O comprador de futuro
Abre a porta... abre a porta... –alguém do outro lado, esmurrava a porta parecendo que ia derruba-la, em pânico, ela abre rapidamente e ele adentra esbaforido...
Sai... sai... vai pra lá, não diga nada...
Estupefata, ela olhava para aquele homem de semblante estranhamente familiar, com os olhos saltando as órbitas, o rosto vermelho como se tivesse sido acometido por um grande torpor alérgico, os lábios serrados e comprimidos como quem apertava os dentes, o peito subindo e descendo revelando uma respiração ofegante e frenética... ela atônita e tremendo dos pés à cabeça, o coração quase saindo pela boca, principiou...
Olha se é dinheiro eu vou avisando logo, eu não tenho nada, praticamente nada, não vale um assalto a ninharia que a vida tem me reservado todos os meses do ano, todos os anos das...
Hei, já chega... –respirou fundo e repetiu –já chega, eu só queria saber qual a possibilidade de alguém ter me visto aqui, ao subir essas escadas desse prédio infeliz, diga-se de passagem...
Ué como eu vou saber...
Não se faça de besta você mora aqui, deve saber a que horas há uma maior circulação desses infelizes que habitam esse pardieiro...
Olha... –ela começou toda nervosa com a voz um tanto embargada –se é assalto eu não tenho nada, nada mesmo...
Quem foi que lhe disse que isso é um assalto criatura...
Então o que significa essa invasão...
Também não é uma invasão...
Então acho que você é um louco –disse com o medo já se esvaindo, devido uma estranha sensação de alívio e simpatia pelo sujeito, ou sei lá o quê, que era aquele indivíduo, pensou consigo mesma e, emendou –pra invadir a casa dos outros dessa maneira, eu devia chamar a polícia...
Então você acha que a polícia resolve alguma coisa...
É a lei não é...
A lei minha cara, é um engodo e dos piores que a humanidade já inventou na face dessa terra...
E quem é você pra falar assim com tanta autoridade...
Bom, deixe de lenga lenga e me responde de uma vez por todas... eu posso ter sido visto por alguém entrando aqui nessa coisa a qual você deve, com certeza, chamar de minha casa...
Não –ela respondeu com uma raiva dissimulada, pois o medo inicial havia desaparecido completamente, mas uma sensação muito esquisita começava a lhe dominar –a essa hora da madrugada, as pessoas trabalham, estão dormindo...
Ah, que bom, fico mais tranquilo...
Tranquilo, mais um pouco você vai ter um troço... tomara que tenha...
Pode ficar tranquila que eu não terei...
Como você sabe... o que eu estou vendo não é isso...
Bom, vamos logo direto ao que interessa...
Ah, que bom já era hora –ela disse ironizando num quase sorriso.
Vou lhe dizer por que estou aqui...
Ah, que bom... –disse mais uma vez em tom de ironia...
Não faça troça de mim, pois o que eu tenho a dizer é muito sério e muito triste...
Você devia parar de tanto mistério, e dizer logo porque eu preciso dormir, as pessoas trabalham não sei se você me compreende...
Tudo bem, tudo bem...
Então vamos lá, conta...
Como eu poderia dizer... deixe-me ver uma maneira melhor...
Vamos homem fale logo... –disse Lígia impaciente.
Eu vim comprar o seu futuro...
Por um momento ela pensou não ter ouvido aquilo, não, com certeza ela ouvira errado, sua cabeça começou a girar como se ela fosse ser tomando de uma forte enxaqueca...
Você...
Isso mesmo, é isso que você ouviu, eu vim comprar o seu futuro...
Mais isso é impossível...
Não, não é impossível, e por isso estou aqui..., ele já não seria mesmo uma grande coisa... se quiseres posso lhe mostrar alguns trechos...
Você é completamente louco...
Não achas que o que você vive é que é uma loucura? ... nunca parou pra pensar nessa vidinha de merda que você leva...
Escuta aqui, quem você pensa que é pra falar assim da minha vida...
Escuta aqui, digo eu e, chega, chega de histeria... –ele disse quase num princípio de cólera e, então percebeu que ela subitamente empalidecera, e continuou – você quer ou não quer, vender esse seu futuro de merda...
Ele apalpou o bolso procurando alguma coisa, à princípio ela até pensou que ele fosse pegar um celular, mas quando viu o aparelho ficou em dúvida, aquilo não era um celular, parecia, mas não era, tinha um aspecto estranho, extremamente fino, e flexível... ele apenas tocou e o objeto se iluminou, uma luz foi tomando todo o ambiente de tal forma, que ela por um instante, pensou que já fosse dia claro...
O que é isso –perguntou estupefata.
Um diluidor de futuro –respondeu indiferente ao espanto dela, e perguntou mais uma vez –e aí, topas ou não...
Espera aí, o que eu ganharia em troca, vendendo para você o meu futuro...
Ué... você estará liberta de todos os sonhos que lhe prenderam até hoje...
E por que eu teria que me libertar dos meus sonhos, aliás o que lhe faz acreditar que estou presa aos meus sonhos...
Ora, tudo o que você acredita... –olhou para parede onde umas imagens começaram a ser formar e, interrompeu o discurso de sua interlocutora –olhe, está vendo...
Ela começou a prestar atenção nas imagens que foram surgindo a sua frente, seu semblante foi estampando uma surpresa assustadora, de repente ela se viu dentro de um coletivo lotado, sentada e olhando através da janela, suas lágrimas caiam compulsivamente como uma enxurrada, era incrível mas, ao mesmo tempo em que via a sua imagem ela podia também ouvir o seu pensamento... estava desiludida com a vida, casara-se com quem não queria, e na verdade não sabia bem o porquê, quando se deu conta já estava no altar e, agora sentia-se como se aquela vida não lhe pertencesse, não via a hora de se separar, mas tinha as crianças... você tem que pensar nos seus filhos, dissera sua mãe, quando ainda estava viva...
Ah, meu Deus –ela deu um grito abafado, com as mãos na boca –não isso não vai acontecer... diz pra mim que não vai...
Já aconteceu, minha cara...
Como assim minha mãe está viva...
Esqueceu-se que isso é apenas uma página do seu futuro...
Mas..., meu Deus...
Seja Deus ou qualquer outra coisa que você queira acreditar, isso é o que já aconteceu, por que é justamente o que vai acontecer...
Mas, eu também não tenho a mínima intenção de me casar...
Pois é, mas vai, e não está tão longe assim disso acontecer...
Filhos, meu Deus, filhos... como, logo eu colocar filhos num mundo que nunca acreditei que mereça uma criança sequer...
Ele parou, olhou bem pra ela, se deliciando com a estupefação da mulher incrédula à sua frente e disse...
Quer continuar..., seu futuro minha jovem não vale quase nada, ele não vale apena...
Não, isso não é possível, não pode ser verdade...
Verdade... verdade... o que é a verdade minha cara... senão uma construção do acaso metido a besta chamado destino...
Mas, eu não acredito em destino –disse ela, agora com os olhos turvados.
Ele não tá nem aí se você acredita nele ou não... ele é e pronto, independe de sua consciência...
Mas, eu não acredito e pronto...
Que mania que as pessoas têm, de achar que tudo depende da consciência... –a encarou firmemente olhando em seus olhos e disse –posso continuar ou não... ela interveio antes que ele continuasse...
Espera aí, eu preciso de um copo d`água –sua respiração estava ficando ofegante, seu peito subia e descia como uma montanha russo...
Ok, -ele disse calmamente.
De repente o clima dentro daquele apartamento se amainara e um ar amistoso se instalara, impossível de se pensar quando da chegada do estranho homem...
Não aceita um copo de também...
Não, obrigado...
Lígia caminhou em direção à cozinha, como se estivesse envolta numa densa neblina, como num sonho do qual não via a hora de acordar.... esses eram, sem dúvida, os piores quinze minutos de sua vida e, tinha uma forte impressão de que nunca mais sairia... abriu a geladeira retirou a garrafa d´água, estendeu a mão e pegou um copo que estava encima da pia, suas mãos tremiam um pouco e chegou até a derramar um pouco de água, encheu até a borda e bebeu praticamente de um só gole, suspirou e virou-se em direção à pequena sala, por um momento desejou que quando chegasse ali, aquele homem, que recusava-se a se sentar, tivesse desaparecido num passe de mágica, mas para sua decepção, ele continuava parado no mesmo lugar olhando para o que estava sendo projetado na parede da sala... a projeção não se parecia com nada do que ela já tinha visto, era como se fosse uma janela para uma outra dimensão, como se tivesse um buraco dando acesso aos dias viriam em sua vida... quando ela voltou, mirou bem os olhos dele e disse...
Mas, o que me garante, que todo o meu futuro será ruim...
Bom, aquele dia que você acaba de ver, é justamente o momento de sua vida em que você percebera que nada valeu a pena...
Mas você disse que não estava tão longe assim...
Calma –interveio com um olhar irônico e, disse – o tempo é muito relativo... e, eu disse em relação ao seu casamento...
Então quer dizer que aquele dia que acabo de ver, muitas coisas na minha vida já teriam acontecido, pois os meus filhos já estariam bem crescidos e eu estaria vivendo os sintomas do desgaste de uma relação de muitos anos e passando por uma certa decepção em relação até ao fato de ter sido mãe...
É mais ou menos isso... na verdade você, não está num dia tão distante assim, pois fora mãe recentemente, de duas crianças, tivera depressão pós-parto, mas independente disso...
Como, assim... –interrompeu bruscamente, Ligia...
Você carregará por todo os resto de sua vida, uma solidão profunda que irá lhe ferir a alma constantemente... esse ponto de sua história que acaba de ver... é o ponto onde a maioria das pessoas percebem que todo o resto será perfeitamente previsível e, nada mais de novidade acontecerá...
Mas eu quero continuar com o meu futuro assim mesmo...
Você não sabe o que poderia ganhar em troca de um futuro medíocre...
Olha, eu sei que você não quer admitir, mas os sonhos lhe predem, os sonhos lhe aprisionam, é assim com todo mundo, desde que o mundo é mundo... e numa sociedade capitalista isso é bem mais sintomático...
Mas, espera aí, do que nós estamos falando... até alguns minutos atrás você estava pedindo para eu lhe vender o meu futuro e, agora estamos nessa conversa doida sobre se os sonhos são ou não são, uma forma de prisão...
Calma... Lígia...
Como você sabe meu nome...
Isso é uma outra história...
Ela olhou pra ele, com olhos de desconfiança e interrogação, e então perguntou...
É... qual é mesmo a ligação entre você comprar o meu futuro e toda essa história de sonhos...
Você é mesmo distraída hein... bom, você me perguntou o que você ganharia....
Ah, lembrei –interveio abruptamente, Lígia e continuo –eu ficarei livre dos meus sonhos, que segundo você me aprisionam... mas, se eu lhe vender o meu futuro eu não mais terei o amanhã, lhe vender o futuro é lhe vender a minha própria vida...
Não minha cara, aí é que você se engana... o amanhã não depende do futuro e, sim o futuro... é que depende dos sonhos, e sem o futuro o amanhã é apenas uma página em branco sem escrita alguma, página branca de sentidos, mas também sem dores de desilusões...
Eu ainda não consigo ver o que é que eu ganho com isso...
Bom, vamos lá que eu já estou me cansando... ah, sabe aquela dívida impagável do seu cartão de crédito, as mensalidades atrasadas daquele seu curso meio boca, naquela faculdadesinha que não lhe dará futuro nenhum...
Tá o que que tem...
Ah, e esse apartamento horrível que você é obrigada a viver com sua amiga... tudo isso pode simplesmente desaparecer e, mais você poderá ter uma vida confortável, longe de toda essa miséria a qual você vive reclamando... só depende de você...
Ah, e de onde vai surgir todo esse dinheiro, não acho que você tenha tudo isso... e quer saber, já deu essa conversa...
São quatro milhões de dólares...
O quê, quatro milhões de dólares...
Exatamente, quatro milhões de dólares...
Mas, eu não vou acabar mudando o futuro de todos a minha volta ao desistir do meu futuro...
Não, minha cara, apenas o seu futuro desaparecerá...
Lígia, ainda não acreditando naquela loucura, pensava como seria ter quatro milhões de dólares na conta, poderia ajudar sua mãe, ir ao exterior, fugir daquela vida de merda, que ela não queria admitir... ela o encarou e viu que seus olhos brilhavam, como se soubesse que ela aceitaria, então ainda sem acreditar na possibilidade ela disse...
Tudo bem, então aonde está todo esse dinheiro...
Você está decidida mesmo a aceitar..., pois não haverá volta...
Sim, estou, aonde está...
Aceita mesmo, diga que aceita e eu lhe darei uma prova imediata...
Sim, sim... eu estou de acordo...
Então tudo bem... já está na sua conta...
Não, acredito...
Então consulte o seu saldo...
Quando ela se dirigiu à cozinha aonde tinha deixado a bolsa com a sua carteira ouviu um estrondo, como que se alguém tivesse arrombado a porta, correu pra ver o que era e, então percebeu que o sujeito não estava mais ali... de repente o telefone tocou..
Ela deu um pulo na cama, banhada em suor e, disse em seu pensamento... meu Deus que sonho louco... pegou o celular 03h45, por alguns minutos ficou sentada na cama, pensando naquele sonho tão real, de repente uma angustia lhe tomou a alma e o coração começou a bater tão forte que parecia que ia sair pela boca, ofegante se levantou e foi até a cozinha tomar um copo d´água, puxou uma cadeira e sentou-se, o olhar paralisado e uma sensação claríssima de que aquilo não podia ter sido um sonho, uma música foi chegando em seus ouvidos gradativamente, como se alguém tivesse aumentando o volume lentamente, só então ela pode perceber que era o seu celular despertando, correu até a cama e desligou o alarme, mas de súbito lhe veio à cabeça... deixa eu ver o meu saldo, acionou o aplicativo do banco no celular e então levou a mão a boca, os olhos quase soltaram e um frio como se fosse um soco no estômago seguido por uma palpitação no coração que lhe fez perder a respiração... 12.000.158,00...