Uma historinha para Ana Luiza
Temos um certo tempo, todos nós, que ao final se esvai, tornando-se preciosíssimo nos últimos momentos. Nesses instantes, a miraculosidade das coisas volta a se manifestar com a mesma intensidade com que havia brilhado na infância.
Na UTI, o homem via serem desperdiçados seus últimos instantes entre pensamentos íntimos e sensações desagradáveis. Tentou puxar conversa com uma enfermeira que lhe respondeu apressadamente e se desculpou por precisar atender o paciente ao lado, semi-inconsciente. Ele então pediu um computador para tentar conversar por intermédio do aparelho. Tinha tido uma vida solitária, relacionando-se mais por meio virtual que diretamente com as pessoas. A enfermeira lhe trouxe o objeto com o qual o homem entrou em uma sala de bate-papo, tinha passado ali boa parte de sua vida.
Começou então uma conversa, muito atento a cada detalhe, a cada palavra, adivinhando em cada uma delas uma motivação complexa, um drama inteiro; percebia em todas elas a imensa futilidade em que estamos todos imersos, desperdiçando nossas vidas, nosso empenho, nosso tempo. Via também, além disso, as razões paradoxais e profundas desse mesmo desperdício, além de perceber, com clareza e nitidez, cada minúcia a promover e justificar toda a complexidade que se desenrolava na tela. Analisava com extrema atenção até os clichês, discernindo neles a complexidade das motivações que haviam levado o interlocutor a optar pela apresentação desses pacotes. Depreendia assim causas complexas de cada ação revelada na tela.
Perscrutava tudo com atenção extrema, sedento por cada detalhe, obrigando o tempo a se dilatar. Era necessário que o tempo se dilatasse porque aquelas seriam suas últimas gotas da substância preciosa, seus últimos momentos de vida, agora percebidos, nitidamente, como milagres radicais. Tudo, então, o mundo inteiro, foi se desacelerando até a imobilidade quase total, quando o pensamento se libertou do tempo, percorrendo todo o quadro de visão, todas as lembranças do passado, revivendo cada cena distante, cada emoção sentida, percebendo, inclusive, aquilo que seus olhos, anteriormente, haviam se recusado a ver, revivendo tudo reiteradas vezes até o esgotamento de todas as coisas, até que sua vida inteira tivesse sido espremida de dentro de um único instante revelando todos os seus detalhes.
O instante durou quase uma eternidade, até a fruição total de cada emoção vivida e revivida nele, até o esgotamento de todas as novidades, e a invasão, finalmente, do tédio, permitindo a finalização do instante e o abandono da vida.
Fora da historinha que eu contava para Ana Luiza, eu tentava hipnotizá-la; transportá-la para um mundo de tempos dilatados que a sorvesse e a engolisse, levando-a para dentro dele, encantada, transformando-a momentaneamente no homem que se dissolvia em um único e longo instante no qual vivia e revivia sua vida inteira em cada detalhe, e que se tornava, ele, a moça que lia a história, e o homem que a escrevia. Que se tornava, este, também, a moça para quem ele narrava a história, construindo uma história encantada que mergulhava dentro dela mesma, desencavando de si mesma o vasto mundo entrelaçado a percorrer o tempo indefinidamente.
E então, mandei um e-mail para que ela mergulhasse na história e, encantada, revivesse o momento dilatado do moribundo vivido na pena do escritor revivido em seus olhos ao recriar o moribundo a dilatar o tempo indefinidamente...