Deus
O velho arqueólogo caminhava solitário entre as inúmeras estantes de seu arquivo, vasculhando pelas riquezas de toda uma vida de ofício, mas ainda não totalmente exploradas. Através de sua longeva e produtiva carreira acumulara uma série inumerável de itens, à maioria dos quais só conseguia dar atenção agora, na sua aposentadoria, com maior tempo livre.
No saguão silencioso da universidade, iluminado pelas bruxuleantes luzes que deixavam o ambiente um tanto taciturno, o velho ia catalogando uma série de artefatos adquiridos por doação de um antigo benfeitor da instituição. Tirando a poeira dos materiais com um pequeno pincel, ia descrevendo-os em pormenores a serem estudados posteriormente.
No entanto, algo atraiu-lhe a atenção.
Era uma lâmpada, cujo brilho e beleza destoava dos demais itens. Mesmo no fundo de uma prateleira abarrotada, à sombra, ela refulgia como se fosse dotada de brilho próprio; sua luz dourada refletida nos óculos do doutor foi um convite para que este a examinasse com cautela.
- Uau! - o velho deixou escapar pelos lábios a fascinação que seus olhos sentiam. Que lindo objeto! Fino, maravilhoso; rico em detalhes, muito bem trabalhado… Produto de acurado artesanato, todo adornado de caracteres ricamente entalhados.
Logo acorreu sua mão direita para apanhar, no bolso traseiro de sua calça bege, o inseparável e polivalente lenço xadrez, para dar uma lustrada no precioso metal…
“PUF!”
Um espírito projetou-se da lâmpada, assustando o pobre velhinho.
- Olá, meu nobre amo. Vejo que descobriste o segredo da lâmpada.
- Eu… eu… já devia ter imaginado isso. - Observa o doutor, perplexo, com aquilo que via à sua frente.
- Em gratidão a tão louvável ato de libertar-me de minha prisão, concedê-lo-ei três desejos, que lhe serão prontamente atendidos.
O doutor, ajeitando seus tortos óculos na face empalidecida, tentou recompor-se e entender melhor tudo aquilo: não, não havia como entender. Todas aquelas estorinhas infantis de gênio da lâmpada tinham algo a ver com a verdade. Ficou perplexo, admirando aquele homem translúcido, de traços médio-orientais, pairando no ar à sua frente, com expressão neutra e um tanto fleumática, aguardando os desejos do envelhecido cientista.
- Tenha bondade, senhor. Não se acanhe, peça o que quiser que lhe concedo; trato este que, ao final, nos desobrigará um do outro e poderemos partir livres, cada um ao encontro de seu destino. - Arguiu o espírito da lâmpada, instigando seu amo para que cumprisse logo com sua parte do trato apresentado. O doutor limpou a garganta e buscou situar-se: o que poderia pedir? Solicitou um minuto ao Gênio, e pôs-se a refletir profundamente sobre ímpar oportunidade. Após algum tempo vasculhando a imensidão de ideias e desejos, por fim decidiu:
- S-senhor Gênio (aham)... eu… posso pedir?
- Pois não, senhor. Diga-me o que desejas e eu te concederei.
- Qualquer coisa?
- Sem reservas. O que pedirdes, tê-lo-ás.
- Primeiramente, desejo conhecer Deus; se é que Ele existe. Mas sem morrer! - Ressalvou apressadamente o arqueólogo.
- Sim. Mas aí, já são dois desejos.
- Perfeito. E desejo voltar para cá novamente, óbvio.
- Eis vosso terceiro desejo.
- Ah… devia ter pedido de outra forma. - Suspirou o velhinho, ao perceber que havia gasto seus três desejos num só. O Gênio cruzou os fantasmagóricos braços e falou-lhe, solenemente:
- Concedê-los-ei na seguinte forma: irás à presença divina e voltarás, ao comando de duplas palmas de minha parte. Terás um intervalo terrestre de 5 segundos entre tua ida e volta, o que será suficientíssimo para que te sacies, pois estarás na Eternidade, onde o jugo do tempo não pesa como cá. Espero que fiques satisfeito, meu amo. - Dito isto, o espírito aprumou-se e bateu duas palminhas, seguidas de um flash.
***
Num piscar de olhos, o arqueólogo foi transportado da penumbra de seu arquivo para uma paisagem absurdamente ampla, de céu alvo e muita luz, o que feria-lhe brevemente os olhos. Semicerrando-os, pôs-se a contemplar tal local, estranho a todo e qualquer outro ser vivente em sua situação.
Ali os horizontes expandiam-se até onde a vista alcançava, e mais além. Pisava num terreno macio e terno, que oscilava lentamente para cima e para baixo, como se respirasse, causando-lhe um risinho infantil de admiração. Reparou que aquele solo era totalmente recoberto de uma vegetação insólita que assemelhava-se, para efeito de comparação, com um campo de trigo; porém, tal vegetação era totalmente branca, tão branca quanto o infinito céu que se estendia acima de si. Aqueles ramos balouçavam suavemente ao sabor de leve brisa maravilhosamente perfumada, que trazia junto de si uma música esplêndida, que parecia emanar longinquamente de uma multidão de vozes totalmente afinadas e harmônicas, como jamais um coro na Terra fora capaz de entoar.
- Bom. Imagino que esta deve ser a morada de Deus, com seus coros angelicais. Mas… cadê o Homem? - Pensou alto o doutor, vislumbrando aquele local pitoresco. Totalmente solitário, buscou seguir na direção do canto, mas logo desistiu de tão inútil tarefa: a música parecia vir de todos os lugares. Suspirou, e tentou focar algum ponto distante ao qual pudesse se orientar para encontrar Deus, mas não conseguiu pensar como.
- Ora, ora… Como encontro-O? Deus! Deus, o Senhor está aqui!? Deus! Ouça-me, quero vê-Lo!
Nada. Nenhuma resposta. Apenas a brisa leve e os cânticos enchiam o ar. Por todas as direções, nada parecia mudar.
- Onipresente, apenas esse mato alvejado. Confesso que é lindo, mas… não sacia minhas vistas. Quero vê-Lo, Deus! Apareça a este pequeno homem!
Mais uma vez, em vão. O doutor pensou em orar, mas não sabia. Filosofou por algum momento, tentando pensar em como teria seu desejo saciado.
- Céus! Meu desejo é ver Deus; e isto o Gênio assegurou-me. Mas… se só sairei daqui com meu desejo atendido, como sairei então se não ver Deus? Estou na Eternidade, será que ficarei aqui… eternamente?
Desesperou-se ligeiramente. Intentou pensar mais um pouco, mas as ideias lhe escapavam. Sem ter mais o que fazer, principiou a caminhar.
***
Como a Eternidade não lhe permitia mensurar distâncias ou tempo com exatidão, ficou confuso quando tentou refletir por quanto tempo caminhara por ali: andou o equivalente a milênios num piscar de olhos, ou quase nada em um tempo humanamente impensável? Tudo parecia-lhe igual, e não encontrava ninguém. Sequer um ser celestial era visível; apenas audível, naquele canto miraculoso. Por fim, desistiu. Sentou-se na vegetação alva, e clamou:
- Gênio! Tire-me daqui! Não há mais o que ser feito!
Nada.
- Me escuta? Alguém me escuta? Deus! Gênio! Estou aqui!
Desconsolado, desesperado pela sua volta ao Mundo, deitou-se no chão e fechou os olhos.
“CLAAAAAAAAAAAAP!”
Pôde ouvir claramente, ecoando por todos os lados, um longo som de batida de palmas, como se fosse distorcido eletronicamente para que suas ondas sonoras fossem esticadas. Logo recordou-se da senha de regresso: duas palmas do Gênio. Sentiu seu corpo levitar, e foi afastando-se do chão, lentamente e cada vez mais rápido, em direção ao leitoso céu branco. Animou-se, pois acreditava que aquela era a viagem de volta ao mundo real, e em breve estaria em casa, são e salvo de tão esdrúxula experiência.
- Mas… e Deus? - Ficou entristecido por não ver Deus. Afinal, embora duvidasse da existência divina, no fundo acreditava que o Todo-Poderoso fosse real.
- E agora? Se Deus não existe, então nossa existência finita nos conduz ao nada? Ou será que o Gênio pregou-me uma peça e me transportou a um lugar que não existe? Bom… se Deus existe ou não, não há como saber. Afinal, o Gênio pode ser um mentiroso, ou a existência do Criador é inalcançável a mero espírito encarcerado numa lâmpada. Ou… talvez Deus não exista mesmo.
“Pois é. Acho que o Gênio não me enganou, mas me conduziu até aqui para que eu visse, com meus próprios olhos, que Deus não existe mesmo. Pena que não conseguirei provar isto a ninguém na Terra…”
Enquanto o doutor ia digerindo sua frustração, ouviu um paradoxal leve porém poderoso riso detrás de si, como se um ser absurdamente grande não conseguisse segurar consigo a graça que sentia ao presenciar algo hilariante. O arqueólogo voltou sua face para trás e pôde contemplar brevemente o local onde estivera aquele tempo todo…
“CLAP!”
***
Mais uma vez num piscar de olhos, estava no saguão da universidade. O silêncio do ambiente, entrecortado apenas pelo zumbido ininterrupto das luzes elétricas, causou-lhe familiaridade instantânea. Estava sozinho, deitado no chão frio de cimento queimado, com a lâmpada caída ao seu lado. Não havia mais Gênio lá, e os corredores desertos lhe causavam uma impressão estranha. Estava louco? Fora um devaneio? Não usava mais remédios, tampouco drogas, e bebia pouco. Naquela manhã, estava mais sóbrio do que nunca. Será que fora um mal súbito? Ou algum surto, um desmaio?
Enfim, não tinha resposta.
Mas, seja o que for, encantou-se ao lembrar daquela expressão sorridente, majestosa, de beleza transcendental, que contemplara à distância em seu voo irreal: o solo que pisara naquele local desconhecido, nada mais era do que a face do próprio Deus.