Luz que vela
Eu fico meio que pensativo às vezes... Fico aqui comparando esse mundo de hoje com a época em que eu morava no litoral. Antes as pessoas conviviam melhor com a escuridão, né? Não era em todo lugar que tinha luz, não. Nem dentro das casas tinha luz. Acabava assim! Do nada. Hoje a criançada parece que tem mais medo do escuro do que antes. Hoje parece que elas ficam muito mais sozinhas e se importam mais com isso. Na minha época a escuridão tomava a rua e entrava pra dentro das casas, e o medo só chegava com data marcada, ou quando alguém estava disposto a contar algum causo bom. A sociedade evoluiu, a ciência segue analisando a natureza. O ser humano domina um monte de coisa, a luz tomou rua e mundo num gole só. Ninguém se perde mais na estrada, ninguém fica sem saber o caminho. A morte não busca mais o teu parente na cama do teu quarto. O ser humano iluminou o mundo. Mostrou o lugar de tudo e de todos para todos. E mesmo assim a gente ainda tem medo de não ver, medo do que não sabe. Medo de ficar sozinho, mesmo sabendo todos os caminhos. Pois eu te digo, acho que ainda consigo sentir como as pessoas caminhavam pelo escuro sem ter certeza da trilha, você acredita?
Eu me mudei muito pequeno para o litoral norte. Era muita mata naquela época. O mar então, nossa! Se ouvia de todos os cantos e, em todos os cantos da cidade, de pescador a pedreiro, todo mundo cantava mar. Fui morar com minha família numa casa mata adentro, longe da praia que só. A casa era de um parente. Não queria mais ela porque disse que era muito longe e que tinha muito mistério em seu redor. Minha mãe só foi me contar sobre isso depois que saímos de lá.
Sete anos depois da mudança, eu e minha mãe fomos para o centro da cidade ter contato com a urbanização. A gente foi a pé. Não sei que dia da semana era, porque não faço mais questão de guardar esses números e nomes como antes, as datas e números já me faziam mal naquela época, ainda que achasse que neles morava o claro da razão. Voltamos, era noite. Não tinha lua no céu. Era um breu que só e a gente caminhava sem ver o que tinha na frente da cara. Não tinha lua e o som da mata se misturava com o do mar, já bem distante. O frio tirava minha intimidade com a trilha. Dava pra ouvir só os passos. Eu podia bem saber qual era o meu e o da minha mãe. Só, os passos construíam os seus caminhos. Cada um pisava de um jeito. Se os olhos não podiam guiar, os ouvidos e o nariz se espalhavam tanto que inalavam a mata, ouvindo-se em família entre pelos da pele. Hoje parece até estranho. Porém, eu sentia que naquele dia, quanto mais mata envolvia a caminhada, mais silêncio de inseto eu notava e outros passos acompanhavam os nossos.
Meu corpo contava uma pessoa a mais caminhando conosco. Demorei a estranhar o fato. Quando resolvi prestar mais atenção, tentar dar um sentido àquilo, assustei. Usava os olhos para buscar. Minha mãe segurou minha mão, parecia calma. Parecia que queria garantir que eu estivesse bem, que eu não viesse a ter medo. Tá tudo bem, meu filho... Ela sussurrava. Então um ponto de luz se acendeu no meio da capoeira. Era uma luz de fogo. O que é aquilo, mãe? Eu perguntei baixinho, apertando a mão dela e encostando, me escondendo na palavra dela, porém o que ela devolveu pra mim não foi esconderijo: Eu não sei meu filho, mas é interessante né?
A chama flutuava pela mata nos acompanhando pela estrada. Minha mãe não levantou hipótese. Não disse para mim que era alguém caminhando com uma vela, ou uma procissão. Não disse nada. Acho que mais estranho, hoje, seria uma viúva e uma criança caminhando pela escuridão, não uma pessoa pela mata com uma vela para iluminar seu caminho. Nós seguimos viagem e a luz nos acompanhou. E quando meu corpo se entregou novamente ao trajeto eu senti nos pelos uma canção fraca de tom religioso. Não dava para entender o que dizia a voz, mas ela aproximava a pessoa de mim. Ela tá cantando. Eu disse buscando o rosto de minha mãe na escuridão. Tá sim, ela respondeu sem buscar o meu, levando o indicador à boca, pedindo silêncio: Escuta. Eu tinha medo. Minha mãe apenas sorria e dizia não saber, afirmava que eu tinha medo era da dúvida. Quando chegamos perto de casa, a luz parou e parecia nos vigiar de longe, velando nossa chegada ao lar. Fiquei parado à porta com essa minha mãe, olhando em silencio. Entrei, me arrumei pra dormir, como se a luz na escuridão não fosse nada demais. Eu já frequentava a escola naquela época e minhas dúvidas me tomavam, me deixavam de fato com medo. Os mortos voltavam?
Fui dormir, assim que deitei a cabeça no travesseiro, a escuridão do meu quarto se definhou em discreto amarelado que entrava pela janela. Era a luz no quintal da minha casa. Era mesmo uma vela, mas ninguém a segurava. A vela flutuava no meu quintal sem que ninguém a segurasse. Eu arregalei os olhos, gaguejei algumas palavras, um grito de socorro. Sai correndo pelo pequeno corredor e invadi o quarto dela. Minha mãe acordou cansada: O que foi meu filho? Era uma vela, mãe. Uma vela. Ela, ela está lá fora, na minha janela. Não tem ninguém segurando ela. Tá flutuando no ar. E o que é que tem, Luiz? Deixe ela quieta lá. Mas ela tá me vigiando, mãe. Como você pode saber disso, menino? Ela sussurrou brava. Você acha que tudo que acontece é pra você e com você? Deixa a vela quieta lá, que coisa. Mas eu tenho medo, mãe. Então vai lá fora olha bem pra ela, vai. Mas olha bem e experimenta a sensação, mas não venha tentar me dizer o que é e o que quer dizer. Você está jogando todo o medo que você tem dentro do peito em cima dela, que mania! Você tem que parar de querer controlar as coisas, de querer colocar coisa sua no mundo. Seja mais humilde, meu filho. Aprenda a experimentar o mundo e não por ele dentro da palavra. Eu falava pra Sofia que esse negócio de escola não ia dar certo. Depois disso ela voltou a dormir e eu fiquei com os olhos arregalados, sem a proteção dessa minha mãe.
Fui ao quintal olhar melhor para a vela. Ela estava parada perto da cerca e sua chama balançava com a brisa da madrugada. Eu cheguei bem perto dela, ela estava a uns dois metros do chão. Era branca e a sua cera pingava na terra. Tentei decodificar alguma mensagem, fazer perguntas, ouvir alguma canção, mas nada. Ela estava silenciosa. Nada aconteceu. Nada. Comecei então apenas a prestar a atenção e guardá-la na memória, horas depois usei de meu egoísmo e fiz da vela uma visita calorosa da qual eu sentia muita, muita saudade. Foi tão intenso que o meu dia derramou por toda a mata, revelando cada canto escuro entre as folhas. Os cheiros todos foram postos em nomes e a paleta onde eles eram pincelados tinha o nome de maresia. Ela me alcançara. Sorri para a presença dela e caminhei de costas para não perdê-la novamente, ainda misturado em medo e saudade. Entrei em casa, deitei em minha cama e adormeci olhando a luz em meu quarto. Não sei o que era até hoje. No outro dia não estava lá e nunca mais apareceu. E assim aprendi a comungar mais ainda com a escuridão, com as nossas escuridões.