Snow White as a boy

Uma vez, ouvi trazido pelo vento gélido premonitório a uma velha mulher proferir em tom aconselhativo que, quanto mais puro for um coração, mais sujeito à maldade e a sujeira deste mundo este será, como também ao desenvolvimento de um mal tão sujo quanto à que foi sujeito—.

Meu tempo é uma época nobre, ou assim diz-se; um tempo onde há um rei para cada civilização. Classificam a sua minórica civilização em camadas, porém, se não fizer parte direta da coroa, lhe digo que não é além de um escravo; se vive e trabalha para eles, não lhes importa o seu bem estar de vida a não ser que esteja faturando os seus. Nem mesmo a Igreja que era tida como onipotente às leis da terra era maior que o ouro em suas cabeças. A coroa possui a supremacia e é capaz de subjugar o que bem lhes convier sobre o reino ao qual se domina; um rei poderia possuir a uma bela mulher tal que descobrira em seu reino mesmo que esta pertença a um homem ou uma família; a rainha poderia arrancar os olhos de um de sua plebe que pensara ter-lhe olhado mal. Há os que escolhem viver livres em localidades cercadas por enormes e inóspitas florestas de onde a coroa afugenta-se. Porém, a liberdade pode custar tão caro não havendo um valor físico a pagar — e eu, entenderia isso tão cedo quanto tarde demais.

Naquela tarde de outono com uma brisa pouco fria, eu encontrava-me no pomar próximo ao meu vilarejo com ele — Heitor —, ao pé da mesma macieira à qual juramos só com a mesma e as suas grandes maçãs rubras de testemunhas os nossos sentimentos incompreendidos quanto ao outro. A idade em seu tempo nos fez desenvolver e entender o que sentíamos um pelo o outro. Dizíamos que existíamos no mesmo lugar pois o destino nos pôs ali e nos emoldurou na mais bela pintura. Até desenhamos no tronco desta macieira as nossas iniciais e juramos que enquanto ela estivesse de pé, os nossos sentimentos floresceriam e amadureceriam incessantemente e se um dia a cuja árvore decaísse-se à terra, nós cairíamos juntos, de mãos dadas—.

Um grito desesperador quase inaudível se não fosse pela brisa que o trouxe; não mais um só grito e clamor — agonia e sangue jorrando-se. A única maneira que aquele rei e a sua cavalaria selvagem encontrou de cortar a raiz que ousara escapar de seu reino fora abrindo as gargantas dos aldeões. Heitor tomou-me em suas mãos comigo paralisado só com as minhas lágrimas premonitórias quanto aos meus pais também aldeões dali e nos coagiu a correr. Nosso caminho cortou-se por um enorme e abrupto cavalo negro e aquele cavaleiro de armadura reluzente ao sol nos apontando uma grande espada tão reluzente quanto. Ele tomou Heitor de minhas mãos paralisadas. Não reagi se não assistir. À tudo. Minhas lágrimas secaram. Tanto quanto minh'alma decaindo-se sobre um mar árido de areia movediça entoando os últimos clamores deles, e dele, afogando-me decaidamente da graça. Meus pais. A minha obra de arte. Tanto quanto o meu ser decaindo-se em uma imensidão negramente rubra. Os Seus braços gelidamente aconchegantes capturaram-me em redes movediças. — O que desejas, saborosa alma? —, o Seu sussurro entoou em minh'alma como se a espada daquele cavaleiro a adentrasse lentamente a bel prazer sádico. — Acalme-se e presencie a vossa visão realizada... —, os meus olhos arregalaram-se paralisados àquela imensidão negramente avermelhada e àquelas almas dos que cortaram a vida dos aldeões com espadas e à daquele rei afogando-se dezenas de vezes em clamor agonizante. Um gosto onduloso veio à minha língua. Doce. — Abra. Permita-me entrar. — Não pude conter-me a não ser abrir-me e que o líquido negramente avermelhado e morno esparramasse-se em mim. Eu não desejava conter-me. A sua viscosidade grossa desceu pelas minhas vestes nas linhas até as pernas e senti um forte morno instigar-me. Transformou-se em demasiado quente. Fogosamente atiçou-me a me abrir à penetração. A entrada de tal realização fora novamente paralisante e as minhas órbitas estarrecidas visualizaram o deslumbre deleitoso da cuja visão—.

Naquela noite, as trevas presentearam-me com um manto que encobriria a mim e aos meus passos rumo ao núcleo daquela cuja coroa. O momento do deleite chegara. As trevas estavam famintas e sedentas. O seu receptáculo fora finalmente adquirido. Não haveria resquícios de pele sobre ossos. O rei degustou todo o propósito da lâmina construída e moldada unicamente ao seu peitoral másculo enquanto a sua fonte de vida vermelha achou um caminho de fuga pelo canto da sua boca tingindo o branco em que se deitava. Eu não havia me degustado ainda. O seu sangue era doce. Eu o beijei e pude experimentar diretamente da fonte. Suguei-a. Rasguei-lhe a garganta e então me banhei no jorrar da fonte. Senti a vida penetrando os meus poros à dele se esvaindo os últimos resquícios insistentes.

— Pai! — uma voz gritou à porta do aposento. Eu a reconheceria enquanto vivesse e o meu batimento de resposta apenas confirmou. Heitor. Filho bastardo do cujo rei. Fruto de uma das suas centenas de amantes. Deixado à mercê de um beco lixoso ao nascimento e encontrado por uma das aldeãs que sempre desejara um filho porém era infértil. A oportunidade perfeita juntamente da planejada fuga daquele reino ingrato e sugador rumo à uma vida melhor. E livre. Embora aquele rei sempre soubera dos fatos e decidiu afundá-los e afogá-los para si. Agora, com o filho primogênito arrancado da vida pelo campo de batalha, escolhera o bastardo e o teria por quaisquer meios. — Philip?! — gritou ao retirar da própria espada. Mais uma vez, paralisei-me. Nossos olhares finalmente encontraram-se arregaladamente estarrecidos porém não mais embaixo da macieira. Um campo de batalha. Ele então jogou a espada ao chão e em punhos gritantes avançou-se à minha direção. Nos encontramos corpo a corpo finalmente. Mais uma vez o meu batimento exclamou o seu sentimento de resposta mais forte que o murro o qual ele desferira contra o meu rosto. Eu jamais desferiria em Heitor com a lâmina pertencente ao peito do rei. Porém sangue é sangue. O de Heitor começou a escorrer pelo braço que desferi o golpe. — Beba. Ora, este é o único meio que ele estará para sempre convosco. —, as trevas ofertaram-me. Eu assenti. Devorei-lhe rasgando a sua garganta e bebendo dele e a sua vida. Ele apenas assentiu mórbido ao meu ombro enquanto nos tornávamos uma só pintura que o destino assim emoldurou para sermos.

— Perdoe-me, meu amor. Eu não posso perdê-lo mais uma vez. Estará pra sempre em minh'alma agora. — sussurrei ao deixar do seu corpo invívido ao chão e fazer o meu caminho rumo ao aposento real. As trevas finalmente fartaram a sua fome e sede aos variados pratos que lhes dei. A população daquele reino as alimentou gratificamente em um enorme forno em chamas vivas e dançantes que fizeram do mesmo da sua entrada à saída. Até os ossos. Os seus cães bestiais cuidaram dos ossos. Abriram-me as enormes portas do aposento. Serviçais do seu próprio receptáculo com bom grado e gratidão pelo banquete que lhes presenteei—.

Uma vez, ouvi a uma velha mulher dizer em tom de conselho que quanto mais puro for um coração, mais sujeito à maldade e sujeira deste mundo este será, como também ao desenvolvimento de um mal tão sujo quanto à que foi sujeito. Porém, aqui estendo-me soberano na supremacia que as trevas presentearam-me com uma coroa dourada e moldurada em pedras únicas. Os corpos mórbidos que formam o meu tapete. O sangue rubro que desenha o meu caminho.

O trono é meu.

A coroa é minha.

O reino é meu.

E tudo será meu.

— Espelho, espelho meu...

existe alguém mais poderoso do que eu?

ilLoham
Enviado por ilLoham em 01/06/2017
Reeditado em 01/11/2023
Código do texto: T6015982
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