FINADOS

Fui levado por um grupo de pessoas conhecidas por razões que desconhecia, numa viagem. Talvez fossem parentes, tinham muita intimidade e ao mesmo tempo se estranhavam. Tinham cuidado especial com tudo que eu fazia, observava, ou falava.

Eles não me levavam, mas acompanhavam o meu itinerário.

Visitamos uma pessoa que morava longe. De uma rua íngreme, pude ver as ruínas de uma casa muito grande no alto mais alto da colina. Da varanda da casa onde estávamos hospedados, naquele instante, contei a história do casal que viveu, naquela casa. Uma história de amor. Os barrancos hoje estão apinhados de casas, é uma favela. Talvez fosse o Rio de Janeiro ou, quem saberia dizer, os Alpes.

Acontece um momento de clarividência, estamos em águas profundas. No barco, uma movimentação de festa, de confraternização. Um instante depois, retomamos a marcha, agora a cavalo puxada numa carruagem ou algo parecido. Descemos outra rua, interminável e em declive. Paramos porque foi decidido, iríamos a pé. Então, sentado na beira do caminho e de frente para um charco úmido revestido de verde, sinto coçar os dedos do pé. Sento-me e esfrego para aliviar, cedo ao prazer. Tem alguma coisa viva no meu dedo, um bicho de pé.

Enojado e surpreso, espremo até que saia metade, depois o resto. Mas tem outro e outro e outro e outro e outro e outro e outro bicho no meu pé. Olho espantado o redor. Peço explicação para as pessoas do grupo e vem de uma mulher a consideração: já podemos voltar.

O resto da descida, a rua deve ser ultrapassada rapidamente, se dá num ônibus pequeno. Acontece um acidente, o veículo tomba e agora estamos todos fingindo de mortos. Pessoas ajuntam para ver o que aconteceu. São curiosos, pessoas da rua. Escuto uma voz coletiva que concorda em revelar nosso estado para todos. Nossa aparência em decomposição assusta tremendamente os curiosos, isso permite nossa fuga.

Fugindo dos vivos descubro outros mortos, os de aparência fluída que estão em nosso encalço. Desses devemos fugir. O grupo se dispersa sob a orientação de que deveríamos nos confundir com os objetos, incorporá-los e eu desesperado. Não sei fazer isso. Vejo que alguns entram nas paredes, nos carros sem abrir as porta e tento fazer o mesmo mas parte do meu corpo fica à vista. Um desses mortos temíveis acompanha uma caminhonete e toma o corpo do motorista, faz com que seu pé se atrapalhe com os pedais. Isso que provoca um acidente e a morte do motorista. Eu vejo como se fosse explicação para alguns casos de morte.

Chegamos na estação ferroviária. Eu encontro, amontoado num balcão, rascunhos de coisas que eu mesmo escrevi. Escrito e lido no ano tal, na estação um trem vai sair mas não é o que devemos pegar para fazer o retorno. A estação tem um ar romântico, bela epóque.

Esqueço conselhos, corro atrás do trem seguindo o último passageiro que embarcara. Todos do meu grupo começam a gritar para que eu não fizesse isso, que não era o caminho, que não era aquele trem. Mas é tarde, já estou dentro.

É uma Maria fumaça e o vagão, que é o último, é descoberto e tem uma grade de proteção. Num segundo o grupo está reunido ali e um deles se dobra num ângulo reto fazendo de seu corpo uma linha paralela e vertical a do trem. Com isso ele lê a inscrição que indica o destino da linha, volta o corpo para o estado normal de um corpo e diz em tom explicativo: o trem vai pra São Paulo.

Resignado aceito a condição da despedida e desisto do absurdo que me parece agora continuar naquela direção. Estamos satisfeitos agora, até parece que comemoramos. É uma confraternização. Afastado num canto arejado e iluminado por uma luz de infância, está uma mesa e um banco para dois. Sento-me ao lado de um homem sereno que sorri amavelmente. Ele está muito limpo, é forte e usa uma perfume de fragrância adorável, tem papel e lápis nas mãos. Depois de uma eternidade a seu lado em silêncio confortável, sorrimos e digo em voz alta o que nós dois estávamos pensando juntos: dá próxima vez use esmalte nas unhas.

Estranho, mas a metáfora é entendida. Nos olhamos indiferentes a significados e terceiros. Não havendo necessidade, rimos. Entre familiares, coisas por fazer. Tudo fica para depois, tubo bem. Eu os vejo, não sou visto.

Saio acompanhado por duas pessoas, talvez um casal. Chegamos ao pé de uma escada ofuscante, suspensa em ziguezague. Penso que seria muito perigoso ir por ali sozinho porque a escada se equilibra no vazio, no escuro. É quando aquele homem gentil se adianta feliz, rápido e com certeza no olhar. Instiga-me, me provoca.

Como criança que faz sorrir o melhor amigo, ele convida subindo na frente. Deixando o perfume e a vontade de segui-lo. Olho para o casal que vai ficar ao pé da escada e sorrimos. E eu vou.

BALTAZAR

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 02/11/2016
Código do texto: T5810798
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