Destacara-se como um dos melhores cadetes mas, naquele momento, teve medo de voar. Tinha conhecimentos técnicos de aeronave, navegação aérea, teoria de voo aerodinâmico e medidas de segurança a serem usados em momentos críticos. Fora preparado para tomar decisões acertadas em situação de emergência, e naquela hora, não pôde evitar que uma constipação o apanhasse subitamente. Não sabia se era emoção por aproximar-se o momento de ter em mãos o seu brevê ou de estar no mesmo voo com Vanini. ‘Calma, Fernão, calma! — dizia para sua alma: em situações de risco é preciso ter calma. Fazer da forma mais segura tudo que tem que ser feito’. E dirigiu-se ao toalete.
No trajeto...
— André, é você? 
— Sou André Albuquerque.
— Não te lembras de mim? Fomos colegas no Joaquim Nabuco!
— Gaivota! Quanto tempo!...Não te importas mais com este apelido, não é mesmo?
— Claro que não! Até tenho muita saudade do colegial. Recordo-me de estar pronto para te dar um soco, quando, suavemente, me deste uma tapinha nas costas... ‘Brincadeirinha, amigo!’
— Lembro perfeitamente, disse André. 
Riram.
Uma turbulência cortou o diálogo. Alguém gritou: "Vamos estourar!"
— Coisa passageira — disse outro.
Desfeito o susto, Américo permanecia segurando a mão da freira. Com cuidado e maciez de ela puxou lentamente a mão.
— A turbulência passou! Não tenho permissão ainda para tirar o hábito -- disse irmã Paola escondendo o medo num sorriso pequeno. Ela sempre foi de poucas palavras e muitos sonhos. Graduou-se em Direito e, por causa da faculdade, retardou sua missão como consagrada de Nossa Senhora de Namur. Velhos tempos... Inicialmente, Paola trabalhou em missões domésticas. Viajou, e conheceu muitas tribos indígenas do Brasil. Tinha história para contar: em Goiás, conheceu remanescentes Jês que habitavam o baixo Araguaia, e o Tocantins. Fechou os olhos e riu ao recordar-se do índio que se apaixonara por ela. ‘Índio querer casar mulher branca’ ‘ — Índio ser casado, respondera a freira.'
Aquela comunidade chorava as baixas em combates com o homem branco, em quantidade tanta, que não tinham potes suficientes para depositar seus mortos. Os jês pranteavam o cacique Cuiarana-maxacali do tronco linguístico Macro-Jê, saído do Norte de Minas para habitar Goiás, fora morto durante a construção da Belém—Brasília. Também pranteavam Apinajé, índia desparecida na idade de 12 anos. Morta ou viva não se sabia onde ela estava. 
Paola Napoleone decidira dar nova direção à sua linha de trabalhado, afastou-se da assessoria ao Conflito dos Guajajaras e desligou-se da Escola Brasil Grande, para assumir missão evangelizadora em países da África. Ali, curou a ferida alheia e com a alma na mão, guardou as suas dores na gaveta. Por qual espírito estaria sendo movida agora? Por que lhe vinha à mente o projeto de casar e ter muitos filhos? ‘Deixe-se conduzir pelo Espírito’, dizia, tomando para si as palavras do Apóstolo. Mas, também está escrito: ‘O homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher...’ A ideia pareceu absurda: casar com um jogador do Saint-Ettiénne, um brasileiro que conheceu na sala de embarque do aeroporto do Rio — muito mais novo que ela? Não, não poderia sequer pensar nessas coisas, mesmo porque, embora Américo a tenha cortejado com cuidadosa atenção, não lhe fizera nenhum pedido de namoro. Nem poderia! Era consagrada a Deus com votos de pobreza e castidade. ‘Pode um homem tomar para si a esposa de Deus e não ser culpado de morte? Não figurava em seus planos morar na França. Seu projeto para o futuro seria voltar às raízes, fixar residência na Itália e escrever livros, muitos livros.’
Compreendera que a vocação para a vida consagrada é dom de Deus e alcança casados, viúvos, solteiros, velhos e jovens. ‘O próprio Deus convoca-os junto a si por sua Palavra, por seus sinais que manifestam a vontade de Deus. Sabia também que o matrimônio é vocação, e cabe ao batizado seguir o caminho apontado pelo dedo de Deus.
Outro passageiro consultou o relógio. Estavam voando há cinquenta minutos sem darem uma palavra, até que um deles irrompeu o silêncio.
— Conheço o senhor de algum lugar — disse Carrero.
— Talvez sim! Fui bancário, levava vida cigana mudando de uma agência para outra, com o objetivo de fazer carreira no Banco. Trabalhei em Picos, Fortaleza, Rio de Janeiro, Brasília e em várias cidades de diversos Estados. Naveguei por este Brasil urbano e caboclo, à procura do caminho das índias e mesmo aposentado, nunca parei de ticar as partidas dobradas nas curvas do meu caminho. Moro em Brasília. Não sei até quando a Disney Brasileira me suportará.
—Pelo tipo da prosa, o amigo também é escritor! Muitos bancários, quando se aposentam, tomam o caminho das Letras. Vais ao encontro no Salon Du Livre?
— Sim, apresentarei ‘Música para Pensar’ em Paris. É minha mais recente produção. Produzi também outras obras na juventude que hoje, renego, e seria capaz de escrever nelas: ‘incorrigível. Só o fogo!’ Sou um professor que escreve. Nisto também me assemelho a Afrânio Peixoto, se bem que Afrânio tinha outros títulos que não alcancei.
— Gostei do título ‘Musica para Pensar’, do sentido que traz o cuidar das feridas da alma e do coração. A boa música tem a capacidade de auxiliar na cura da ansiedade, angústia, estresse e até depressão... 
— O amigo me parece maestro não só das letras, também das notas musicais.
— Lido com arranjos. O livro é meu chão, e a música o céu por onde viajo carregando um universo de indagações: de onde vem a arte, senão do fantástico mundo da imaginação? Fiat! E o artesão extrai tudo do nada? 
— Inspiração e transpiração – acrescenta Gilson Chagas.
— Sim. Primeiro escorre o suor no talhar a pedra bruta, depois, tocamos com a varinha mágica da inspiração, dando acabamento final, o embelezamento. Soltamos o cabelo de Gabriela para deixá-la menos tensa e assim, construímos nossa colcha de retalhos nos remendos e emendas da história apanhadas aqui e ali em algum fiapo de conversa.
— Eu também gasto tempo, gasto as vistas, gasto a vida como verme a roer livros.
Carrero apanhou um livro na bagagem de mão. 
— Gosto tanto disso aqui! É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro... Fico namorando livros como se a vida real fosse uma ficção que se transcreve para o papel.
Desafivelou o cinto e sentiu o cheiro de cravo e canela escorrendo na caneta de Jorge que, embora muito amado, teve também seus dias de calvário na masmorra do exílio. Em seguida, regulou as lentes da imaginação e viu nuvens que desfilavam velozes na janela da aeronave como se ele abrisse páginas armazenadas no cloud computing.
Pensou alto:
— O avanço tecnológico impulsionou a literatura ao criar livros para ouvir, esse recurso oferece significativa contribuição para evitar que morram árvores para que livros tenham vida — disse Carrero. 
Reclinou o assento buscando conforto no pequeno espaço entre as poltronas. E prosseguiu a conversa com o passageiro com quem há pouco estabelecera laço de amizade.
— A literatura virtual tem muita patacoada, mas não há dúvida de que também há boa medida, recalcada, sacudida e transbordante de bons talentos. Tu mesmo penetraste bem com Jacó na tenda de Labão. Abençoaste Raquel, sem excomungar Lia. Camões fez o mesmo em sua lira de 14 cordas.
Fez uma pausa como se buscasse uma forma de abordar os perigos da Internet: o acesso é fácil e rápido, aproxima o homem do mundo distante, mas afasta o próprio homem de si mesmo e daquilo que lhe é próximo. Tudo com um simples ‘clicar’ de algumas teclas.
— Não achas perigosa a completa exposição da própria vida aos olhos do mundo através Internet? 
— Talvez sim, talvez não! Começamos a morrer a partir dos primeiros segundos de vida. 
— Até o livro tem seu preço — e depois de um meio-riso concluiu Carrero: 
— Li um artigo de Francisco Miguel sobre Prosopagnosia. Que doença estranha! Não reconhecer o rosto das pessoas?... ‘E aí começava meu martírio’ — diz Miguel.
—É... o Chico é mesmo estranho no ser e no fazer. Foi meu grande incentivador no caminho das Letras.
— Foi? Não incentiva mais ou já morreu?
— Cada minuto vivido a mais é um minuto de vida a menos. Ele tem mais de oitenta janeiros nos couros. Rogo a Deus que eu possa também chegar a essa idade e que o Chico ultrapasse, em muitos anos, o marco até agora alcançado.
— Somos pedras que se consomem — diz Carrero — meu livro, isso aqui, isso aqui é meu mundo, meu universo. Isso aqui é minha maravilha! Eu gosto tanto disso aqui! É como namorar. Tem dia que me sento só pra namorar! Olhar pra livro... 
E trocaram gentilezas oferecendo um ao outro os últimos títulos que publicaram. 
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Adalberto Antônio de Lima, trecho de Estrada sem fim...