Conversa Com Um Anjo I

Bruna, sentada no início do declinar do dia no quintal de casa, entregue ao silêncio inebriante, deixou a mente amiga falar por si, descansaria por algum tempo os instrumentos de trabalho que arregimentam a personalidade no agora, testou mais uma vez o que aconteceria deixar ela à deriva, como criança brincando no jardim. Os sentidos ficariam no “off line”.

Apareceu a indagação: O que é um casal feliz?... vidas unidas por um destino, aceito manso e pacífico por ambos?... vida consentida , como sendo uma e duas. Ou não? É possível ter um relacionamento a dois feliz até o final? Lançou o tema, nada mais.

No furinho do imaginário se apresentou um anjo, daqueles que tem asa e tudo, batas brancas, mangas largas; somente não conseguiu visualizar a cor dos olhos(dizem que em alguns, são azuis). A pele? Ah! Bronzeada. Trazia as mãos um livreto, negro, bem pequenino.

Chegou bem a frente da moça, e parou. Ops!! Agora bem próxima dele pôde ver a cor dos olhos! Não eram azuis, mas negros; como duas jabuticabas. Cabelos crespos, boca carnuda, de uma beleza intocada, impermeável à cobiça, inveja, desejos instintivos de sexo( reação que dizem existir quando em contato com seres angelicais).

Espantou com a mensagem velada do intruso, um certo “pacifismo amoroso “, Bruna permaneceu imóvel, olhando dentro dos seus olhos, bem fundo...aproximou tanto dentro de si que passou ficar ofegante com o absurdo da audaciosa humildade dele, parecia querer se servir para algo.

Ela, que estava sem os instrumentos dos sentidos , não abriu a boca para dizer um “a”. Mas o dialogo se estabeleceu naquela sala da mente. Ele iniciou :

___Que tema delicado este! Vim porque ouvi sua indagação, você estava tão quieta, descontraída, indiferente ao desejo, do imediatismo da reação do corpo! contemplar o funcionamento da mente é bom, é neste campo que atuo no auxilio dos homens; nesta esfera trabalho na vanguarda junto aos casais que me são conferidos para dar assistência. Quando encontro as águas tranquilas das almas para serem ajudadas, me realizo naquilo que fui apartado, faço o que posso para passar sugestionamentos, para que a peça feita de cristal, que é a vida a dois, não se quebre.

Finalizou:

___Qual sua necessidade? Quer se esclarecer do que?

Bruna abaixou os olhos, depois, foi direta:

___É indiscutível a máxima dita pelos sábios orientais, que o sofrimento é uma das maiores verdades na existência; nascer, crescer, adoecer e morrer são concausas que não temos como renuncir neste mundo. Isso dói, querido anjo! mas junto tem a miscelânea cremosa do amor que liga as partes, que é o mesmo que religa um e outro na expectativa do ser feliz a dois. E o casamento e obrigações associadas; filhos, a erosão, corrosão das emoções no tempo, a mudança no subjetivo das partes, um vai... o outro, às vezes fica, ou foi para outro lado, a moral e a ética neste contexto, os abraços que passam não conjuminar nos dias num mesmo rumo... Diga, anjo! O que você tem visto em suas andanças?

O anjo pegou o livreto, abriu, folheou-o. Foi...voltou as folhas...até que parou os olhos em uma, leu algumas linhas em silêncio. Disse:

___Aqui tem breve relato dos mil anos de trabalho que exerci. Somente aqui na terra, há duzentos.

Fechou o livreto, continuou:

___No protocolo que sigo me foi tolhido o poder de ler nas profundezas dos espíritos que me são confiados, nunca saberei quem realmente foram, seus sentimentos, suas escolhas; se foram honestas ou não. A minha constituição não tem natureza humana, existo talhado para fins da ordem estabelecida, assistir a humanidade no caminho da volta para o interior. Mas entres os casais que sobreviveram em aparente harmonia até o final da vida, destaco um, que merece ficar nos anais da história.

Plotarco e Isadora. Aparentavam ter vida interior tumultuada, cheia de altos e baixos, além da vida conjugal ter sofrido intempéries delicadas, mesmo assim, conseguiram ir até o final. As partes dominaram a linha mestre do relacionamento, ficou estabelecido por elas uma certa “política de convivência” que adotaram na rotina. Testemunhei horas, dias, muitas vezes um e outro no silêncio em seus mundos; a parte que identificava a necessidade do ilhamento do outro, não prejudicava com chamadas de atenção para aceitação e convívio. Quando Plotarco estava em seus dias turvos, Isadora, numa habilidade artística, gerenciava suas carências de diálogo e atenção com atividades, compromissos que criava para deixar o outro no espaço que pedia, numa linguagem sem fala. E assim vice e versa.

Ela, no auge das suas indignações e arroubos, era pega de surpresa com ele chegando em casa determinando o interromper das suas atividades para passeio a lugares que os dois definiram como somente deles. O casal tinha o código de conduta “ de cor” na mente, reconheciam os sinais um do outro para a hora do calar, acarinhar, faziam-se muitas vezes de cegos... mudos...surdos..., permitiram cada um expressarem suas naturezas em seus excessos, sem reação de surpresas ou indignação. Levaram muitos desarranjos e falhas um do outro para o esquecimento, fatos que nunca mais falaram sobre.

Não se via mais um pedindo perdão ao outro, depois de alguns anos. Cumplicidade...aceitação. Como se inexistisse paredes, e ao mesmo tempo mantidas as individualidades

(Continuação no próximo capítulo)

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 19/04/2017
Código do texto: T5975371
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