Estavam voando há cinquenta minutos sem darem uma palavra, até que um deles irrompeu o silêncio.
— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero.
— Talvez sim!  Fui bancário,  tive uma vida cigana mudando  de uma agência para outra, com o objetivo de fazer carreira no Banco. Trabalhei em Picos, Fortaleza, Rio de Janeiro, Brasília e em várias cidades de diversos Estados. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do caminho das índias e mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.
—Pelo tipo da prosa, o amigo também é escritor! Muitos bancários, quando se aposentam, tomam o caminho das Letras. Vais ao encontro no Salon Du Livre?
— Sim, apresentarei ‘Música para Pensar’   em Paris. É minha mais recente obra. Produzi também outras  na juventude que hoje, renego, e seria capaz de escrever nelas: ‘incorrigível. Só o fogo!’ Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto, se bem que Afrânio tinha outros títulos que não alcancei.
— Gostei  de ‘Musica para Pensar’, também no sentido de cuidar das feridas da alma e do coração. A boa música tem a capacidade de auxiliar na cura da ansiedade, angústia, estresse e até   depressão...
— O amigo me parece  maestro não só das letras, também das notas musicais.
— Lido com arranjos. O livro é meu chão, e a música o céu por onde viajo carregando um universo de indagações: de onde vem a arte, senão do fantástico mundo da imaginação? Fiat! E o artesão extrai  tudo do nada?
— Inspiração e transpiração – acrescenta Gilson Chagas.
— Sim. Primeiro escorre o suor no talhar a pedra bruta, depois, tocamos com a varinha mágica da inspiração, dando  acabamento final, o  embelezamento. Soltamos o cabelo de Gabriela para deixá-la menos  tensa e assim, costuramos nossa colcha de retalhos nos remendos e emendas da história apanhados aqui e ali em algum fiapo de conversa.
— Eu também gasto tempo, gasto as vistas,  gasto a vida como verme a roer livros.
Retirou um livro da bagagem de mão.
— Eu gosto tanto disso aqui!  É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro... Fico namorando livros como se a vida real fosse uma ficção que se transcreve para o papel.
Desafivelou o cinto e sentiu o cheiro de cravo e canela escorrendo na caneta de Jorge  que, embora muito  amado, teve também seus dias de suplicio na masmorra do exílio. Acomodou-se na poltrona, regulou as lentes da imaginação e viu  nuvens desfilando  velozes  na janela da aeronave como se abrissem páginas armazenadas no cloud computing.
Pensou alto:
— O avanço tecnológico impulsionou a literatura  ao criar livros  para ouvir, esse recurso oferece significativa contribuição: evita que morram árvores para que livros tenham vida — disse Carrero.
Reclinou o assento buscando conforto no pequeno espaço entre as poltronas. E prosseguiu a conversa com o passageiro com quem há pouco estabelecera laço de amizade.
— A literatura virtual tem muita patacoada, mas não há dúvida de que também há boa medida, calcada, sacudida e transbordante de bons talentos.  Tu mesmo penetraste bem com Jacó na tenda de Labão. Abençoaste Raquel, sem excomungar Lia.  Camões fez o mesmo em sua lira de 14 cordas.
Fez uma pausa.
— A Internet aproxima o homem do mundo distante, mas, afasta o próprio homem de si mesmo e daquilo que lhe é próximo. Tudo com um simples ‘clicar’ de  teclas. Internete é faca de dois gumes... Não achas perigoso disponibilizar tua imagem neste universo virtual?
— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida.
— O  livro da vida tem seu preço: a maioria das páginas foram escritas com suor, lágrimas e sangue.
Depois de um meio-riso concluiu Carrero:
—  Li um artigo de Francisco Miguel sobre Prosopagnosia. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... ‘E aí começava meu martírio’ — diz Miguel.
—É... o Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador no caminho das Letras.
— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?
— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele tem mais de oitenta janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa também chegar a essa idade e que o Chico ultrapasse, em muitos anos, o marco até agora alcançado.
— Somos pedras que se consomem — diz Carrero — meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha!  Eu gosto tanto disso aqui!  É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro...
E trocaram gentilezas oferecendo um ao outro os últimos títulos que publicaram. 
***

Adalberto Lima, trehco de Estrela que o vento soprou.(em editoração)
Imagens Internet:
1 Gilson Chagas
2 Chico Miguel
3 Raimundo Carrero