As Rosas da Lua

1.

Todos nós temos o dom de encantar pessoas através de nossa arte, uma vez que cada um de nossos sentidos funcionam como uma passagem direta ao coração, no sentido mais figurativo possível. Há quem tenha habilidade com cores e palavras ao ponto de encantar os olhos, ou ainda que pelo som, conquistam os mais ternos ouvidos, muitas vezes embalando um ritmo perfeito para o contato da pele no ato da dança. Existem também os seres de talento invejável na arte da culinária, explorando todo o universo de sabores que o nosso paladar é capaz de assimilar. Nenhuma dessas virtudes havia se manifestado em mim com tanta intensidade quanto a capacidade relacionada ao olfato. A capacidade de criar fragrâncias e aromas através do estrato de certas plantas e seus frutos acabara fazendo de mim um perfumista nato, requisitado por muitas pessoas na produção de perfumes exclusivos.

Contudo, antes de negócio, esse era um estilo de vida: algo do qual não sentia-me obrigado, mas sim necessitado a fazer. O tempo dentro do laboratório era algo sagrado e inviolável, onde dedicava cada cêntimo da minha existência às minhas criações, pensando não em quanto eu receberia pela encomenda, mas sim em qual seria a sensação do cliente depois de sentir o aroma pela primeira vez, seu estado êxtase que mesmo durando uma fração de segundo, fazia todos os dias de dedicação valerem a pena.

2.

Um dia, uma senhora veio buscar sua encomenda, acompanhada de sua filha, uma menina de sete anos. A pequena estava abismada ao contemplar meu ambiente de trabalho, imaginei logo que tudo aquilo deveria ser como um parque de diversões para a sua mente fértil de criança. Foi então que ela começou a contar uma história a respeito de uma “rosa da lua”. Segundo ela, uma moça que morava em uma casa do outro lado da cidade, gostava de conversar em noites enluaradas com o enorme astro que ficava no céu. A amizade era algo tão especial que a lua havia enviado um buquê de suas flores em uma estrela cadente. Porém, ela veio com tanta força que acabou destruindo a casa e todos que nela moravam, deixando a moradia parcialmente incendiada. As flores ainda estariam por lá, como símbolo da amizade entre os dois. Eram raras e únicas no mundo. A mãe da menina tratava tudo aquilo como uma dessas histórias que inventamos quando criança para evitar o tédio. As duas despediram-se e saíram da loja, mas aquela expressão “rosas da lua” continuava ecoando dentro da minha cabeça. Como se sua beleza fosse algo tão intenso que era impossível não existir, como se fosse a materialização do mais abstrato sentimento.

A medida que o tempo avançava, a ideia se fixava cada vez mais no meu pensamento. Talvez essa flor realmente existisse, ou ainda, se realmente possuísse tal beleza, também teria um perfume agradável, o que poderia ser uma descoberta de uma nova e encantadora fragrância. Cada vez mais aderia aos devaneios da pequena jovem, até que no dia seguinte, apenas para forçar a ideia de que aquilo não era real, decidi passar em uma floricultura da cidade e perguntar sobre tal flor.

Não havia ninguém no balcão, mas ainda assim, ouvi um barulho ao fundo das instalações. Bati palmas. Uma moça apareceu, de cabelo preso, avental e segurando um vaso de orquídeas. Tinha uma aparência jovial e um sorriso tranquilo, mesmo que parecesse estar afogada até o pescoço de trabalho.

3.

- Boa tarde senhor – disse ela colocando o vaso de lado – em que posso ajudá-lo?

- Boa tarde. Estou à procura de flores conhecidas como rosas da lua.

- Rosas da lua? - retrucou ela – Deixe-me adivinhar, uma certa garotinha falou sobre isso com o senhor, acertei?

- Sim – concordei constrangido.

- E o senhor sabe muito bem que coisas assim não existem...

- Sei – respirei fundo, procurando algum lugar onde pudesse esconder minha cara.

- Segundo o que ela falou, elas crescem em um casarão abandonado não muito longe daqui. Talvez encontre alguma coisa por lá, mas vai precisar de ajuda, já que existe uma enorme tábua bloqueando a passagem de uma das portas do corredor...

Pela descrição, pude então perceber que ela também havia acreditado na tal lenda e que tentara fazer sua própria busca, mas eu ainda desconhecia seus motivos. Depois de uma rápida conversa, ela havia admitido que as palavras da menina acabaram tocando a parte do seu coração que amava cuidar e criar arranjos com as flores. Instantaneamente buscava criar a imagem perfeita da flor a partir de recortes mentais das características de outras flores. Era uma receita complicada de medidas inexatas, o que resultava em um ponto perfeito que nunca era alcançado. Tanto eu quanto ela acreditávamos que era algo que ainda não havia sido traduzido, e que éramos capazes de fazer tal tradução e assim, encantar pessoas.

Pedi a ela que fosse até lá comigo, mas como tinha de cumprir seu expediente e precisaríamos fazer isso sem chamar atenção das pessoas, acabou marcando para aquela madrugada, às 4:00 da manhã. Agradeci.

4.

Encarando a ansiedade provocada pelo horário, decidi aplicar aquele tempo na organização das ferramentas, volta e meia sorrindo comigo mesmo por me dedicar de tal modo à algo que eu mal sabia se existia ou não. Saber que eu não era o único ajudava a reconfortar essas inquietações. Com a mochila nas costas, cheguei ao local no momento combinado. Ela se atrasou um pouco, contudo estava tão empolgada quanto eu. Frente ao portão da casa, olhamos um para o outro e respiramos fundo:

- Está pronta? - perguntei.

- Vamos nessa! - respondeu ela.

O portão estava trancado.

Decidimos então pular pela mureta de proteção, usei minhas mãos de apoio para que ela fosse primeiro, em seguida, tomei impulso e consegui me segurar, embora pouco antes de aterrissar do outro lado, tenha me desequilibrado e caído feito um saco de batatas. No início, ela ficou preocupada, mas depois que viu que tudo estava bem, sorriu com uma sutileza indescritível, contagiando até mesmo a mim, que era acometido por uma dor semelhante a uma costela quebrada. Quando finalmente me recompus, adentramos o casarão. Não fora muito difícil, a porta havia sido atacada por cupins e a fechadura carcomida pela ferrugem, apenas um leve empurrão e estávamos dentro. Uma escuridão avassaladora pareceu emergir da casa em direção a porta de saída, como se estivesse a tempos querendo se libertar daquela prisão. Lamentei por ter colocado tanta coisa na mochila e ter esquecido justamente da lanterna. Por sorte, a florista que me acompanhava havia deixado um lampião logo na entrada.

5.

Subimos uma escada ao segundo andar até chegar no tal corredor que estava bloqueado. Tratava-se de um monte de madeira que havia desabado do telhado. Forcei um pouco, mas não tive muito sucesso, então pedi a ela que tomássemos distância e então chutar o obstáculo com o impulso da corrida. Cinco passos parecia ser razoável, então contamos até três e nos jogamos com toda a força. Foi então que todo aquele entulho desabou sobre nós.

Consegui sair com muito esforço, não que fosse muito pesado, mas acabei atingido pelos pedaços de madeira e telhas que desabaram, sem contar a camada de pó que me deixava igual um espírito zombeteiro. A florista também não tinha se dado muito bem, mas conseguiu escapar com alguns arranhões. Respiramos um pouco e continuamos a jornada.

A medida que avançávamos, era possível ver marcas de fogo nas paredes certamente provenientes do tal incêndio que muitos alegaram ter acontecido aqui tempos atrás. Vez ou outra, um barulho nos assustava, ou ainda, a corrente de ar deixava sempre aquela sensação de alerta, como se estivéssemos sendo observados. A lua estava cheia, o que deixava transparecer um véu de luz azul entre algumas goteiras no que havia sobrado no telhado. Alguns cachorros de rua uivavam ao longe, tornando o silêncio ainda mais assustador. Começamos então a conversar, na tentativa de que aquilo diminuísse um pouco o medo.

Alcançamos então uma passagem que parecia dar acesso à uma estufa. Uma luz branca escapava pelas frestas da porta.

- Talvez seja ali – disse ela.

Bastou alguns passos para que o piso de madeira começasse a ranger, contudo ela não conseguira ouvir, até o momento em que o chão cedeu. Pelos meus cálculos, aquela era uma dolorosa queda de pouco mais de dois metros. Por sorte, eu havia conseguido segurá-la pelo braço. Contudo, minha mão começara a transpirar por causa do esforço, então pedi que ela segurasse mais firme ainda. Temendo não ter forças para uma segunda tentativa, puxei-a em um único impulso. Estávamos a salvo.

6.

Era um motivo mais que o suficiente para comemorar, mas o problema era que agora, a porta ficara completamente inacessível. Toda a nossa jornada chegara ao fim por causa de um buraco que ia de uma parede a outra e dividia o chão tal qual o mar vermelho.

- Acho que é hora de ir pra casa – falei.

- Não acredito que passamos por tudo isso, quase morremos por duas vezes, para no final das contas, desistir aqui?!

- Apesar de tudo, eu estou feliz – sorri – Sabe, certa vez, um amigo escritor me disse que duas pessoas não são amigas até o momento que possuem uma história para contar. É um pouco frustrante conviver com essa dúvida eterna se essas flores existem ou não, mas sabe, pelo menos agora, além de uma história pra contar, ganhei uma amiga, e até esse ponto da história, isso parece ser bem mais do que aquilo que eu mereço.

- Também sinto o mesmo – sorriu ela – essa vai ser uma ótima história pra se contar no futuro, sem contar nas muitas outras que ainda vamos ter pra compartilhar.

Passamos um bom tempo jogando conversa fora, até que eu disse:

- Certo, vamos nessa. Se me der corda, acabamos conversando até amanhã... - sorri.

De repente, o rosto dela se iluminou:

- Espera, o que você falou?

- Que quando me empolgo acabo falando demais, então se você der corda...

- É isso! Vi algumas cordas lá embaixo. Se conseguirmos prendê-las na madeira do telhado, conseguiremos atravessar no melhor estilo Tarzan.

- Essa ideia não é meio arriscada? - perguntei perplexo.

- Como todas que valem a pena. Essa é a única chance.

Pensei um pouco, o sonho ainda estava vivo e agora era hora de apostar todas as fichas. Amarramos um castiçal de aço na ponta da corda o jogamos no espaço entre as telhas e a madeira de sustentação do telhado. Depois de quase 20 tentativas, ela conseguiu. Forçamos um pouco a corda para baixo, ao que parecia, ela conseguiria suportar o nosso peso.

- Quem vai primeiro? - perguntou ela.

7.

Decidi então me arriscar. Segurei na corda e me joguei. Apesar do medo e do estranho barulho que o telhado fazia, aquela fora uma das melhores sensações que já havia sentido na vida. Quando chegou a vez dela, houve uma pequena hesitação. Algumas coisas não são difíceis de se prever, mas nem por isso são fáceis de se encarar. Ela então fechou os olhos e se jogou, caindo do outro lado com sucesso. Comemoramos por um breve momento, até que chegara a hora de finalmente abrir a porta. As expectativas chegaram ao ápice naquele momento. Depois de tanto esforço, era hora de conhecer as Rosas da Lua.

O teto de vidro permitia livremente a passagem de luz, algumas rachaduras no teto davam a entender de que a água da chuva acabava escorrendo e regando os canteiros. Neles, rosas brancas cintilavam em perfeita sintonia com a lua, transmitindo um perfume nostálgico e único: a lenda era verdade.

- Melhor do que aquilo que você imaginou? - perguntei a ela.

- Muito melhor! - respondeu ela, também abismada – conseguimos!

- Conseguimos... - concordei.

8.

Coletamos algumas mudas e então iniciamos nossa jornada de volta, dessa vez, sem tantas surpresas. Pulamos novamente a mureta e exaustos, nos sentamos na calçada, bem a tempo de ver o sol nascer pelas costas dos prédios da cidade. Ela tinha de retornar cedo para a floricultura e eu para o laboratório, era hora da despedida. Ela agradeceu a ajuda e disse que sempre que eu precisasse de alguma daquelas flores, poderia ir em sua floricultura. Pediu também para que eu levasse um perfume delas assim que ficasse pronto, era a minha primeira encomenda daquele gênero e sem dúvidas, o começo de uma grande amizade. Por fim, quando cada um seguiria caminhos separados, me dei conta de que ainda não sabia qual era seu nome:

- Meu nome é Margarida, muito prazer! - disse ela.

- O meu é Carlos, o prazer é todo meu. Então é isso Margarida, até a próxima.

- Até... - disse ela com o mesmo sorriso simpático de sempre.

E cada um seguiu seu rumo e sua missão, era hora de voltar a encantar as pessoas, com perfumes, flores, e algumas ótimas histórias...

Neudson Nicasio
Enviado por Neudson Nicasio em 19/02/2017
Código do texto: T5917015
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