Pássaro
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Acordo bem cedo sem saber o porquê e não consigo mais dormir. Meu quarto solitário ecoa o vento do ventilador de forma melancólica e eu observo o mundo pela janela. Nessa hora do dia pouca gente passa por aqui, elas derem esta em casa dormindo ou se preparando pra sair. Abro a porta que dá pra varanda e um vendo gelado me envolve, deixo ele me abraçar. Um pássaro ao longe começa a fazer um barulho estranho e para. Num primeiro instante não me incomodo com aquilo, mas à medida que o tempo passa o barulho fica mais alto. “Que merda é essa?” pensei colocando a cabeça pra fora da janela e procurando o pássaro, não achei. Fechei a porta e aquilo continuou. Nesse momento o barulho já estava mais alto do que se podia imaginar que um pássaro faria e comecei a me perguntar se aquilo era mesmo um pássaro ou apenas fruto de minha imaginação. Tentei me concentrar em outras coisas, mas era inútil, pois o som do animal ficava mais alto e mais alto.
Saí do quarto. O corredor estava silencioso. Dei uma volta lá em baixo, pouca gente, nenhum conhecido. Fui até a esquina e comi bolo de milho e café ali mesmo. A mulher que me atendeu era velha e de um sorriso acolhedor. Senti vontade de voltar todos os dias, mas eu sabia que acordar naquela hora era um evento raro pra mim. Voltei pro apartamento e o pássaro não havia parado com sua cantoria. Fui até a varanda na esperança de vê-lo e pra minha surpresa e espanto logo que abro a porta lá esta o pássaro pousado na minha janela. Pequeno, azulado e tinha qualquer coisa que um pássaro tem, não sei diferenciar os pássaros, mas esse tinha algo a mais também, pois olhou fundo em meus olhos.
- Te incomodo?
Eu quase dei um pulo pra trás quando ouvi aquela voz estridente saindo do bico de um animal. Estaria eu louco de vez ou havia ouvido aquilo de um apartamento vizinho, quem sabe? Não, eu sabia que o pássaro tinha falado e não queria acreditar.
- Desculpe – eu disse como um ato de desespero. “Talvez o pássaro não tenha falado nada” eu pensava
- Te incomodo com minha cantoria? – ele me perguntou mais uma vez e eu tive a certeza que ele mesmo, o pássaro, havia falado.
Eu não sabia se devia ignorar aquele fato ou não, mas me sentiria mal em simplesmente sair dali sem dar explicação nenhuma, mesmo que essa explicação tenha de ser dada pra um animal.
- Na verdade eu queria dormir – eu não queria dormir na verdade.
- Então se queres dormir eu canto algo mais melódico pra te fazer feliz.
- Por que nunca falaste comigo antes.
- Como? Não lhe entendo, eu estou sempre aqui falando com você.
- Eu nunca havia falado com um pássaro e nunca ouvi ninguém que houvesse falado com um.
- Vocês humanos estão sempre cobrindo a solidão falando com paredes e com cadeiras e com computadores e com portas, por que não falar com um pássaro então?
- Isso é loucura. Nunca fazemos com nada disso.
- Na verdade suas melhores ideias e seus segredos mais profundos são sempre falados pra nós, nunca entendi direito o porque. Talvez seja por acharem que nós não contaremos a ninguém ou talvez porque não confiam uns nos outros ou ainda por terem vergonha da vida que levam sem que os outros saibam. Tu mesmo com esses ataques de raiva e tuas incontáveis horas de solidão já deixaste a mim, um pássaro amante do mundo, com grandes depressões e desesperanças. Tenho lhe observado de perto e sei que não tem muitos amigos e os que tem são fruto de relacionamentos intrinsicamente frágeis , isso faz com que eu quase aceite tua situação de medo e isolamento, mas tenho que lhe pedir que pare com todo esse teatro.
- Tu não entendes pássaro, tu não entendes as pessoas e suas formas de lidarem com o mundo. O teatro é nosso refugio e a enganação é fruto do medo de não ser aceito. Eu mesmo já nem sei o que sou, mas olhe as pessoas a sua volta e vai perceber que nenhuma delas sabe quem é.
- Tu deixa a mulher amada se deitar com outro homem e nem mesmo sofre por ela. Tu faz de teus dias um parque mesmo tendo mil e um afazeres. Tu comes mesmo com vontade de vomitar e acha isso algo normal. Tu bebes álcool como um cavalo bebe água achando que isso lhe esclarece alguma coisa. Tu é a piada da roda de amigos por não conseguir ser aceito de outra forma. Tu fala sobre assuntos banais na tentativa de fortalecer laços com pessoas que tu achas fracas de mais pra qualquer coisa. Tu fala com um pássaro que é apenas fruto da tua imaginação e se abre pra ele, pois sabe que não podes fazer isso com ninguém. Tu é um selvagem e se esconde debaixo dessa pele, mas saiba que não consegue enganar ninguém, todos vêm tua raiva e tua força. Tu não andas por ai como os outros andam, tu não amas como os outros amam e muito menos sente como os outros sentem.
- Tu se incomoda com tudo isso?
- Isso não vem ao caso.
- Tu se incomoda com tudo isso pássaro?
- Sim, isso me machuca.
- E porque não vai embora? Já estou farto de suas conclusões. Saia daqui e me deixe dormir em paz – eu não queria dormir.
- Se é isso que tu queres – disse abrindo as assas.
- Não volte mais aqui.
- Como posso voltar se eu nunca estive e como sair se sempre estou? Eu sou as paredes, as janelas e as cadeiras meu pobre homem. Cuida-te de tua vida, mas se liberte de toda ela se estiver infeliz.
E saiu voando.
Desde aquele dia nunca mais ouvi o canto de um pássaro ou saí pra varanda. Eu tinha medo que ele voltasse e tinha medo de voltar a falar sozinho. Eu vivo enganando a loucura e às vezes sinto que estou enganando a mim, mas quem não está afinal?