O homem na penumbra
Inspirado em Kafka, a quem admiro
e temo....
No subsolo de sua residência o jovem K passa boa parte da vida com uma vela na mão, tentando iluminar as dependências de sua mente e os porões de seu subconsciente. Para ele é comum estar alheio aos pássaros que gorjeiam em liberdade nos galhos respingados das recentes chuvas de verão.
A bem da verdade, o pobre ser mal consegue enxergar o dedão do pé sem queimar as pestanas. A todo instante tropeça em algo sólido, frio e cortante dentro de sua casa. Teias de aranha acariciam asperamente o rosto dele que ao levantar a vela de forma brusca, para ver o que está adiante, deixa todo o resto do corpo na espessa escuridão.
Ainda que o barulho cavernoso do relógio soe o princípio de seu fim, ele abandona-se à própria sorte, tateando desesperadamente antes que o lume apague. Noutras ocasiões, apoiava-se à superfície gélida da parede e esperava por um sol exterior que pudesse, ao menos, esquentar sua omoplata. Em tempos mais recentes começou a andar de costas, voltando pelo caminho já trilhado, pois supunha que a escuridão só existe diante de seus olhos.
De uns dias para cá, afoitamente, deu para imaginar que a escuridão já percorrida e ultrapassada não o amedrontará jamais. Conformado por tal pensamento enxugou a última lágrima que pendia do seu olho e ameaçava cair sobre suas pantufas encardidas. Na noite mais escura, antes que o vento açoitasse com fúria sua inóspita moradia, pôde ouvir ao longe murmúrios e lamentos que feriam seus ouvidos.
Qual não foi a sua surpresa ao intuir que algumas outras vozes estavam murmurando e se lamentando em altos brados, como se o convidassem a bradar também. Além disso, ouviu os baques surdos de pés e mãos batendo contra o concreto. Ficou atordoado, descuidou-se da vela que quase lhe queimou a mão. Ato contínuo, colocou a outra mão ao redor do ouvido, em forma de concha, para poder captar melhor o som de pedras, lajes e concretos desmoronando que lhe chegavam ao corpo, antes mesmo de serem percebidos pelo ouvido.
Por fim, ouviu que as outras casas da vizinhança vinham abaixo com estrondos espetaculares. Sentiu debaixo dos pés o inesperado abalo de seu muro de pedras. Parou, ofegante e temeroso de que a vela se apagasse. Esperou com pavor, depois com ansiedade que suas paredes também estremecessem. No entanto, o silêncio invadiu o seu quintal ao mesmo tempo em que a dúvida anuviou o seu semblante.
Ficou o mais silencioso possível, esperando que suas paredes e sua casa caíssem tacitamente. Preferiu gemer e chorar na vindoura escuridão a ter que usar suas mãos e pés para alguma ousadia aventureira. Desconhece que as casas que foram derrubadas, sem o auxílio dos ocupantes, caíram sobre eles. Nunca saberá que o estrépito e a fuligem abafaram suas vozes e secaram suas gargantas.