A casa da mamãe
A casa da mamãe tem os cabelos mais difíceis de serem penteados. Gasta-se uma hora para arrumá-los. Prendê-los, então, exigem-se cuidados.
A primeira vez que os penteei, não sabia dos gatos. Pousei, maciamente, o pente no alto dos cabelos e o deslizei em direção às pontas. Tamanho foi o meu susto com a quantidade de gatos que caiam. Alguns mais difíceis obrigaram-me a deixar o pente e agarrá-los à unha. Segurava-os bem forte entre os dois polegares e concentrava toda a minha força que muitas vezes não fora suficiente, e precisei usar mesmo de pauladas.
Eles ainda existem numa quantidade inacreditável. Todos são gatos mandriões e não gostam da mamãe, só da casa. Ela fica no fundo de um terreno grande, uns cinquenta metros de uma rua muito movimentada. Na frente da casa, o terreno é calçado à antiga, com grandes lajotas desiguais, e o capim insiste em mantê-las separadas e meio soltas. Quando pisadas, elas dão alarde. Impossível chegar sem aviso, mas eles chegam. Não é por acaso que eles são gatos!!! Vêm tomar banho e saem molhados deixando marcadas todas as saídas da casa que tem muitas portas. Uma só para os fantasmas, vêm aos montes, ficam dias e dias, quando menos se espera, vão. Não definitivo, eles estão sempre voltando.
A casa da mamãe tem uma porta de correr toda de vidro, quando as cortinas estão puxadas, é possível admirar as flores que enfeitam a sala. Até eu conhecê-la, nunca tinha visto flores no cárcere. Sinto tanta pena... tão lindas, inofensivas e presas ao vaso.
A sala, também é cela do cuco que de hora em hora grita, enquanto eu conto as pancadas. Diariamente, à zero hora, ele me chama. Eu lhe prometo um dia soltá-lo, e às flores quebrar o vaso. Mas esse dia está longe.
Antigamente, eu perdia horas admirando a casa mais bonita da vizinhança, que descobri espaçosa e tão exótica quanto imaginada, mas sombria. Todas as cortinas vão do teto ao chão e vivem todas cerradas. É atrás delas que as sombras brincam de esconde-esconde numa diversão macabra. Percorrem a casa na ponta dos pés exalando um cheiro que me provoca náuseas: flores velhas.
Não há vozes, só miados que me remetem a um zoológico deserto cujas espécies foram exterminadas. Só restaram os gatos.
As noites, na casa da mamãe, são de insônia, ninguém dorme. Eu passeio pelo lado de dentro e os gatos, pelo lado de fora. Nesses passeios, estou sempre me lembrando da primeira vez em que entrei aqui e tinha um corpo, no meio da sala, semelhante a um vaso de porcelana chinesa: frágil, belo e frio. Tinha os olhos, meio abertos, e percorriam atentos cada objeto: os móveis, o tapete, as flores de cor amarela. Nesse dia elas deixaram o vaso que as esperava num canto.
O papai deu luz ao cenário quando acendeu uma vela e chegou bem perto, parecia fotografar as retinas com lamentos que lembravam poemas. Eu não percebi, o que só hoje eu sei: um gato hipnotizado diante de um aquário. E fico pensando no quanto é estranho a convivência harmoniosa desses elementos: um corpo, um enamorado em cena, um vaso vazio, um gato, um aquário e as velas. Tomei para mim, do papai as dores, do corpo os poemas, da mamãe a casa.
A casa da mamãe costuma passar o natal no céu. Levada por todos os gatos, a caravana parte em procissão. Voltam leves e purgados. É nesta ocasião que eu tiro férias. Aproveito para ler, descansar. Nunca me ausento, temo não tornar a tempo, lá se vão os lençóis limpos e todo o leite.
A casa da mamãe pertencem aos gatos que usam botas, quando saem a pé, mas se sentem bem mesmo sobre quatro rodas.
Pobre do papai, não tem a casa, ela e que o tem. Domina-o a mamãe e os gatos, todos morando num balaio nos arredores da casa, e todos pardos.