A LUSITANA E A JUDIA
A LUSITANA:
A voz era calma, muito serena, mas de tonalidade visivelmente triste. Diria mesmo quase amargurada o que, momentaneamente, me deixou quase que envolvido em sua aura de cor espessa, indefinida, coisa que raramente acontecia quando destas aparições. Uma intuição diferente me invadiu a alma. Desta vez foi como se eu sentisse o que sentia aquela entidade. A sensação foi exatamente esta. Não era maldade, era sofrimento, uma espécie de desapontamento consigo mesma
Imediatamente, porém, me recompus elevando o pensamento na certeza de que nada daquela figura singular poderia me afetar, máxime porque eu estava ali tão somente na condição de ouvinte e expectador; nenhum laço existia entre nós, nada mesmo que me ligasse a ela. Saindo do meu "habitué”, perguntei: - Quem és?
-“ Dir-te-ei que me reconheço como Maria Amália dos Passos Ferreira. Vivi a minha última romagem no plano das dores em meados do século dezenove, mais precisamente num período de 50 anos na belíssima e inesquecível cidade de Lisboa”.
Sua resposta veio com um sorriso enigmático no rosto alabastrino, muito embora estivesse longe da brancura seca da morte. Seus olhos eram verdes e pareciam duas esmeraldas a contrastarem com seus cabelos cor de trigo que se espraiavam por sobre os ombros quais ondas espocando em alvas areais de praia paradisíaca. Seu traje realmente atestava que ela vivera em outra época, pois que se me fez visível com um vestido de veludo cor de jade que dava uma aparência de extensão de seu olhar; tinha mangas tufadas, comprido e enfeitado de rendas e vidrilhos que lhe escondiam os pés. Um elegante chapéu cobria sua cabeça e lhe dava um aspecto de certa nobreza. Era realmente muito bela.
“Não fui nenhuma princesa, nenhuma rainha, nem ao menos condessa, baronesa ou viscondessa”. - Completou de imediato, tão logo me passou pela cabeça adivinhar-lhe o título.
Ela própria foi quem se classificou como sendo apenas mais um ser que já habitara o mundo material. Prestamente me disse que ao tempo em que vivera na metade do século dezenove, a alta burguesia tornara-se o foco mais importante da sociedade lisboeta. Destacavam-se por sua riqueza, por seus cargos e profissões. Ela, embora pertencesse a burguesia, não podia se classificar como abastada. Seu pai fora um comerciante que longe estava de ser considerado rico, muito embora ostentasse esta fama; soubera amealhar pelo trabalho uma condição que proporcionara à família o necessário para viver e passar a idéia de riqueza.
Ao tempo em que vivera, disse-me, já se abrira uma nova mentalidade com respeito às mulheres, sendo-lhes permitido que tivessem acesso à educação, à leitura e até ao trabalho, coisas que antes eram restritas somente ao seio da família, onde a mulher passava grande parte de sua vida quase que enclausurada em suas luxuosas residências.
- “Eu”– prosseguiu -“apesar do necessário que me cercava, e, desta liberdade que sempre conheci, embora sem maldade no coração trazia, ainda, no recôndito de minha! alma, no mais remoto escaninho da lembrança, restos de um passado antigo em que sucumbira desastrosamente pelo excesso de cobiça, vaidade ,orgulho, e, soberba, principalmente a cobiça, que ainda estava – mais que os outros vícios - bem latente em minha alma. Aprazia-me, pois, freqüentar os principais jardins de Lisboa, o Passeio Público, as óperas, os jogos de salão, os bailes dos clubes e dos cafés que se viam aos montes naquela época.
Era assídua do Teatro D. Maria II e S. Carlos, em Lisboa, anfiteatros dos mais luxuosos da época. Gostava de exibir minha beleza entre os cafés Marrare e o Nicola, sempre apinhados de gente elegante que, como eu, gostava de exibir-se frivolamente.
Não me continha ao desfilar e insuflar caprichosamente nos homens o desejo por meus dotes femininos, coisa que fazia com naturalidade e com muito gosto, sem jamais me dar conta de que pudesse algum dia, com tais atitudes, fazer mal a quem quer que fosse. Só me dava conta de que era bela, desejada e na minha mente pouco importava se isto despertava algo bom ou ruim, fosse a mim própria ou mesmo em outras pessoas. Era necessário encontrar um partido rico para sair daquela vida de sacrifício que imaginava viver”.
Nosso pensamento, nossa consciência – que é nosso eu, nosso princípio vital desenvolvido e imortal- em qualquer situação, em qualquer lugar que esteja, seja no plano material, reencarnado, seja no plano verdadeiro e real, em espírito, é usina de força incomensurável que distribui e recebe aquilo que produz. E o que ele produz não fica simplesmente à conta de pensamento que não passa da imaginação de nossa individualidade. Ao contrário, é força que se materializa e vai se acoplar a tantos outros pensamentos que se afinam com o mesmo produto. Daí, não raras vezes, nascem grandes tragédias, grandes culpas, grandes reparações. Isto em virtude da Lei Maior que nada deixa passar, pois que é inerente ao livre arbítrio de cada um, e é aplicada independentemente de qualquer outra coisa que não os nossos desejos, as nossas ações, automaticamente.
E, prosseguiu: -“ No verão de 1870 me encontrava imersa em pensamentos egoísticos caminhando no Passeio Público do Rossio numa noite de 5ª feira, o que era de “bom- tom”, pois que se evitava os domingos e dias de festejos , já que nestes dias, por ser gratuita a entrada, havia maior afluência de pessoas de outras camadas sociais o que fazia com que houvesse uma mistura, e, para gente da minha estirpe não era “chique” participar deste amalgama social”.
Parou um instante, ergueu de modo súplice os olhos para o alto, como a pedir alguma coisa aos Céus, e continuou firme:
-“ Em dado momento, num relance, percebi que um jovem me acompanhava os passos e, muito embora eu estivesse acompanhada de mais duas amigas, pude sentir aquele olhar diretamente no meu. Não tive qualquer dúvida sobre isto. Soara para mim, sem que eu sequer imaginasse, a hora fatal da escolha: Progredir ou retardar a infinda subida para a Luz? Para minha desgraça escolhi a segunda opção”.
Será que o determinismo ou destino, como muitos denominam, existe? Teremos, desde o momento em que nascemos na terra, um caminho já traçado? Haja o que houver, façamos o que façamos, as coisas acontecerão sempre e nada nos fará mudá-las? Neste caso, que importa a escolha que façamos? Se para o bem ou para o mal... Maktub!
Mas, seremos, ao contrário, nós próprios os construtores deste destino? Nossos atos, pensamentos e atitudes é que nos conduzem para o nosso céu ou nosso inferno interiores já que temos o livre arbítrio que nos é inato? Para que serviria ele, então?
Não raro, o estudante da vida que se aprofunda na ciência que define quem somos de onde viemos, e, para onde vamos queda embasbacado nesta encruzilhada. Responsabilidade exclusivamente nossa? Estaremos sujeitos a Lei de Causa e Efeito ou nosso destino já vem traçado e vivemos sujeitos a Lei do determinismo imutável?
Como estudante, também, de nossa existência, diremos que as duas concepções se reúnem para formatar a essência deste enigma. Temos, na maioria das vezes, uma estrada escolhida com antecedência para percorrer.
Ao escolher sabemos, com antecedência, das dificuldades, dos empecilhos, dos perigos que vamos encontrar. É imprescindível passemos por ela, e, assim faremos. Então, partindo desse ponto pode-se dizer que existe um destino a chegar, já traçado. Entretanto a forma como vamos percorrê-la depende de nosso livre arbítrio. A cada vez que tomamos um atalho para fugir das dificuldades encontradas enveredamos por estradas vicinais e criamos novos desafios, já que são caminhos desconhecidos. Haveremos de retomar a estrada principal, pois que este é o nosso destino, nosso desejo, nossa finalidade precípua. Entretanto, por nosso livre arbítrio, haveremos, antes, de contornar as dificuldades dos atalhos escolhidos, sobrepujá-los, pois que nos mesmos os colocamos em nosso percurso principal sempre rumo norte e para o alto.
Maria Amália, então, voltando da pequena pausa que me pareceu quase uma viagem que sua mente fizera, fitou-me de maneira profundamente humilde e continuou:
“- Peço-lhe paciência meu amigo, e agradeço-lhe a caridade por me doar seu tempo, mas se faz necessário para que eu atinja o objetivo a que me propus pequena digressão a um passado longínquo que, a princípio, sequer imaginava que existisse mas que verdadeiramente é meu”.
A JUDIA:
A mesma sensação que tivera no início sobre ela retornou, mas foi prontamente rechaçada, e, tentando compreendê-la apenas lhe disse, em pensamento, que teria todo o prazer de ajudá-la no que me fosse possível.
“ Digo-lhe, meu amigo, que vivemos muitas e muitas vidas ao longo de nossa eternidade. Não me lembro, ainda, de todas, e, muito tempo ainda hei de viver para reuni-las numa só experiência. Entretanto, uma me voltou à memória de maneira tão verdadeira, tão real que me fez entender, finalmente, todo o significado de nossa existência milenar e infinita”.
Fenômeno curioso presenciei nesta oportunidade e que nunca mais se repetiu. Confesso que fiquei pasmo quando num átimo de segundo percebi que ela se transformara quase que totalmente. Embora eu reconhecesse nela a mesma estrutura espiritual e nenhuma dúvida tivesse de que se tratava da mesma entidade com a qual iniciara o diálogo, ela, vez por outra, se transmudava em outra personalidade. Variava entre a alabastrina jovem de olhos verdes e uma outra figura feminina diferente. Fenômeno singular aquele. Parecia que se esforçava para buscar na lembrança fatos ocorridos em passado bem distante, e, este esforço fazia com que ela ora fosse uma ora fosse outra pessoa. Finalmente conseguiu estabilizar sua nova forma e pude, então, perceber ao meu lado, não mais a jovem portuguesa de cabelos cor de trigo, mas outra jovem de pele amorenada, negros olhos e vasta cabeleira acastanhada que lhe chegava até aos ombros.
Recompondo-se, retomou a palavra me dizendo:
“Ao tempo em que Roma vivia sob o império de Tiberius Claudius Nero Cæsar, imperador romano que ampliou a lei de lesa majestade cuja finalidade fora tornar crime meras palavras pronunciadas contra sua pessoa, lei que acabou por fazer com que Pôncio Pilatos entregasse Jesus aos judeus que a conheciam e a invocaram frente ao Governador da Judéia, posso dizer que vivi uma experiência na carne com certo amadurecimento sobre o bem e o mal”.
É de Tibério a imagem cunhada na moeda que os judeus deram a Jesus na tentativa de colocá-lo em situação difícil. Quando lhe apresentaram esta moeda e lhe perguntaram a quem deviam obedecer se a Cesar ou a Deus retrucou-lhes Jesus: “De quem é esta imagem e inscrição? Responderam-lhe: -“De César”. Disse-lhes, então Jesus : “Dai, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus".
A judia, pois que assim o era, continuando a narrativa disse: “Tive, naquela experiência vivida na Judéia, – continuou ela-” a grande oportunidade de me redimir de muitas derrocadas da alma, erros e enganos cometidos em longevas eras, pois que tal oportunidade me fora dada naquela vida, na qual ouvi os conceitos de uma nova doutrina que surgia, uma boa nova que viera para por fim a todas as excrescências morais do mundo. Surgiu, para mim, então, nítido naquela época o livre arbítrio, esta escada maravilhosa que Deus, em sua infinita bondade, nos colocou à disposição para que subamos até Ele”.
Existe um momento em nossas existências no qual nos deparamos com uma situação que nos permite perceber a diferença entre os resquícios do instinto animal e o inicio da razão, latentes em nossa alma. Não há dúvida que uma existência vivida sempre se sobressairá como sendo, talvez possa dizer assim, um marco nesta viagem que fazemos, há milênios, com destino ao pais da Luz. Este é mesmo o momento em que, pela primeira vez, o nosso livre arbítrio se manifesta em todo o seu potencial.
Mudando cada vez mais sua aparência externa, continuou:
“Mas, ai de mim. Preferi descer a subir. Depois de ouvir palavras que me balançaram toda a estrutura do ser, saídas do coração de um dos adeptos daquela doutrina que surgia como esperança de justiça, conheci um alto funcionário do governo romano que se instalara, então, naquele solo sagrado.
Numa dessas reuniões, que já eram proibidas, mais por perseguições dos próprios judeus do que propriamente dos romanos, fomos a apanhados por um grupo de fanáticos que nos denunciaram a alguns soldados. Deram-nos ordem de prisão e fomos encaminhados, um a um, à presença do centurião-chefe”.
O centurião, na ordem militar do Império romano era o oficial de confiança que comandava uma centúria de soldados; dava ordens e era responsável pela disciplina do grupo que comandava. O Centurião Chefe exercia sua tarefa com mão de ferro,e, era responsável por uma coorte de até 6 centuriões que vasculhavam as ruas e resolviam as pendengas que surgiam, diuturnamente. Tinha, ainda, por ser o comandante em chefe daquelas pequenas legiões, o poder de decidir muitas coisas, sem que necessitasse dar satisfações a qualquer de seus subordinados.
-“ Chegada minha vez deparei-me de frente com um homem robusto, de olhar firme que, por incrível, não me passou nenhuma sensação de medo. Não vi nele qualquer ameaça embora a conhecida truculência dos centuriões romanos que infestavam a cidade.
Fitou-me demoradamente e perguntou: “- Que faz uma mulher tão bela junto aos seguidores do pobre rei dos judeus?”
Tentei me justificar com as mais variadas historias, pois que senti ao deparar-me com ele uma esperança de escapar de um destino que parecia certo”.
Não raras vezes o instinto de preservação que trazemos inato, sempre, em qualquer época ou situação, nos informa por um mecanismo, talvez retido em parte desde os tempos de outras experiências em reinos diversos, com quem lidamos num determinado tempo de nossa existência infinita. Tais oportunidades de escolha nos são oferecidas, ao longo da jornada, para que escolhamos o rumo certo a tomar a fim de que cheguemos mais rápido ao destino que nos foi reservado.
-“ Indicou-me um lugar afastado dos restantes sem me responder a qualquer das desculpas que lhe dava e determinou a seus comandados que levassem os demais imediatamente”.
”Apenas eu e dois de seus soldados, aos quais chamou com um simples olhar, permanecíamos no lugar, além dele. Aproximou-se de mim, e, com um timbre de voz bem diferente daquele que ordenava a seus comandados e aos prisioneiros me disse: - “Preferes a minha companhia onde poderás professar, em segredo, a crença que segues ou juntar-se, inutilmente, a seus desgraçados amigos”?
“- Na verdade eu não era tão seguidora assim daquela crença, e, muito embora a reconhecesse como uma esperança, não pude, num relance, deixar de ver toda a utilidade daquela aliança que aquele romano- cujo povo eu desprezava - me propunha.
Flaminius, pois que era este o nome daquele que me acenava com uma oportunidade de nova vida, instalou-me em moradia nas cercanias da cidade onde eu podia levar uma vida modesta, mas verdadeiramente cheia de alegria e muita fartura em comparação com a que antes vivia.
Apesar do cargo que exercia, era ele, no entanto, pessoa digna e honrada, e, convivendo com ele naquela pequena comunidade de imediato pude perceber , por seus atos diuturnos, que havia me consorciado com um cristão romano.
Vivi sob os cuidados daquele centurião por cerca de meio lustro. Era uma vida monótona, simples, mas honesta, verdadeira, o que, infelizmente, para mim, não era suficiente, pois que aspirava a coisas grandiosas, luxo, riqueza e pompa.
Estava sempre buscando um meio de atingir meus objetivos e por conta disto nada mais observava à minha frente. Certo dia conheci um jovem judeu de nome Aaron. Inteligente, astuto, freqüentador assíduo dos Templos onde se pregava e se conspirava contra os seguidores daquele que- diziam – ser o Messias.
Não foi preciso muito para que Aaron ficasse sabendo da situação em que eu vivia e muito menos para que eu concordasse em delatar o que se passava naquela pequena comunidade Cristã, muito embora aquele romano que me amparara estivesse sempre presente no resto da minha vida, em minha memória. Descobrira muito tarde que o amava e que nenhuma daquelas riquezas que a traição me proporcionara serviram para aplacar minha dor e meu remorso pelo ato intempestivo originado pela egoísmo e ganância”.
“Não me é dado adentrar nesta fase, eis que não me pertence de todo, mas posso adiantar que Flaminius foi considerado traidor e condenado a passar o resto de seus dias exilado em remota ilha, pois que apesar de tudo era romano legitimo. Os demais judeus fugiram e uns poucos foram exterminados pelas espadas romanas e seus bens confiscados”.
É desta forma, nas vidas passadas, que construímos as nossas vidas futuras. A vida presente é a soma de nossas vidas passadas. Em todas elas, porém, nos foi, e, nos será dada oportunidades de resgatar erros e progredir moral e intelectualmente na senda que nos levará à Vida maior e verdadeira. A Lei Divina é justa, imutável, inexorável, mas, ao mesmo tempo, é bondosa, é flexível e permanece accessível a todos indistintamente, que queiram respeitá-la e cumpri-la. Não há como trair-lhe os ditames universais, pois que ela não é passível de confusão, como as leis terrenas. Há milênios vimos acumulando erros nas jornadas empreendidas na crosta planetária.
Da mesma forma que passara de Maria Amália para a judia Alitzah voltava desta para Maria Amália. O fenômeno, repito, era realmente interessantíssimo e nunca mais saiu de minha mente, embora não mais houvesse se repetido, e, recompondo-se, ela prosseguiu sua narrativa inicial:
“ Uma sensação de certa angustia me invadiu a alma ao corresponder àquele olhar. Mas, ao mesmo tempo aquela figura me atraia de uma forma inexplicável. Eu como que percebia intuitivamente que deveria me afastar dele mas a curiosidade, a vontade ou seja lá o que fosse permitiu aquele encontro que, embora eu não soubesse, já estava planejado muito antes de mais um retorno à carne.
“João Filgueiras, pois que assim se chamava o cavalheiro, acabou por ser meu esposo três anos depois deste primeiro olhar. Era ele, então, riquíssimo comerciante da cidade do Porto.
Não demorou muito para que eu descobrisse o seu verdadeiro caráter e como amealhara sua fortuna. Era dado a festas e diversões outras que não as que eu fora criada. Era dissoluto, egoísta, possessivo. Continuei, assim, praticamente reclusa dentro de minha casa, como um pássaro numa gaiola de ouro. Enganchei-me, então, junto a uma comunidade de pessoas de posses que buscavam prestar ajuda a todo tipo de necessitados que vagavam pelas ruas de Lisboa”.
“Tive, então, os primeiro contatos com uma filosofia religiosa que surgira na França e já ganhava terreno em grande parte da Europa desenvolvendo uma nova filosofia de vida, uma nova direção para a ciência e a religião. Posso dizer que chegara para o mundo o inicio da grande tarefa de trazer de volta o Cristianismo, surgido em sua mais pura essência e verdade na era romana”.
“A idéia, que não era totalmente nova para meu espírito milenar, foi por mim encampada até com certa facilidade, pois que dela já ouvira falar na época em vivera um de meus avatares na Judéia. Passei a travar conhecimentos com aquela realidade que , embora muitos levassem à conta de divertimento, trazia conforto e esperança para minha alma. Tentei de todas as formas prestar minha ajuda presencial e financeira, mas embalde. Meu marido, de modo algum aceitava aquilo, já que descendia de judeus e o Judaísmo era a sua religião. Desconfiado de minhas idéias cristãs, cada vez mais ele exercia seu poder e fui perdendo a liberdade e cada vez mais dele me afastava e cada vez mais sofria em cárcere domestico”.
“Passei a freqüentar, às escondidas, as reuniões; a princípio motivada mais pela oportunidade de sair de casa, mas depois percebi que eu me afinava com as pessoas que partilhavam aquela idéia renovadora. Era um grupo pequeno de abnegados que começavam ou recomeçavam o ideal de espalhar o quanto pudessem aquela forma de enxergar a finalidade da vida, de dar sentido a ela, de explicar o eterno enigma: saber de onde viemos, qual a nossa finalidade aqui, e, para onde vamos depois da morte física.
“Ali conheci Pedro. Espírito forte, de caráter ilibado que, pode-se dizer, comandava aquele grupo que buscava espiritualizar-se. Destacava-se, dos demais. Não apenas por sua tolerância e bondade, mas também por seus conhecimentos elevados da Doutrina que viera da França”.
Há milênios vimos acumulando erros nas jornadas empreendidas na crosta planetária; há milênios voltamos para repará-los, mas permanecemos com eles, muitas vezes agravando-os mais, e, não raro somando-os a outros novos. Permanecemos um tempo no espaço e, tomando conhecimento deles, prometemos a nós mesmos empreender nova jornada para não repeti-los. Mas, temos nosso livre arbítrio, pois que se assim não fosse, nenhum mérito teríamos se fossemos impedidos de usá-lo. Depende apenas de nos esta decisão. Somos os mesmo atores encenando personagens diversas nestas idas e vindas ao palco terrestre, mas atuando, sempre, na mesma peça: A evolução moral e intelectual.
“Não preciso dizer”. – continuou – que aquele espírito me encantou, pois que a ele relatei todo o meu drama, a minha vontade de ajudar tendo posses, mas não podendo usá-las. Pedro atendia-me com a presteza que dispensava a todos que o procuravam.
Dele ouvi as primeiras palavras sobre renúncia, desprendimento, perdão, amor ao próximo. Com ele passei a admirar os preceitos da doutrina espírita; tomei ciência pela primeira vez da obra “ O Livro dos Espiritos” de Allan Kardec. Realmente passei a admirar aqueles pensamentos, aquela filosofia que igualava todos no mesmo patamar perante Deus. A cada um segundo suas obras, nada mais justo.
Entretanto, ao mesmo tempo, tomei-me de amores por ele. Paixão desenfreada que não havia experimentado na vida, até então, mas que guardava comigo os escaninhos da alma de épocas remotas”
Quem se liberta de seus vícios morais num repente, numa só vida, num só estágio no planeta? Crer na imortalidade é progresso de uma hora no relógio da eternidade. Não basta isto; sem que nos iluminemos através da regeneração moral, do reconhecimento de nossas falhas através, muitas vezes, da renúncia, não atingiremos a claridade sublime. Antes, necessário elevar o coração, abster-se do personalismo que avilta, da inveja que corrói, do ciúme que dilacera, do orgulho que impede a marcha para o alto, do controle dos instintos que nos fizeram perder o rumo da estrada.
Continuou: “ Pior que eu sentia intimamente que não era ignorada, como mulher, por ele. Disposta a ter o amor que eu achava que merecia não neguei esforços no sentido de conquistá-lo. Insinuava-me constantemente na tentativa de obter a qualquer preço aquele amor que eu julgava correspondido, até que me declarei a ele de forma clara.
Pedro, porém, olhou-me fixamente, e com todo o respeito e carinho que se pode esperar de um espírito de escol, fez-me ver que tínhamos ambos, compromissos a serem cumpridos naquela vida, e, a renúncia ao tipo de amor que eu desejava era extremamente necessária para nossa própria evolução. Além do que tínhamos assumido outros compromissos, também inadiáveis, eu com meu marido, ele com sua esposa e filhos. Embora não dissesse que não me amava, olhando para mim com firmeza, mas com ternura, respeito e até tristeza, disse-me que o caminho que fora escolhido por nós mesmos para percorrer naquela vida deveria ser percorrido da forma prevista, pois que não se pode entortar o destino criando curvas na estrada, sob pena de nos afastarmos cada vez mais do rumo norte que foi traçado para atingirmos a Luz. O mundo desabou para mim naquele instante”.
“Por mais que pensasse em lutar por aquele amor, e, não raras vezes pensar que tinha este direito, pois que tinha quase certeza da reciprocidade de meu sentimento, chegando mesmo ao desatino de engendrar mil maneiras de afastar aquele homem de sua esposa não consegui colocá-las em prática. A fortaleza moral daquele espírito, o antigo centurião romano- pois que era o mesmo Flaminius- era inabalável e sua fé e vontade férrea de seguir na senda de Luz eram como um escudo que o protegia até de meus pensamentos malévolos.
“Descri da vida espiritual. Não conseguia entender que pudesse um Deus permitir tanto sofrimento que supunha eu não merecer. Abandonei tudo aquilo, todas as amizades sinceras que conseguira, os ideais maiores que me ajudavam a seguir na vida escolhida ao lado de um marido que, se não era quem eu amava e que julgava me maltratar, tudo me proporcionava materialmente. Entreguei-me, assim, aos prazeres e aos luxos da vida na época, chegando ao último estágio da imoralidade; a traição. Posterguei para um futuro, que sequer imaginava existir, mais uma chance de me redimir de faltas graves cometidas no passado, e, retomar o caminho que nos leva ao ápice de nosso destino.
Deixei o mundo depois de longa doença que prostrou-me ao leito por quase um ano e meio.
Vaguei sem saber disso por entre vales de dor, em arremedos de cidades onde tudo era permitido embora o sofrimento comum atingisse das mais variadas formas a todos que ali viviam. Fiquei sabendo, tempos depois, que ali permaneci por cerca de sessenta anos.
]
“Pensava, às vezes, que estava presa em tremendo pesadelo e fazia força para acordar, o que não acontecia e então me desesperava; outras vezes acudiu-me a idéia de que havia morrido e habitava o purgatório. Mas, como era isto possível, pensava, já que eu vivia e sentia, ainda, os sintomas da tuberculose que consumira meu corpo.
]
Certa feita me achei em meio a horrorosa tempestade onde os relâmpagos e os trovões ribombavam pela escuridão do vale. Num destes clarões avistei uma gruta e para ela corri a fim de me abrigar daquela tormenta.
Encostei-me na pedra úmida e fria, e, pela primeira vez tive então, num segundo, num átimo de tempo a lembrança de Lisboa, a percepção de quem eu era realmente; passou-me à razão meus pais, minha casa. Cai de joelhos e me lembrei de Deus. Não precisei falar.
Uma luz surgia aos poucos à minha frente. A princípio me ofuscava completamente. Entretanto, num repente formou-se diante de mim a figura serena de Pedro. Sim, era ele, mas trajando uma impoluta e reluzente veste de um centurião romano.
Estendeu-me a mão e me disse: Chegou a hora do basta, vamos. A vista turvou-me, embaraçou tudo á minha volta e nada mais vi.
Mais tarde pude entender que fora pela terceira vez socorrida pelo mesmo espírito.
Voltarei em breve ao mundo. Encontrarei, talvez, mais uma vez em meu caminho, a repetir as experiências mal fadadas o espírito de Pedro, em condições mais elevadas ainda na obra de sua retificação e progresso. A mim caberá, por meu livre arbítrio, escolher o caminho reto que conduz ao cume ou enveredar mais uma vez pelas curvas da estrada.
Somos herdeiros dos séculos e conquistamos nossos valores morais e intelectuais de experiência em experiência de vida em vida, através dos milênios.
A LUSITANA:
De vez em quando fico a matutar por que razão estes “amigos” que me visitam escolhem, na maioria das vezes, o momento em que o céu despeja sobre a terra aquela chuvinha fina e pegadeira que parece silenciar o mundo frenético que nos cerca. Raras vezes os via em dias ensolarados e quentes, em meio à algazarra própria das cidades. Será este o clima que minha inspiração, imaginação, ou seja lá o que for que quase me obriga a escrever mais se ajusta? Deve ser, porque gosto muito do barulho da chuva caindo calma escorrendo pela rua serpenteando em zique-zaque contornando pequenos obstáculos. Fico admirando as gotas da água tamborilando na janela que soam para mim, na verdade, como notas de rara melodia; o som da chuva batendo nas calçadas e nos telhados das casas parecem acordes de uma sonata composta e orquestrada pelo Compositor do Universo. É quando mais me deixo levar por pensamentos que destoam da realidade em que vivemos e passo a conhecer dramas vividos por outras pessoas em épocas remotas e narrados pelos próprios protagonistas.
Fica bem mais fácil “ouvir” as palavras que ecoam em minha mente sopradas , talvez, de plagas distantes; sussurros de versos inesperados que latejam no meu consciente e formam estrofes que se transformam em poemas dos mais variados temas. O mesmo acontece quando, em tais situações, me sinto predisposto, a escutar o que esses “amigos” de outros planos vêm me contar. Não os busco, não forço suas presenças, apenas aguardo, pois que dependo exclusivamente deles para transmitir suas lembranças, seus pensamentos, suas experiências vividas em evos que se perdem no infinito. A isto me propus e foi isto que prometi ao amigo que me narrou a primeira historia, que foi a dele mesmo.
Era sábado e o dia amanhecera assim. Uma chuva mansa, finíssima mas constante, caia e deixava o céu plumbeado o que, entretanto, longe de trazer melancolia ou tristeza como soe acontecer a muitos, trazia e traz sempre, para mim, uma paz e uma serenidade que, não raras vezes, transcendem a qualquer coisa que se possa imaginar existir na Terra.
Por volta das 22,00 horas sentei-me à mesa, confortável e grande que possuía no meu escritório residencial onde mil papeis a serem lidos e arquivados se esparramavam dando a impressão de uma desordem que não existia, porém. Escutava Mozart, e, viajava pelo infinito o que contribuía e contribui, sempre, para a elevação de nosso “eu” absoluto e etéreo a outros patamares de vida, outras sensações, outros pensamentos fora dos parâmetros normais da vida física.
Entretanto, muito embora o enlevo do mágico momento, meu pensamento estava voltado exclusivamente para o que precisava fazer. Preocupava-me a sorte de alguns que dependiam muito menos de minhas anotações e estudos, mas quase que totalmente do julgamento de outros que não conhecia. Quando será que os homens deixarão de julgar os homens? Mas, num relance percebi que não me achava só. Do outro lado da mesa uma figura bastante interessante tomava assento e me fitava sem desconfiança.
Não me assustei, pois que tais coisas, de há muito, não me causavam espanto. Tenho-as por comuns e que fazem parte de nossa existência. Quando entenderemos que a vida é eterna e uma só no sentido de que vivemos várias existências de tempos em tempos em planos diferentes, mas que estão intercalados por leis imutáveis?
A entidade espiritual, uma mulher, pois que assim o era, fixando seus olhos em mim, disse-me:
-“Necessito contar a minha experiência a fim de que a mesma fique gravada em minha alma para meu próprio bem, e, quem sabe possa,de alguma forma, beneficiar ao próximo. Conto com sua ajuda”.
Fica bem mais fácil “ouvir” as palavras que ecoam em minha mente sopradas , talvez, de plagas distantes; sussurros de versos inesperados que latejam no meu consciente e formam estrofes que se transformam em poemas dos mais variados temas. O mesmo acontece quando, em tais situações, me sinto predisposto, a escutar o que esses “amigos” de outros planos vêm me contar. Não os busco, não forço suas presenças, apenas aguardo, pois que dependo exclusivamente deles para transmitir suas lembranças, seus pensamentos, suas experiências vividas em evos que se perdem no infinito. A isto me propus e foi isto que prometi ao amigo que me narrou a primeira historia, que foi a dele mesmo.
Era sábado e o dia amanhecera assim. Uma chuva mansa, finíssima mas constante, caia e deixava o céu plumbeado o que, entretanto, longe de trazer melancolia ou tristeza como soe acontecer a muitos, trazia e traz sempre, para mim, uma paz e uma serenidade que, não raras vezes, transcendem a qualquer coisa que se possa imaginar existir na Terra.
Por volta das 22,00 horas sentei-me à mesa, confortável e grande que possuía no meu escritório residencial onde mil papeis a serem lidos e arquivados se esparramavam dando a impressão de uma desordem que não existia, porém. Escutava Mozart, e, viajava pelo infinito o que contribuía e contribui, sempre, para a elevação de nosso “eu” absoluto e etéreo a outros patamares de vida, outras sensações, outros pensamentos fora dos parâmetros normais da vida física.
Entretanto, muito embora o enlevo do mágico momento, meu pensamento estava voltado exclusivamente para o que precisava fazer. Preocupava-me a sorte de alguns que dependiam muito menos de minhas anotações e estudos, mas quase que totalmente do julgamento de outros que não conhecia. Quando será que os homens deixarão de julgar os homens? Mas, num relance percebi que não me achava só. Do outro lado da mesa uma figura bastante interessante tomava assento e me fitava sem desconfiança.
Não me assustei, pois que tais coisas, de há muito, não me causavam espanto. Tenho-as por comuns e que fazem parte de nossa existência. Quando entenderemos que a vida é eterna e uma só no sentido de que vivemos várias existências de tempos em tempos em planos diferentes, mas que estão intercalados por leis imutáveis?
A entidade espiritual, uma mulher, pois que assim o era, fixando seus olhos em mim, disse-me:
-“Necessito contar a minha experiência a fim de que a mesma fique gravada em minha alma para meu próprio bem, e, quem sabe possa,de alguma forma, beneficiar ao próximo. Conto com sua ajuda”.
A voz era calma, muito serena, mas de tonalidade visivelmente triste. Diria mesmo quase amargurada o que, momentaneamente, me deixou quase que envolvido em sua aura de cor espessa, indefinida, coisa que raramente acontecia quando destas aparições. Uma intuição diferente me invadiu a alma. Desta vez foi como se eu sentisse o que sentia aquela entidade. A sensação foi exatamente esta. Não era maldade, era sofrimento, uma espécie de desapontamento consigo mesma
Imediatamente, porém, me recompus elevando o pensamento na certeza de que nada daquela figura singular poderia me afetar, máxime porque eu estava ali tão somente na condição de ouvinte e expectador; nenhum laço existia entre nós, nada mesmo que me ligasse a ela. Saindo do meu "habitué”, perguntei: - Quem és?
-“ Dir-te-ei que me reconheço como Maria Amália dos Passos Ferreira. Vivi a minha última romagem no plano das dores em meados do século dezenove, mais precisamente num período de 50 anos na belíssima e inesquecível cidade de Lisboa”.
Sua resposta veio com um sorriso enigmático no rosto alabastrino, muito embora estivesse longe da brancura seca da morte. Seus olhos eram verdes e pareciam duas esmeraldas a contrastarem com seus cabelos cor de trigo que se espraiavam por sobre os ombros quais ondas espocando em alvas areais de praia paradisíaca. Seu traje realmente atestava que ela vivera em outra época, pois que se me fez visível com um vestido de veludo cor de jade que dava uma aparência de extensão de seu olhar; tinha mangas tufadas, comprido e enfeitado de rendas e vidrilhos que lhe escondiam os pés. Um elegante chapéu cobria sua cabeça e lhe dava um aspecto de certa nobreza. Era realmente muito bela.
“Não fui nenhuma princesa, nenhuma rainha, nem ao menos condessa, baronesa ou viscondessa”. - Completou de imediato, tão logo me passou pela cabeça adivinhar-lhe o título.
Ela própria foi quem se classificou como sendo apenas mais um ser que já habitara o mundo material. Prestamente me disse que ao tempo em que vivera na metade do século dezenove, a alta burguesia tornara-se o foco mais importante da sociedade lisboeta. Destacavam-se por sua riqueza, por seus cargos e profissões. Ela, embora pertencesse a burguesia, não podia se classificar como abastada. Seu pai fora um comerciante que longe estava de ser considerado rico, muito embora ostentasse esta fama; soubera amealhar pelo trabalho uma condição que proporcionara à família o necessário para viver e passar a idéia de riqueza.
Ao tempo em que vivera, disse-me, já se abrira uma nova mentalidade com respeito às mulheres, sendo-lhes permitido que tivessem acesso à educação, à leitura e até ao trabalho, coisas que antes eram restritas somente ao seio da família, onde a mulher passava grande parte de sua vida quase que enclausurada em suas luxuosas residências.
- “Eu”– prosseguiu -“apesar do necessário que me cercava, e, desta liberdade que sempre conheci, embora sem maldade no coração trazia, ainda, no recôndito de minha! alma, no mais remoto escaninho da lembrança, restos de um passado antigo em que sucumbira desastrosamente pelo excesso de cobiça, vaidade ,orgulho, e, soberba, principalmente a cobiça, que ainda estava – mais que os outros vícios - bem latente em minha alma. Aprazia-me, pois, freqüentar os principais jardins de Lisboa, o Passeio Público, as óperas, os jogos de salão, os bailes dos clubes e dos cafés que se viam aos montes naquela época.
Era assídua do Teatro D. Maria II e S. Carlos, em Lisboa, anfiteatros dos mais luxuosos da época. Gostava de exibir minha beleza entre os cafés Marrare e o Nicola, sempre apinhados de gente elegante que, como eu, gostava de exibir-se frivolamente.
Não me continha ao desfilar e insuflar caprichosamente nos homens o desejo por meus dotes femininos, coisa que fazia com naturalidade e com muito gosto, sem jamais me dar conta de que pudesse algum dia, com tais atitudes, fazer mal a quem quer que fosse. Só me dava conta de que era bela, desejada e na minha mente pouco importava se isto despertava algo bom ou ruim, fosse a mim própria ou mesmo em outras pessoas. Era necessário encontrar um partido rico para sair daquela vida de sacrifício que imaginava viver”.
Nosso pensamento, nossa consciência – que é nosso eu, nosso princípio vital desenvolvido e imortal- em qualquer situação, em qualquer lugar que esteja, seja no plano material, reencarnado, seja no plano verdadeiro e real, em espírito, é usina de força incomensurável que distribui e recebe aquilo que produz. E o que ele produz não fica simplesmente à conta de pensamento que não passa da imaginação de nossa individualidade. Ao contrário, é força que se materializa e vai se acoplar a tantos outros pensamentos que se afinam com o mesmo produto. Daí, não raras vezes, nascem grandes tragédias, grandes culpas, grandes reparações. Isto em virtude da Lei Maior que nada deixa passar, pois que é inerente ao livre arbítrio de cada um, e é aplicada independentemente de qualquer outra coisa que não os nossos desejos, as nossas ações, automaticamente.
E, prosseguiu: -“ No verão de 1870 me encontrava imersa em pensamentos egoísticos caminhando no Passeio Público do Rossio numa noite de 5ª feira, o que era de “bom- tom”, pois que se evitava os domingos e dias de festejos , já que nestes dias, por ser gratuita a entrada, havia maior afluência de pessoas de outras camadas sociais o que fazia com que houvesse uma mistura, e, para gente da minha estirpe não era “chique” participar deste amalgama social”.
Parou um instante, ergueu de modo súplice os olhos para o alto, como a pedir alguma coisa aos Céus, e continuou firme:
-“ Em dado momento, num relance, percebi que um jovem me acompanhava os passos e, muito embora eu estivesse acompanhada de mais duas amigas, pude sentir aquele olhar diretamente no meu. Não tive qualquer dúvida sobre isto. Soara para mim, sem que eu sequer imaginasse, a hora fatal da escolha: Progredir ou retardar a infinda subida para a Luz? Para minha desgraça escolhi a segunda opção”.
Será que o determinismo ou destino, como muitos denominam, existe? Teremos, desde o momento em que nascemos na terra, um caminho já traçado? Haja o que houver, façamos o que façamos, as coisas acontecerão sempre e nada nos fará mudá-las? Neste caso, que importa a escolha que façamos? Se para o bem ou para o mal... Maktub!
Mas, seremos, ao contrário, nós próprios os construtores deste destino? Nossos atos, pensamentos e atitudes é que nos conduzem para o nosso céu ou nosso inferno interiores já que temos o livre arbítrio que nos é inato? Para que serviria ele, então?
Não raro, o estudante da vida que se aprofunda na ciência que define quem somos de onde viemos, e, para onde vamos queda embasbacado nesta encruzilhada. Responsabilidade exclusivamente nossa? Estaremos sujeitos a Lei de Causa e Efeito ou nosso destino já vem traçado e vivemos sujeitos a Lei do determinismo imutável?
Como estudante, também, de nossa existência, diremos que as duas concepções se reúnem para formatar a essência deste enigma. Temos, na maioria das vezes, uma estrada escolhida com antecedência para percorrer.
Ao escolher sabemos, com antecedência, das dificuldades, dos empecilhos, dos perigos que vamos encontrar. É imprescindível passemos por ela, e, assim faremos. Então, partindo desse ponto pode-se dizer que existe um destino a chegar, já traçado. Entretanto a forma como vamos percorrê-la depende de nosso livre arbítrio. A cada vez que tomamos um atalho para fugir das dificuldades encontradas enveredamos por estradas vicinais e criamos novos desafios, já que são caminhos desconhecidos. Haveremos de retomar a estrada principal, pois que este é o nosso destino, nosso desejo, nossa finalidade precípua. Entretanto, por nosso livre arbítrio, haveremos, antes, de contornar as dificuldades dos atalhos escolhidos, sobrepujá-los, pois que nos mesmos os colocamos em nosso percurso principal sempre rumo norte e para o alto.
Maria Amália, então, voltando da pequena pausa que me pareceu quase uma viagem que sua mente fizera, fitou-me de maneira profundamente humilde e continuou:
“- Peço-lhe paciência meu amigo, e agradeço-lhe a caridade por me doar seu tempo, mas se faz necessário para que eu atinja o objetivo a que me propus pequena digressão a um passado longínquo que, a princípio, sequer imaginava que existisse mas que verdadeiramente é meu”.
A JUDIA:
A mesma sensação que tivera no início sobre ela retornou, mas foi prontamente rechaçada, e, tentando compreendê-la apenas lhe disse, em pensamento, que teria todo o prazer de ajudá-la no que me fosse possível.
“ Digo-lhe, meu amigo, que vivemos muitas e muitas vidas ao longo de nossa eternidade. Não me lembro, ainda, de todas, e, muito tempo ainda hei de viver para reuni-las numa só experiência. Entretanto, uma me voltou à memória de maneira tão verdadeira, tão real que me fez entender, finalmente, todo o significado de nossa existência milenar e infinita”.
Fenômeno curioso presenciei nesta oportunidade e que nunca mais se repetiu. Confesso que fiquei pasmo quando num átimo de segundo percebi que ela se transformara quase que totalmente. Embora eu reconhecesse nela a mesma estrutura espiritual e nenhuma dúvida tivesse de que se tratava da mesma entidade com a qual iniciara o diálogo, ela, vez por outra, se transmudava em outra personalidade. Variava entre a alabastrina jovem de olhos verdes e uma outra figura feminina diferente. Fenômeno singular aquele. Parecia que se esforçava para buscar na lembrança fatos ocorridos em passado bem distante, e, este esforço fazia com que ela ora fosse uma ora fosse outra pessoa. Finalmente conseguiu estabilizar sua nova forma e pude, então, perceber ao meu lado, não mais a jovem portuguesa de cabelos cor de trigo, mas outra jovem de pele amorenada, negros olhos e vasta cabeleira acastanhada que lhe chegava até aos ombros.
Recompondo-se, retomou a palavra me dizendo:
“Ao tempo em que Roma vivia sob o império de Tiberius Claudius Nero Cæsar, imperador romano que ampliou a lei de lesa majestade cuja finalidade fora tornar crime meras palavras pronunciadas contra sua pessoa, lei que acabou por fazer com que Pôncio Pilatos entregasse Jesus aos judeus que a conheciam e a invocaram frente ao Governador da Judéia, posso dizer que vivi uma experiência na carne com certo amadurecimento sobre o bem e o mal”.
É de Tibério a imagem cunhada na moeda que os judeus deram a Jesus na tentativa de colocá-lo em situação difícil. Quando lhe apresentaram esta moeda e lhe perguntaram a quem deviam obedecer se a Cesar ou a Deus retrucou-lhes Jesus: “De quem é esta imagem e inscrição? Responderam-lhe: -“De César”. Disse-lhes, então Jesus : “Dai, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus".
A judia, pois que assim o era, continuando a narrativa disse: “Tive, naquela experiência vivida na Judéia, – continuou ela-” a grande oportunidade de me redimir de muitas derrocadas da alma, erros e enganos cometidos em longevas eras, pois que tal oportunidade me fora dada naquela vida, na qual ouvi os conceitos de uma nova doutrina que surgia, uma boa nova que viera para por fim a todas as excrescências morais do mundo. Surgiu, para mim, então, nítido naquela época o livre arbítrio, esta escada maravilhosa que Deus, em sua infinita bondade, nos colocou à disposição para que subamos até Ele”.
Existe um momento em nossas existências no qual nos deparamos com uma situação que nos permite perceber a diferença entre os resquícios do instinto animal e o inicio da razão, latentes em nossa alma. Não há dúvida que uma existência vivida sempre se sobressairá como sendo, talvez possa dizer assim, um marco nesta viagem que fazemos, há milênios, com destino ao pais da Luz. Este é mesmo o momento em que, pela primeira vez, o nosso livre arbítrio se manifesta em todo o seu potencial.
Mudando cada vez mais sua aparência externa, continuou:
“Mas, ai de mim. Preferi descer a subir. Depois de ouvir palavras que me balançaram toda a estrutura do ser, saídas do coração de um dos adeptos daquela doutrina que surgia como esperança de justiça, conheci um alto funcionário do governo romano que se instalara, então, naquele solo sagrado.
Numa dessas reuniões, que já eram proibidas, mais por perseguições dos próprios judeus do que propriamente dos romanos, fomos a apanhados por um grupo de fanáticos que nos denunciaram a alguns soldados. Deram-nos ordem de prisão e fomos encaminhados, um a um, à presença do centurião-chefe”.
O centurião, na ordem militar do Império romano era o oficial de confiança que comandava uma centúria de soldados; dava ordens e era responsável pela disciplina do grupo que comandava. O Centurião Chefe exercia sua tarefa com mão de ferro,e, era responsável por uma coorte de até 6 centuriões que vasculhavam as ruas e resolviam as pendengas que surgiam, diuturnamente. Tinha, ainda, por ser o comandante em chefe daquelas pequenas legiões, o poder de decidir muitas coisas, sem que necessitasse dar satisfações a qualquer de seus subordinados.
-“ Chegada minha vez deparei-me de frente com um homem robusto, de olhar firme que, por incrível, não me passou nenhuma sensação de medo. Não vi nele qualquer ameaça embora a conhecida truculência dos centuriões romanos que infestavam a cidade.
Fitou-me demoradamente e perguntou: “- Que faz uma mulher tão bela junto aos seguidores do pobre rei dos judeus?”
Tentei me justificar com as mais variadas historias, pois que senti ao deparar-me com ele uma esperança de escapar de um destino que parecia certo”.
Não raras vezes o instinto de preservação que trazemos inato, sempre, em qualquer época ou situação, nos informa por um mecanismo, talvez retido em parte desde os tempos de outras experiências em reinos diversos, com quem lidamos num determinado tempo de nossa existência infinita. Tais oportunidades de escolha nos são oferecidas, ao longo da jornada, para que escolhamos o rumo certo a tomar a fim de que cheguemos mais rápido ao destino que nos foi reservado.
-“ Indicou-me um lugar afastado dos restantes sem me responder a qualquer das desculpas que lhe dava e determinou a seus comandados que levassem os demais imediatamente”.
”Apenas eu e dois de seus soldados, aos quais chamou com um simples olhar, permanecíamos no lugar, além dele. Aproximou-se de mim, e, com um timbre de voz bem diferente daquele que ordenava a seus comandados e aos prisioneiros me disse: - “Preferes a minha companhia onde poderás professar, em segredo, a crença que segues ou juntar-se, inutilmente, a seus desgraçados amigos”?
“- Na verdade eu não era tão seguidora assim daquela crença, e, muito embora a reconhecesse como uma esperança, não pude, num relance, deixar de ver toda a utilidade daquela aliança que aquele romano- cujo povo eu desprezava - me propunha.
Flaminius, pois que era este o nome daquele que me acenava com uma oportunidade de nova vida, instalou-me em moradia nas cercanias da cidade onde eu podia levar uma vida modesta, mas verdadeiramente cheia de alegria e muita fartura em comparação com a que antes vivia.
Apesar do cargo que exercia, era ele, no entanto, pessoa digna e honrada, e, convivendo com ele naquela pequena comunidade de imediato pude perceber , por seus atos diuturnos, que havia me consorciado com um cristão romano.
Vivi sob os cuidados daquele centurião por cerca de meio lustro. Era uma vida monótona, simples, mas honesta, verdadeira, o que, infelizmente, para mim, não era suficiente, pois que aspirava a coisas grandiosas, luxo, riqueza e pompa.
Estava sempre buscando um meio de atingir meus objetivos e por conta disto nada mais observava à minha frente. Certo dia conheci um jovem judeu de nome Aaron. Inteligente, astuto, freqüentador assíduo dos Templos onde se pregava e se conspirava contra os seguidores daquele que- diziam – ser o Messias.
Não foi preciso muito para que Aaron ficasse sabendo da situação em que eu vivia e muito menos para que eu concordasse em delatar o que se passava naquela pequena comunidade Cristã, muito embora aquele romano que me amparara estivesse sempre presente no resto da minha vida, em minha memória. Descobrira muito tarde que o amava e que nenhuma daquelas riquezas que a traição me proporcionara serviram para aplacar minha dor e meu remorso pelo ato intempestivo originado pela egoísmo e ganância”.
“Não me é dado adentrar nesta fase, eis que não me pertence de todo, mas posso adiantar que Flaminius foi considerado traidor e condenado a passar o resto de seus dias exilado em remota ilha, pois que apesar de tudo era romano legitimo. Os demais judeus fugiram e uns poucos foram exterminados pelas espadas romanas e seus bens confiscados”.
É desta forma, nas vidas passadas, que construímos as nossas vidas futuras. A vida presente é a soma de nossas vidas passadas. Em todas elas, porém, nos foi, e, nos será dada oportunidades de resgatar erros e progredir moral e intelectualmente na senda que nos levará à Vida maior e verdadeira. A Lei Divina é justa, imutável, inexorável, mas, ao mesmo tempo, é bondosa, é flexível e permanece accessível a todos indistintamente, que queiram respeitá-la e cumpri-la. Não há como trair-lhe os ditames universais, pois que ela não é passível de confusão, como as leis terrenas. Há milênios vimos acumulando erros nas jornadas empreendidas na crosta planetária.
Da mesma forma que passara de Maria Amália para a judia Alitzah voltava desta para Maria Amália. O fenômeno, repito, era realmente interessantíssimo e nunca mais saiu de minha mente, embora não mais houvesse se repetido, e, recompondo-se, ela prosseguiu sua narrativa inicial:
“ Uma sensação de certa angustia me invadiu a alma ao corresponder àquele olhar. Mas, ao mesmo tempo aquela figura me atraia de uma forma inexplicável. Eu como que percebia intuitivamente que deveria me afastar dele mas a curiosidade, a vontade ou seja lá o que fosse permitiu aquele encontro que, embora eu não soubesse, já estava planejado muito antes de mais um retorno à carne.
“João Filgueiras, pois que assim se chamava o cavalheiro, acabou por ser meu esposo três anos depois deste primeiro olhar. Era ele, então, riquíssimo comerciante da cidade do Porto.
Não demorou muito para que eu descobrisse o seu verdadeiro caráter e como amealhara sua fortuna. Era dado a festas e diversões outras que não as que eu fora criada. Era dissoluto, egoísta, possessivo. Continuei, assim, praticamente reclusa dentro de minha casa, como um pássaro numa gaiola de ouro. Enganchei-me, então, junto a uma comunidade de pessoas de posses que buscavam prestar ajuda a todo tipo de necessitados que vagavam pelas ruas de Lisboa”.
“Tive, então, os primeiro contatos com uma filosofia religiosa que surgira na França e já ganhava terreno em grande parte da Europa desenvolvendo uma nova filosofia de vida, uma nova direção para a ciência e a religião. Posso dizer que chegara para o mundo o inicio da grande tarefa de trazer de volta o Cristianismo, surgido em sua mais pura essência e verdade na era romana”.
“A idéia, que não era totalmente nova para meu espírito milenar, foi por mim encampada até com certa facilidade, pois que dela já ouvira falar na época em vivera um de meus avatares na Judéia. Passei a travar conhecimentos com aquela realidade que , embora muitos levassem à conta de divertimento, trazia conforto e esperança para minha alma. Tentei de todas as formas prestar minha ajuda presencial e financeira, mas embalde. Meu marido, de modo algum aceitava aquilo, já que descendia de judeus e o Judaísmo era a sua religião. Desconfiado de minhas idéias cristãs, cada vez mais ele exercia seu poder e fui perdendo a liberdade e cada vez mais dele me afastava e cada vez mais sofria em cárcere domestico”.
“Passei a freqüentar, às escondidas, as reuniões; a princípio motivada mais pela oportunidade de sair de casa, mas depois percebi que eu me afinava com as pessoas que partilhavam aquela idéia renovadora. Era um grupo pequeno de abnegados que começavam ou recomeçavam o ideal de espalhar o quanto pudessem aquela forma de enxergar a finalidade da vida, de dar sentido a ela, de explicar o eterno enigma: saber de onde viemos, qual a nossa finalidade aqui, e, para onde vamos depois da morte física.
“Ali conheci Pedro. Espírito forte, de caráter ilibado que, pode-se dizer, comandava aquele grupo que buscava espiritualizar-se. Destacava-se, dos demais. Não apenas por sua tolerância e bondade, mas também por seus conhecimentos elevados da Doutrina que viera da França”.
Há milênios vimos acumulando erros nas jornadas empreendidas na crosta planetária; há milênios voltamos para repará-los, mas permanecemos com eles, muitas vezes agravando-os mais, e, não raro somando-os a outros novos. Permanecemos um tempo no espaço e, tomando conhecimento deles, prometemos a nós mesmos empreender nova jornada para não repeti-los. Mas, temos nosso livre arbítrio, pois que se assim não fosse, nenhum mérito teríamos se fossemos impedidos de usá-lo. Depende apenas de nos esta decisão. Somos os mesmo atores encenando personagens diversas nestas idas e vindas ao palco terrestre, mas atuando, sempre, na mesma peça: A evolução moral e intelectual.
“Não preciso dizer”. – continuou – que aquele espírito me encantou, pois que a ele relatei todo o meu drama, a minha vontade de ajudar tendo posses, mas não podendo usá-las. Pedro atendia-me com a presteza que dispensava a todos que o procuravam.
Dele ouvi as primeiras palavras sobre renúncia, desprendimento, perdão, amor ao próximo. Com ele passei a admirar os preceitos da doutrina espírita; tomei ciência pela primeira vez da obra “ O Livro dos Espiritos” de Allan Kardec. Realmente passei a admirar aqueles pensamentos, aquela filosofia que igualava todos no mesmo patamar perante Deus. A cada um segundo suas obras, nada mais justo.
Entretanto, ao mesmo tempo, tomei-me de amores por ele. Paixão desenfreada que não havia experimentado na vida, até então, mas que guardava comigo os escaninhos da alma de épocas remotas”
Quem se liberta de seus vícios morais num repente, numa só vida, num só estágio no planeta? Crer na imortalidade é progresso de uma hora no relógio da eternidade. Não basta isto; sem que nos iluminemos através da regeneração moral, do reconhecimento de nossas falhas através, muitas vezes, da renúncia, não atingiremos a claridade sublime. Antes, necessário elevar o coração, abster-se do personalismo que avilta, da inveja que corrói, do ciúme que dilacera, do orgulho que impede a marcha para o alto, do controle dos instintos que nos fizeram perder o rumo da estrada.
Continuou: “ Pior que eu sentia intimamente que não era ignorada, como mulher, por ele. Disposta a ter o amor que eu achava que merecia não neguei esforços no sentido de conquistá-lo. Insinuava-me constantemente na tentativa de obter a qualquer preço aquele amor que eu julgava correspondido, até que me declarei a ele de forma clara.
Pedro, porém, olhou-me fixamente, e com todo o respeito e carinho que se pode esperar de um espírito de escol, fez-me ver que tínhamos ambos, compromissos a serem cumpridos naquela vida, e, a renúncia ao tipo de amor que eu desejava era extremamente necessária para nossa própria evolução. Além do que tínhamos assumido outros compromissos, também inadiáveis, eu com meu marido, ele com sua esposa e filhos. Embora não dissesse que não me amava, olhando para mim com firmeza, mas com ternura, respeito e até tristeza, disse-me que o caminho que fora escolhido por nós mesmos para percorrer naquela vida deveria ser percorrido da forma prevista, pois que não se pode entortar o destino criando curvas na estrada, sob pena de nos afastarmos cada vez mais do rumo norte que foi traçado para atingirmos a Luz. O mundo desabou para mim naquele instante”.
“Por mais que pensasse em lutar por aquele amor, e, não raras vezes pensar que tinha este direito, pois que tinha quase certeza da reciprocidade de meu sentimento, chegando mesmo ao desatino de engendrar mil maneiras de afastar aquele homem de sua esposa não consegui colocá-las em prática. A fortaleza moral daquele espírito, o antigo centurião romano- pois que era o mesmo Flaminius- era inabalável e sua fé e vontade férrea de seguir na senda de Luz eram como um escudo que o protegia até de meus pensamentos malévolos.
“Descri da vida espiritual. Não conseguia entender que pudesse um Deus permitir tanto sofrimento que supunha eu não merecer. Abandonei tudo aquilo, todas as amizades sinceras que conseguira, os ideais maiores que me ajudavam a seguir na vida escolhida ao lado de um marido que, se não era quem eu amava e que julgava me maltratar, tudo me proporcionava materialmente. Entreguei-me, assim, aos prazeres e aos luxos da vida na época, chegando ao último estágio da imoralidade; a traição. Posterguei para um futuro, que sequer imaginava existir, mais uma chance de me redimir de faltas graves cometidas no passado, e, retomar o caminho que nos leva ao ápice de nosso destino.
Deixei o mundo depois de longa doença que prostrou-me ao leito por quase um ano e meio.
Vaguei sem saber disso por entre vales de dor, em arremedos de cidades onde tudo era permitido embora o sofrimento comum atingisse das mais variadas formas a todos que ali viviam. Fiquei sabendo, tempos depois, que ali permaneci por cerca de sessenta anos.
]
“Pensava, às vezes, que estava presa em tremendo pesadelo e fazia força para acordar, o que não acontecia e então me desesperava; outras vezes acudiu-me a idéia de que havia morrido e habitava o purgatório. Mas, como era isto possível, pensava, já que eu vivia e sentia, ainda, os sintomas da tuberculose que consumira meu corpo.
]
Certa feita me achei em meio a horrorosa tempestade onde os relâmpagos e os trovões ribombavam pela escuridão do vale. Num destes clarões avistei uma gruta e para ela corri a fim de me abrigar daquela tormenta.
Encostei-me na pedra úmida e fria, e, pela primeira vez tive então, num segundo, num átimo de tempo a lembrança de Lisboa, a percepção de quem eu era realmente; passou-me à razão meus pais, minha casa. Cai de joelhos e me lembrei de Deus. Não precisei falar.
Uma luz surgia aos poucos à minha frente. A princípio me ofuscava completamente. Entretanto, num repente formou-se diante de mim a figura serena de Pedro. Sim, era ele, mas trajando uma impoluta e reluzente veste de um centurião romano.
Estendeu-me a mão e me disse: Chegou a hora do basta, vamos. A vista turvou-me, embaraçou tudo á minha volta e nada mais vi.
Mais tarde pude entender que fora pela terceira vez socorrida pelo mesmo espírito.
Voltarei em breve ao mundo. Encontrarei, talvez, mais uma vez em meu caminho, a repetir as experiências mal fadadas o espírito de Pedro, em condições mais elevadas ainda na obra de sua retificação e progresso. A mim caberá, por meu livre arbítrio, escolher o caminho reto que conduz ao cume ou enveredar mais uma vez pelas curvas da estrada.
Somos herdeiros dos séculos e conquistamos nossos valores morais e intelectuais de experiência em experiência de vida em vida, através dos milênios.