A VOZ NO FUNDO DA ESCURIDÃO

Eram dois seres, no meio do nada. Porém nunca estiveram mais perto de tudo, estavam um ao lado do outro. Sem saber explicar sentiam uma atração; polos opostos, yin e yang, caos e ordem, arrazoando, buscando o equilíbrio. Talvez sentissem aquilo que chamam de Amor. Porém não podiam ter certeza; tudo foi muito breve, rápido. Pouco podiam ver; estavam perdidos, nas esquinas deste grande mistério, esta grande caverna onde jazemos acorrentados. Lá viviam de costas, espiando apenas as sombras um do outro, naquilo que chamamos Vida. Na treva apenas a voz um do outro. Eles falavam:

- No princípio nada havia. Pelo menos, não naquele momento. Pouco me recordo... Vez por outra uma imagem turva no pensamento. Não; não imagem, antes pressentimento. Antes visão. Antes mistério. Mas lembro-me de uma coisa: você. Você já estava lá. Lembra-se? Pode enxergar?

- Não sei. Mas meu coração sente.

- Sim, é disto que falo. Aquela coisa que não podemos ver, ouvir ou provar, mas sabemos. Aquele toque, aquela carícia na alma que ninguém explica mas todo mundo sente. Como uma música leve, um toque de flauta nas sombras. Havia luz e sombras... Havia um lugar diferente. Sim, não havia matéria, apenas luz e energia. Éramos como nuvens flutuando no vento. Ah, você se recorda? Guarda aquele momento feliz? Ah, a vida era dançar e flutuar pelo espaço e no tempo, duas plumas de eternidade, dois anjos que apenas viviam um para o outro. Ainda posso me lembrar... Tínhamos um guia. Chamávamos de Um. Lembra como a voz Dele era poderosa? Sim, ela ressoava no meio da luz como um trovão. Um dia, todos nos reunimos, Ele nos apresentou um plano. Ele queria nos dar um presente, a maior das dádivas. Queria que fôssemos como Ele. Lembra-se?

- Não, lamento, mas posso imaginar.

- Faz sentido?

- Sim, faz. Mas o que houve?

- Ah, como foi lindo... Ele nos daria um teste. O teste dos testes: chamava-se Terra. Lá seria nossa casa, seria nosso campo, quintal e repouso. Ah! Como exultamos; brilhamos como as estrelas. Mas nem todos; havia outro que se revoltou. Havia os que não quiseram. E então houve guerra, batalha.

- Guerra? Cada um defendeu sua vontade, cada um escolheu seu caminho.

- Como você sabe disso?

- Cada um de nós recebeu uma chance e cá estamos, não é? Mas, então...

- Mas então o quê? Por que não me lembro de nada disso?

- Porque para isso precisamos ir além dos olhos e dos ouvidos. Precisamos transcender a matéria, flutuar além do tempo e do espaço. Há uma dimensão nova, toda, só pra nós.

- E qual é?

- Chama-se o Eterno. Venha comigo, dê-me a mão.

- E se eu tiver medo?

- Nesse caso, tenha fé.

- E se eu me perder?

- Nesse caso, não olhe pra trás.

- E se você, e se eu, e se nós morrermos?

- Nesse caso... Só me abrace. Só me ame.

E então eles deram as mãos e se abraçaram, lançaram-se na escuridão. Uniram-se em um só. E eles voaram. Emergiram nas mais profundas águas e viveram, de novo. Receberam a luz e o fogo, para guiá-los pelos desertos. As feras e as forças da natureza foram seus parceiros. Provaram os frutos dourados das árvores e o semearam. Ergueram uma tenda, criaram florestas no meio do ermo. E assim vagaram, rumo a esse desconhecido, tantas vezes esquecido porém vivo dentro de nós. A Eternidade.

Ronaldo Thomé
Enviado por Ronaldo Thomé em 03/11/2016
Código do texto: T5811672
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