Tinha medo do homem que cada menino constrói dentro de si, a partir da convivência com seus brinquedos e fantasias monstruosas. Era preciso mudar o curso da história, os rumos da escola que prepara as crianças para o relativismo: tudo é natural, nada é pecado. E pela primeira vez, Emília teve sentimentos humanos: desejou ser a rainha das bonecas, ter muitos súditos e não temer a nada.
— Quero ser como o Bobby que não tem medo de nada.
— Os homens escondem seus medos, quando estão diante de mulheres. Faça um teste: Quando Bobby disser que não ter medo. Olhe os lábios dele. Se tremerem em leve contração. Está mentindo!
— Não são mais os olhos a janela do coração?
— O rosto é o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados, mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
— Não vai contar uma estória?
— Vou contar sem texto. Só figuras. Você escreve a estória.
E desenhou uma ovelha, depois outras tantas, enfileiradas passando pela porteira. Todas branquinhas, bem branquinhas...
— Vá contando as ovelhinhas. Vá contando...
— Já contei 99 e ainda não consegui dormir.
— É porque falta uma! Não descansarás enquanto não encontrares a ovelha perdida. Vá buscá-la. Sem alarde, pisando macio... A pastagem esconde espinhos.
Ela suave, se banhada de orvalho, e áspera, se não se deixa lavar pela água que desce do céu.
— Vá! Sinta a maciez da grama orvalhada em teus pés descalços, mas cuidado com os espinhos da rosa. Ande devagar...devagar, devagar... Saltitando, volitando como se tivesse asas teu coração.
Emília imaginou um coração com duas asas, uma delas ferida pelo caçador de prêmios. Depois, lembrou-se de que precisava contar carneirinhos para dormir, mas faltava uma ovelha. Talvez estivesse ferida ou se afastara do caminho apontado pelo pastor.
— Coração voa?
— Voa! Vou muito. Sonha voando e voa. Viaja por mundos desconhecidos: paisagens espiritualizada, musgo aveludado na base da colina, e orquídeas floridas nos troncos das árvores como no mundo em que Manuel fincou sua bandeira.
— Encontraste a ovelha desgarrada?
— Não! Nem o cordeiro.
— Emília, Emília...
— Meus olhos estão pesados e não consigo dormir.
— Se há uma ovelha perdida, o bom pastor não dorme, enquanto não encontrá-la, e quando a encontra faz festa.
Sonhou. Viu o paraíso perdido. E chorou.
O mundo encantado estava à beira da destruição. Muitas bonecas eram jogadas no lixo, porque lhe faltava um braço ou uma perna; outras arrastadas pelas águas turbulentas do niilismo.
Emília acorda em sobressalto.
— Por onde divagaste em teus sonhos em sonhos? Teus olhos relevam medo e terro!
— Nunca viste uma boneca ser descartada porque tem algum defeito?
Viu uma ovelha gorda demais e tinha muitas feridas. Muitas chagas ainda abertas, provocadas por mordidas do lobo. Devia sentir muita dor, tristeza e solidão. Disse ter sido abandonada pelo rebanho, mas foi ela que se desgarrou. E já não sabia mais como encontrar o caminho de volta. Ovelha nunca deve abandonar o rebanho! Se abandonar, torna-se indefesa e presa fácil... Há outras ovelhas doentes. Incautas, elas mergulharam na escuridão e caíram em profundo abismo. Gritam e seus gritos não ultrapassam a barreira dos muros abissais.
Emília também estava gravemente ferida.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As pessoas crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emília morreu. Quero fazer o velório dela com todas as honrarias que merece.
Vó Corina compreendeu que era hora de guardar a boneca de Ravenala. Como ela, Corina, guardara a sua quando ficou mocinha.
— Emília era apenas uma boneca de pano, minha filha.
— Sim, mas em cada retalho dela, tinha um pedaço de mim.
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
Imagem: Internet
Enviado por Adalberto Lima em 05/06/2017
— Quero ser como o Bobby que não tem medo de nada.
— Os homens escondem seus medos, quando estão diante de mulheres. Faça um teste: Quando Bobby disser que não ter medo. Olhe os lábios dele. Se tremerem em leve contração. Está mentindo!
— Não são mais os olhos a janela do coração?
— O rosto é o lado externo do coração; os olhos, ambos os lados, mas são os lábios que escondem ou revelam a verdade.
— Não vai contar uma estória?
— Vou contar sem texto. Só figuras. Você escreve a estória.
E desenhou uma ovelha, depois outras tantas, enfileiradas passando pela porteira. Todas branquinhas, bem branquinhas...
— Vá contando as ovelhinhas. Vá contando...
— Já contei 99 e ainda não consegui dormir.
— É porque falta uma! Não descansarás enquanto não encontrares a ovelha perdida. Vá buscá-la. Sem alarde, pisando macio... A pastagem esconde espinhos.
Ela suave, se banhada de orvalho, e áspera, se não se deixa lavar pela água que desce do céu.
— Vá! Sinta a maciez da grama orvalhada em teus pés descalços, mas cuidado com os espinhos da rosa. Ande devagar...devagar, devagar... Saltitando, volitando como se tivesse asas teu coração.
Emília imaginou um coração com duas asas, uma delas ferida pelo caçador de prêmios. Depois, lembrou-se de que precisava contar carneirinhos para dormir, mas faltava uma ovelha. Talvez estivesse ferida ou se afastara do caminho apontado pelo pastor.
— Coração voa?
— Voa! Vou muito. Sonha voando e voa. Viaja por mundos desconhecidos: paisagens espiritualizada, musgo aveludado na base da colina, e orquídeas floridas nos troncos das árvores como no mundo em que Manuel fincou sua bandeira.
— Encontraste a ovelha desgarrada?
— Não! Nem o cordeiro.
— Emília, Emília...
— Meus olhos estão pesados e não consigo dormir.
— Se há uma ovelha perdida, o bom pastor não dorme, enquanto não encontrá-la, e quando a encontra faz festa.
Sonhou. Viu o paraíso perdido. E chorou.
O mundo encantado estava à beira da destruição. Muitas bonecas eram jogadas no lixo, porque lhe faltava um braço ou uma perna; outras arrastadas pelas águas turbulentas do niilismo.
Emília acorda em sobressalto.
— Por onde divagaste em teus sonhos em sonhos? Teus olhos relevam medo e terro!
— Nunca viste uma boneca ser descartada porque tem algum defeito?
Viu uma ovelha gorda demais e tinha muitas feridas. Muitas chagas ainda abertas, provocadas por mordidas do lobo. Devia sentir muita dor, tristeza e solidão. Disse ter sido abandonada pelo rebanho, mas foi ela que se desgarrou. E já não sabia mais como encontrar o caminho de volta. Ovelha nunca deve abandonar o rebanho! Se abandonar, torna-se indefesa e presa fácil... Há outras ovelhas doentes. Incautas, elas mergulharam na escuridão e caíram em profundo abismo. Gritam e seus gritos não ultrapassam a barreira dos muros abissais.
Emília também estava gravemente ferida.
— Vovó, vovó!...
— Que houve, minha filha?
— Emília morreu!
— Bonecas não morrem. As pessoas crescem, e guardam suas bonecas no armário.
— Emília morreu. Quero fazer o velório dela com todas as honrarias que merece.
Vó Corina compreendeu que era hora de guardar a boneca de Ravenala. Como ela, Corina, guardara a sua quando ficou mocinha.
— Emília era apenas uma boneca de pano, minha filha.
— Sim, mas em cada retalho dela, tinha um pedaço de mim.
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
Imagem: Internet
Enviado por Adalberto Lima em 05/06/2017