A sorte está lançada
A recepcionista me levou até uma antessala sem janelas e me disse para aguardar. Lá já estava uma moça de aparência comum, nem feia nem bonita, vestido escuro, casaco de chenille cinza. E brincos de pérolas. Sim, delicados brincos de pérolas.
- Bom dia - saudei, sentando-me no único sofá do recinto, na extremidade oposta à dela, em frente à porta da sala do Ministro.
- Bom dia - respondeu, ar vagamente inquieto, como que a pensar se ainda iria chegar mais gente e onde iriam se instalar. E depois me encarando, muito séria:
- O senhor tem horas?
Fiz um gesto evasivo.
- Perdão... não sei se é nova aqui, mas não nos permitem ter relógios. Nada que marque o tempo. Não me lembro de ter visto um sequer, desde que cheguei.
- Sem relógios - disse ela, ar ressentido - numa sala sem janelas de um prédio sem janelas. Com iluminação artificial para que não se saiba se é dia ou se é noite.
- Bem, certamente era dia quando entrei no prédio - retruquei, tentando parecer despreocupado.
- E quanto tempo demora para que o Ministro chame? Tem alguma ideia? Parece-me estar aqui há horas!
Balancei negativamente a cabeça.
- Não tenho ideia. É a primeira vez que sou chamado pelo Ministro. Recebi uma intimação pelos Correios. Algo a ver com o artigo 77.
- Artigo 77? - Ela me olhou surpresa. - Também fui chamada com base nele!
Nos olhamos novamente, agora sob um novo ângulo. Ela estendeu as mãos, pequenas e delicadas em minha direção. Eu as tomei entre as minhas e elas estavam frias. O rosto dela deixava entrever uma forte emoção, que palavras não seriam capazes de exprimir.
- Então é você... - consegui dizer a custo.
- Eu acho que sim... - disse ela - creio que sou eu.
- O que será de nós? - Senti meus olhos marejarem.
Ela retirou suas mãos das minhas e abriu a carteira de couro cinza que estava em seu colo. Puxou um lenço e me entregou, sem dizer palavra. Enxuguei os olhos.
- Eles nos mandarão de volta, mais uma vez - prossegui, sentindo o peso da derrota sobre meus ombros. - Eu não quero voltar.
- Ninguém quer voltar - disse ela, em tom decidido. - Quero avançar, não voltar para trás.
- Mas o Regulamento... - comecei a dizer.
- Ao inferno com o Regulamento - ela interrompeu-me. - Se alguém nas Esferas Superiores cometeu um erro, não cabe a mim ou a você pagar por isso!
A porta da sala do Ministro abriu-se e era ele próprio quem nos encarava, sorrindo um sorriso triste.
- Vocês formam um belo casal - declarou, com sua voz profunda.
E como não nos animássemos, conclamou:
- Venham! Temos planos para vocês!
Erguemo-nos. Estendemos a mão um para o outro, e de mãos dadas, entramos no gabinete.
Com ar de satisfação, o Ministro viu-nos entrar. Em seguida, fechou a porta atrás de nós.
[27-02-2017]