena, Charles sorriu.

Havia já alguns anos em que começou o fenômeno dos alimentos se comunicarem com os humanos. Como vozes em suas cabeças, afetando toda a humanidade. Depois do susto inicial, isso se tornara apenas mais um fenômeno natural na vida das pessoas. Porém também causou uma mudança drástica nos hábitos alimentares e técnicas de produção mundiais. Comidas bem tratadas geralmente falavam menos, ou apenas aceitavam seu destino, enquanto frutas e legumes chegavam até a desejarem ser devorados, aparentemente pois valorizavam sua importância no ciclo alimentar da natureza. Já comidas maltratadas ou industrializadas gritavam muito e chegavam a agonizar enquanto eram comidas, o que perturbava muitas pessoas. De um jeito ou de outro, com o tempo a alimentação mundial acabou ficando muito mais saudável, com uma produção muito mais natural. Alguns até viam esse fenômeno como um grito de socorro da natureza para salvar o planeta.

Entretanto, isso afetava a vida das pessoas de formas diferentes. A produção de alimentos processados e industrializados não parou completamente, pois ainda existia uma demanda, apesar de mínima. A demanda por esses tipos de comidas de uma forma geral se dividia em dois grupos: Os que não conseguiram se adaptar as mudanças, que por vezes acabavam chegando a adquirir transtornos psicológicos advindos da culpa, e as pessoas que especificamente preferiam comidas que gritavam e agonizavam durante a refeição. Charles fazia parte do segundo grupo.

Depois de olhar a geladeira, pegou a embalagem de batatas pré-fritas que fantasiava comer desde manhã. “Seu animal!”, “Você vai para o inferno por isso!”, “Tire suas mãos de mim, seu nojento!”. As batatas falavam enquanto Charles preparava a frigideira. Ainda não haviam percebido que ele escolhera elas especificamente porque gritavam mais alto que as demais comidas, e sua resistência só as tornava mais apetitosas para ele.

Ao colocar óleo na frigideira, o fazia lentamente próximo as batatas, para amedronta-las e fazer com que um pouco de óleo espirrasse nelas. “Aprenda a colocar óleo seu idiota!”, as batatas reclamavam, para o deleite de Charles. Então chegara um de seus momentos favoritos, o de colocá-las para fritar. No momento que as colocava na frigideira banhada em óleo, elas gritavam. E continuavam a gritar por um tempo, até se acostumarem. Charles adorava esse som, e geralmente as deixava fritar um pouco a mais que o necessário para aproveitar a sensação.

Por fim, todas estavam bem fritas e crocantes. “Seu... Seu louco!”, “Como pode...”, “Adão, fala comigo!”. Aparentemente, fritá-las em óleo quente não era o suficiente para fazer a maioria das comidas pararem de falar, apesar de que algumas o faziam e outras ficavam com um tom mais fraco, no geral as comidas paravam de falar apenas quando eram devoradas ou estragavam.

Ao colocar o prato com batatas na mesa, Charles se moveu para pegar o refrigerante e o catchup. O refrigerante apenas falou “Chegou minha hora”, com um tom melancólico, enquanto o catchup ficou quieto. Ao colocar o refrigerante na taça, ouvia-se “Por que senhor? POR QUE!?”, vindo da garrafa. Charles suspirou de satisfação. Aparentemente, o processo de produção de catchup atualmente era considerado um dos métodos mais desumanos de se fazer com uma comida, chegando até a correr o risco de ser proibido depois que várias pessoas parte da produção adquiriram problemas mentais. Ao colocar um pouco de catchup ao lado das batatas, ouvia se um susurro “...me mate... me mate...”. Após o fenômeno das comidas falantes ocorrer, Charles não deixava de adicionar catchup a nenhuma refeição, exceto quando estava com outras pessoas, que geralmente achavam inconveniente.

Charles esfregou a língua entre os lábios, se preparando para comer. Saboreou o refrigerante, que se esforçava para aguentar a agonia. Passou o garfo entre as batatas. “Pegue ela, não eu!”, “Seu monstro!”, “Quando você vai estar satisfeito? QUANDO!?”. Elas agonizavam entre si, tentando fazê-lo pegar alguma diferente. Charles achou aquilo engraçado, pois ele planejava devorar todas elas de qualquer forma. Primeiramente, pegou uma que não falava. “Adão, NÃO!”, se ouvia ao fundo vindo de uma batata, enquanto outras suspiravam de alívio. Charles tinha decidido comer as menos apetitosas primeiro. Em seguida continuou com a refeição.

Pegava uma batata, passava no catchup e as devorava. Depois beliscava o refrigerante. Era um festival de gritos. Algumas gritavam mais que as outras, e essas Charles fazia questão de mastigar mais devagar. Elas continuavam gritando mesmo dentro da boca, e apesar de ser meio abafado para escutar, Charles gostava dessa sensação. O refrigerante não gritava muito, mas por vezes parecia lamentar pelas batatas que agonizavam, o que para Charles o tornava bem saboroso. Por fim, depois de uma refeição intensa e saborosa, só sobrara uma batata.

Em vez de gritar por si, ela havia gritado por outras batatas, o que para Charles a tornava mais apetitosa que as demais, por isso havia a deixado por último. “Apenas me mate! ANDA! ME MATA!” gritou a batata. Charles sorriu. Pegou sua faca, e com o garfo, cortou ela ao meio. “Gah... Por Que?... POR QUE!?”, ela agonizava. Por fim, ela não parou de gritar até ser completamente devorada. Charles terminou o refrigerante, e afinal, estava completamente satisfeito.

Limpou seus lábios e colocou os utensílios na pia. Fazia tempo que não tinha uma refeição tão boa quanto essa. Mas lembrou que tinha que se moderar mais de agora em diante, pois estava ganhando peso por comer muita comida industrializada. Decidiu que iria comer principalmente comidas mais saudáveis durante a semana, e as mais saborosas no fim de semana. Tinha que equilibrar o necessário ao prazeroso, afinal. Imaginando o que comprar na próxima vez, pensou em hambúrgueres, que tem um grito bizarro de uma mistura de carnes, ou uma pizza pré-pronta, com seu hábito clássico de implorar por não ser comida. Por fim, Charles teve uma excelente noite de sono, totalmente satisfeito.

RCS
Enviado por RCS em 17/06/2017
Código do texto: T6029723
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