O ADVOGADO DO DISTRITO FEDERAL
 
 
 
                               O calor era insuportável. Não se via  uma nuvem sequer  na imensidão do céu azul que brilhava como se houvesse recebido uma cobertura de tinta  perolada.  Eu caminhava devagar, pois que não era longe o meu destino. Buscava a sombra das árvores já que ao abrigo delas, às vezes,  um vento que não se pode descrever como brisa suave, bafejava meu rosto; era  abafada, parecia mais um sopro vindo das profundezes de alguma caldeira desconhecida. Mas ainda era melhor do que nenhuma.

                               Passava das quinze horas quando, finalmente, cheguei ao escritório. Foi com imenso alívio que liguei o aparelho de ar-condicionado, e, depois de banhar o rosto e os braços suados aquietei-me à espera da mudança climática que me ofereceria aquela tecnologia moderna. O barulho da máquina soava aos meus ouvidos como uma sonata de Mozart dado o conforto e a calma que  me trazia.
 
                               Ainda não me acostumara, de todo, ao privilégio de estar isolado daquele mundo incandescente que fervilhava lá fora quando ouvi um “clique” seguido de um silêncio total; não foi difícil entender que acabara a energia. Eu havia fechado as janelas e fora obrigado a acender as luzes do recinto que agora estava não só em mutismo total, mas mergulhado em agradável penumbra, combinação esta que, via de regra, traz sempre paz e tranqüilidade. Há quem não pense assim, pois que associa a meia-luz a gênios do mal, fantasmas, etc., eu não.   A sala ainda guardava os efeitos da baixa temperatura artificialmente gerada e seria um momento perfeito para meditação se não soubesse eu que, dentro em pouco, aquela onda de abafamento que deixara para trás certamente me alcançaria novamente.

                               Esperei exatamente dez minutos e quando comecei sentir a mudança no ambiente me levantei para ir embora. Positivamente, pensei,  aquele não era um dia bom para trabalhar. Já estava  abrindo a porta quando escutei:
                               -“Não. Não se vá, necessito falar-te”.
  
                             A voz era muito firme, determinada, e eu a escutara muito bem. Acostumado que já estava a ouvir estas “pessoas” que sem qualquer aviso me apareciam e me ditavam suas historias me voltei  sem atropelo  e vislumbrei  um cavalheiro sentado numa das poltronas que adornavam o recinto.

                               Eu sabia, também, desde o primeiro desses “encontros” – pois que assim me fora dito – do meu livre arbítrio de escutar ou não, de escrever e publicar ou não tais relatos. Por isso não tive dúvidas ao pensar em responder-lhe que naquela situação eu não poderia escutar e muito menos escrever nada direito, pois que o calor já começava a se tornar, ali, o maior de todos os empecilhos.

                               “-  Teu conforto está prestes a retornar, não te preocupes”. Respondeu-me.

                               Nem cheguei a formular a resposta pensada, pois que num repente a energia retornou.

                               Voltei, então, a sentar no lugar em que estava e passei a observar-lhe por  instantes.  Estatura mediana, olhos castanhos comuns que demonstravam um misto de tristeza e melancolia, mas sem sofrimento aparente.  Os olhos refletem, sim, o que se passa na alma do indivíduo, pois que isto aprendi com a vida, minha profissão  e muito com estas pessoas que, vez por outra, visitam minha mente.
 
                              Firmei a vista e percebi que ele trajava um terno preto com colete da mesma cor,  camisa branca de gola alta e uma  gravata de cor amarela. Em sua  mão direita trazia  um chapéu cinza escuro que, vez por outra, rodava entre as mãos. Era um senhor de aproximadamente 60 anos de idade; seu rosto afilado, cabelos lisos, um bigode bem aparado no rosto escanhoado com esmero dava-lhe o aspecto de quem cuidava da aparência física. O conjunto era realmente muito elegante, posso dizer, embora bem diferente do que se vê por ai. Mas, como já ouvira historias até de pessoas vestidas com túnica preta, e até terno de linho listrado, nada me espantava mais em ocasiões que tais.              

                               Contou-me que vivera no Rio de Janeiro tendo desencarnado em 1950 na qualidade de Magistrado  do então  Distrito Federal em plena era  do restabelecimento da independência entre os três Poderes,  do pluripartidarismo que havia cessado durante o governo  de Getulio Vargas, deposto em 1945,  e   a promulgação da 4ª  Constituição Federal  em 1946.
 
                               “ -Fui advogado e muito embora as dificuldades da profissão numa época turbulenta em que tudo era censurado e ainda havia pena de morte exerci minha profissão com dignidade e esmero; o ideal da justiça soberana, da liberdade e do direito de ir e vir eram as bandeiras com que adentrava corajosamente nas lides forenses  onde,não raro, as cartas já estavam marcadas para ricos e  poderosos”, disse-me com voz grave e bem postada.
                               “ -Cheguei à Magistratura”...  Parou um pouco como se relembrasse uma dolorosa fase, pois que seu rosto sofreu uma leve contração e depois de um suspiro abafado se recompôs, e, continuou:

                               “ – Finalmente a túnica talar preta, que tanto busquei ,e ,que simbolizava, por sua tradição e prestígio o  sacerdócio que é o cargo de Juiz de Direito, finalmente cobria meu corpo”.  Mas, quanto depois lamentei esse dia. Quanto tempo perdi, depois da passagem para o mundo espiritual, corroendo remorsos e arrependimentos”.
                               Ah! se soubessem os nossos magistrados, desembargadores e ministros da responsabilidade espiritual que trazem em sua alma milenar por certo , com as exceções que  realmente existem, teriam outros comportamentos em seus julgamentos,  às vezes apressados pelo desinteresse e, pior, quando interesseiros. Haverá um dia, depois de muitos de sofrimento e remorso, em que julgarão com a consciência voltada para o bem, para a justiça. Aí terão orgulho de suas togas, pois que apenas decidirão com base na  Lei Maior.
 
                              Retomou seu pensamento: “- Em poucos anos a vaidade, o orgulho e a sensação do poder começaram a me envolver como se eu revivesse situações já dantes vividas, já conhecidas; passei a freqüentar as rodas mais finas da sociedade da capital federal. O conhecimento travado com pessoas importantes me fez conhecido. Privava da companhia de políticos, velhas raposas sem qualquer sentimento ético, sem pudor pela coisa púbica, e, principalmente pelos pobres. Orgulhosos e vaidosos somente se Interessavam pelas artimanhas e negociatas que lhes rendiam muito dinheiro e sempre mais prestígio, sempre mais poder. Quanta ilusão”!
                               Tais sensações, como as de vivencia em situações semelhantes  nada mais são do que recordações da alma a nos lembrar o caminho certo a percorrer, a fim de que não repitamos os mesmo erros do passado. Certas posições no mundo nos são permitidas, por nossa própria escolha quando, na espiritualidade, nos entendemos prontos para remir os fracassos de antanho, corrigindo erros, apurando o caráter, aprendendo com as lutas e sofrimentos a sermos humildes nos revezes da vida  sem revoltas. Mas, nem sempre, apesar de todo o acompanhamento e esclarecimento que tivemos nos intervalos de uma vida e outra,  conseguimos , quando reencarnados, cumprir totalmente o que a nós próprios prometemos, antes da volta à carne.
 
                              Informou-me que  vivera,  em sua penúltima encarnação, na França dos Luízes; mais precisamente no século XVII. Animara no teatro da vida o corpo de Jacques de Moroux, Duque de Havre. Nobre de grande prestígio e fortuna frequentara assiduamente a Corte de Luiz XV,  Rei de França e de Navarra, fazendo-se presença constante nos salões de Versailles.
                                Fora nomeado pelo Rei para ouvir os reclamos da população pobre que vivia na miséria e sem qualquer direito a qualquer coisa. Deveria escutá-los e resolver suas pendengas. Tinha carta branca para isto. Entretanto, o poder que detinha subiu-lhe à cabeça, pois que passou, com o tempo, a considerar-se tão poderoso quanto o próprio rei. Resolvia as pelejas sim, mas as resolvia a seu modo, dependendo de seu interesse qualquer que fosse ele. Para isto não hesitava em mandar matar qualquer dos “miseráveis”, tirar deles o pouco que tinham em beneficio de sua vaidade e de seu orgulho. A justiça e a injustiça eram uma só palavra em sua sanha de poder: Ganância.

                               Desencarnara nos primórdios da Revolução Francesa, carregando o peso de suas injustiças e iniqüidades.  Vagara por muito tempo perdido nas profundezas do inferno de sua consciência até que um dia teve pequena lembrança de seus atos e um arrependimento passou por sua consciência. Depois de muito chorar e lamentar,  um remorso atroz  lhe invadiu o peito. A dor era imensa. Indescritível. Não existe dor no mundo que se compare à dor da alma em remorso.
 
                              Fora recolhido, finalmente, por uma de suas vítimas. Esmerou-se, então, no aprendizado da justiça, do bem ao próximo e implorou nova oportunidade para que pudesse refazer todo o mal cometido.
 
                               E assim, renascera o Conde de Havre como Tomás Joaquim de Menezes desta vez no Brasil, terra predestinada a receber os renovadores do planeta.  Formara-se em Direito no Rio de Janeiro prometendo-se ser o baluarte da justiça em beneficio, principalmente, dos pobres. E assim  fizera, como advogado durante um bom período de sua existência.
                               Retomou a palavra: “- Mas, não me contentei em ser apenas advogado. Fui  Juiz de Direito mas ainda queria galgar postos mais altos, fazer carreira no Judiciário brasileiro”. Então, como magistrado me deixei levar pela ambição de chegar ao cume da carreira, e, para isto, abdiquei de  qualquer escrúpulo, qualquer sentimento consciencial. A sanha de poder e riqueza que jazia em minha alma, adormecidos desde outros avatares, acordaram qual monstro devorador da paz interior.
 
                               “ Esqueci-me dos pobres, da justiça, do dever. Fui bajulador dos maiores;  fiz-lhes todas as vontades. Àqueles a quem prometera a mim mesmo fazer justiça, foram apenas  instrumentos dos quais me servia para as mais escusas negociatas e prazeres dos grandes da Corte Maior. Fui escravo obediente deles e quando não  os beneficiava, beneficiava a mim próprio”.

                               Um soluço abafado escapou-lhe do peito. As recordações que ele desfilava para mim causavam-lhe muito dor, pelo que observei. Senti o esforço enorme que ele fazia para narrar sua historia. Continuou:

                               “ Em pouco tempo ganhei o apoio dos corruptos, dos interesseiros e finalmente,  para o meu infinito orgulho e vaidade, consegui ser indicado para assumir o cargo de  Magistrado do Tribunal de Justiça, antiga Corte de Apelação  do Distrito Federal. E, antes mesmo de tomar posse já me imaginava Ministro do Supremo Tribunal Federal da República”.

                               Neste instante tive a impressão de que seus olhos se esbugalharam e seu corpo tonteou. Novo suspiro e prosseguiu, recomposto:
  
                             “Entretanto, na véspera da solenidade, acordei repentino numa vala escura. Não sentia meu quarto, não via minha cama... Tentei dar conta de mim e não entendia o que havia acontecido. Que pesadelo seria aquele que não terminava nunca? Vozes estridentes gritavam por justiça;  me pediam contas  do que fizera, embora eu nada enxergasse. Quando  cessavam os pedidos ouvia sentenças iníquas que favoreciam poderosos e deixavam na miséria pobres injustiçados. Eram repetitivas e eu pude então perceber que eram decisões  minhas, e, que a voz que eu ouvia ditando-as era a minha! Corria e corria desabaladamente naquela paisagem do negro, do nada, e não chegava a lugar nenhum.

 
                              Vivi assim, na própria escuridão da minha alma durante um tempo que não posso precisar até que um dia cansado de correr e me indagar o que acontecia comigo vislumbrei, em meio a uma claridade opaca e turva, mas  que pareceu “luz” para mim,   uma Vila. Vi gente de longe. Casas toscas, que mais pareciam ocas . Apressei os passos, mas fui logo
cercado por quatro soldados de “fácies” horripilantes. Portavam cada um, uma lança na mão e o peito coberto de armaduras medievais.

                               “ -Quem és, infeliz e de onde vens?  “– perguntou-me  o que parecia comandar a pequena esquadra”.
 
                              - “Sou o Desembargador Menezes, disse empertigando-me, e necessito saber onde estou, pois que preciso comparecer à Corte ainda hoje. Mas, depois de me olhar de cima a baixo soltou uma estrondosa gargalhada, seguida pelos demais componentes daquele estranho grupo”


                               Assim acontece a muitas criaturas no mundo. Revoltam-se contra a vontade  soberana do Senhor que as convida ao trabalho de resgate e aperfeiçoamento quando ainda têm oportunidades na crosta mas não as aceitam. Depois de levadas pela experiência da morte se transformam em verdadeiros fantasmas que desconhecem sua condição e se julgam ainda no mundo material, exigindo tratamento compatível com o cargo que detinham na Terra.

                               “ -Aqui você é escravo - disse-me.  -Não vai julgar, vai ser julgado”. –“Fui imediatamente  acorrentado” – seguiu em sua narrativa“ e levado para uma caverna imunda que me serviu de cela em companhia de outros infelizes. A fome e a sede passaram, dali para frente, a me atormentar até que percebi que não tinha mais necessidade de pão e água”.
 
                              Certa vez – não sei quanto tempo levou isto- se aproximou de mim um infeliz vestido de trapos e perguntou-me: - “ Há quanto tempo você morreu?

                               “Tomei um choque e respondi-lhe: “ Como morri? Eu estou vivo e sou prisioneiro deste bando de malfeitores.

                               -“Não... estamos mortos. Há tempos descobri isto e tenho pensado muito nos erros que cometi e dos quais comecei a me recordar e a me arrepender. Mas, não posso dizer isto a eles. Ando esperando uma oportunidade para sair daqui, como vi outros saírem”.
                               “-Embora fosse difícil acreditar, a verdade é que aquilo começou a fazer sentido para mim.
 
                              Daí para frente eu passei a ser levado  à presença de “um juiz togado”, vestido de  preto,com uma peruca branca na cabeça que me lembrava juízes da idade media. Seu aspecto era horrível; deformado, olhos injetados de sangue. – “Que venham os promotores, gritava-“ –  “E adentravam na sala várias caricaturas de promotores. Carantonhas inimagináveis e impossíveis de descrever.  Acusavam-me de todas as maldades que eu havia perpetrado contra inocentes; expunham ali as conseqüências de meus atos em suas vidas. Quantos se suicidaram por perderem suas fortunas,  quantos foram mendigar depois de viverem no luxo, quantas foram se prostituir depois de desonradas. E tudo por culpa de minhas decisões, de minhas prevaricações em face do cargo. Exigiam em nome deles fosse feita Justiça”.


                               “Depois das acusações o “juiz”  mandava que eu apresentasse minha defesa. Não a tinha. Não conseguia balbuciar nenhuma palavra. Só me recordava do que fizera.  Então, era julgado por não colaborar com a justiça  como  “ele” dizia e voltava à caverna que me servia de cela, a fim de me preparar para novo julgamento. E seguiram-se infinitamente aqueles julgamentos bizarros, por tempo que ainda nem imagino”.

                               Mas, tudo passa, seja nesta,  seja na outra vida. Tudo tem a  hora do basta! O criador não abandona um sequer de sua criação, pois que todas as almas trazem inato sentimento da eternidade e jamais retrocedem. A evolução para a meta final é fruto de tempo infinito que temos ao nosso dispor para alcançar a perfeição. Vamos e voltamos, repetimos experiências, aprendemos sempre com nossas próprias derrocadas, nossas próprias quedas.
                               Finalmente”- disse-me aparentando mais calma e serenidade- “vi se aproximando da aldeia uma pequena caravana cujas tochas de luz cegavam-me e a todos os companheiros de infortúnio que jaziam ali naquelas buracas e ocas”. Enchi-me de coragem e roguei-lhes me ajudassem a encontrar meu caminho de ideais nobres que eu trilhara  nos tempos de estudante de direito. Orei,  sem saber que o fazia”.
 
                              A prece seja de que forma for, desde que sincera e sem rebuscamentos,quando esquecido inteiramente o “eu quero”, “eu preciso”, “eu tenho direito” é a única maneira de que dispomos para estabelecer contato com os planos mais altos da vida.

                               Ela é a expressão mais potente que trazemos inato, para nos comunicar com Deus. Quando não se caracteriza pelo mais comum, por uma recitação automática, muitas vezes monótona e repetida, quando improvisadamente nos comunicamos com o Alto sem fórmulas decoradas ou dogmas sem qualquer efeito nossa alma se transporta às regiões superiores, plana além das misérias da terra. Poucas vezes conseguimos isto, é verdade. Mas quando o fazemos, quando entramos nesta comunhão  a resposta é imediata. A oração em qualquer plano que esteja o espírito é  o caminho mais curto para se chegar ao Ser Supremo.

                               “ Fui recolhido por mãos amigas e carinhosas que me transportaram daquelas regiões tenebrosas para um sitio onde a luz , muito embora não fosse um esplendor, era verdadeiro manancial de claridade perto de onde eu habitara por longos e longos anos”.

                               Colou-se pensativo, mas demonstrando uma melhora indubitável em seu ânimo, talvez pela narrativa que acabara de fazer e finalizou:
                               “ Voltarei à terra em breve. Não na personalidade de um poderoso, e, muito menos na qualidade de intelectual, embora os conhecimentos materiais que adquiri nestas jornadas já vividas não tenha se perdido. Enfrentarei e colherei as vicissitudes que eu mesmo plantei para o que me aguarda. Mas, não me faltará, mesmo pobre e humilde, a oportunidade de rever muitos que prejudiquei e fazer por eles o que deveria ter feito há séculos. Serei médium. Que Deus me ajude”.
 
 
                              
                              
Nelson de Medeiros
Enviado por Nelson de Medeiros em 08/10/2016
Reeditado em 28/11/2016
Código do texto: T5785200
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