DONA MARTA

O menino Davi tinha dez anos e ainda não entendia os dois telhados quase verticais da entrada da casa de dona Marta, uma vizinha alemã de 85 anos. Diziam que a mulher pretendia evitar o acúmulo de neve sobre a casa durante o inverno, contudo calhava que a construção estava na cidade de São Paulo, uma cidade onde diziam não caía neve.

O menino Davi era absolutamente tímido e nunca perguntou nada sobre os telhados da dona Marta. A vizinha frequentava a casa de sua família e notava a timidez do Davi. Às vezes dizia: “Não precisa ser tímido, menino!”

Davi nem teve tempo de responder não ser timidez aquele silêncio; era um medo caindo sobre sua cabeça todos os dias; um medo da sala de aula, do recreio, da bandeira do Brasil. O medo surgia até quando o asfalto das ruas parecia mudar de cor e ficar meio roxo. Eram roxas as ruas da casa de Davi até a escola.

Um dia o menino chegou e avisaram do falecimento de Dona Marta, a vizinha alemã de 85 anos. Davi ficou atônito, pois velhos eram velhos para sempre. Davi não entendeu como também não entendia tudo que o cercava e talvez por isso, dois dias depois da morte da vizinha, ele teve um sonho: sonhou justamente com a casa de dona Marta. Ele a olhava de frente quando começou a nevar em São Paulo. Uma neve imensa soterrava tudo, mas na casa, por causa dos telhados, a neve não ajuntava, escorria pela cerâmica e a casa permanecia uma estampa arroxeada ante a branquidão geral do mundo.

Davi sentiu o teto ali inteiro. E pensou depois, Dona Marta previu a neve em São Paulo. E pensou também; a espera da nevasca é um modo de cuidar de tudo. Os telhados são um modo de afirmar que, se uma neve absurda pode escorrer aqui, nada ruim deve se acumular em ninguém. Os medos e o frio deslizarão pelas bordas.

No dia seguinte, voltando da escola, Davi passou pela casa de dona Marta, mediu os telhados da vizinha. Eles estavam ali. Verticais. Era uma manhã de muito sol e tudo seguiria bem.

Davi também concluiu: “Dona Marta sabia, todos os meninos são telhados verticais a prova de nevascas”.

DO LIVRO: "ÓBITOS EM COPACABANA"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 04/11/2016
Reeditado em 29/08/2023
Código do texto: T5812672
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