LA DULCE VITA

 
           Eu comecei a ouvir historias por volta dos meus sete anos de idade. Não sei bem como conheci a pessoa que as contava; simplesmente um dia ela surgiu do nada e me disse: “- Quer ouvir uma historia?”. Claro que eu quis. Achava normal que uma pessoa adulta me contasse historias, e, dele ouvi muitas, pois que se me apresentou como um senhor de meia idade, muito tranqüilo e – talvez pela inocência da idade- não me causou receio algum. Pensei mesmo que era um conhecido da família ou algum vizinho bom. Naquela época se confiava mais nas pessoas. Contou-me várias aventuras. Às vezes ele se referia a si e outras vezes a “eles”. Pareciam historias reais e eu prestava atenção sem me dar conta do por que delas. Ele intitulava-se “um amigo”, e, somente anos depois é que fui perceber que só eu estava presente para ouvi-las. Por vezes era no quintal de casa à sombra dos mangueirais, outras no meu quarto quando estava sozinho e até mesmo no recreio da escola primária nas ocasiões em que não havia nenhum outro amigo por perto.

      De um modo geral eram contos simples; falavam de castelos, de brasões, de escudos, adagas com cabo de pérolas, de príncipes e princesas e tudo me parecia normal. Dos enredos não me recordo com precisão, mas ficou pairando na memória uma névoa de lembrança de que elas acabavam sempre com algum tipo de castigo, remorso ou coisa do gênero para os personagens. Eram, muitas vezes, tristes, e, não raras vezes eu chorei ao escutá-las, embora isto não alterasse sua forma de narrar. Mas havia também, disso me lembro bem, no final de cada um destes contos um conselho sobre como agir na vida com as pessoas e comigo próprio no sentido de evitar aqueles desfechos. Uma espécie de “moral da história” que era sempre entendida, apesar de minha pouca idade, posto que colocadas de uma maneira muito simples.

      Então, hoje penso que deixei de fazer muitas coisas ruins na vida por conta de tais relatos, embora, lamentavelmente, tenha feito outras tantas.

      Mas, isto acabou e durante a minha juventude não vi nem a sombra deste amigo do qual, diga-se a bem da verdade, esquecera quase que completamente. Quando me lembrava pareciam fantasias próprias de infantes.

      Entretanto, por volta dos trinta e cinco anos de idade tive novo contato com ele. Na época eu trabalhava em uma repartição púbica e atendia em uma sala bem ampla, bastante arejada onde exercia minhas funções. Trabalhava só e aquele era um dia de pouquíssimo movimento, não só pela chuva torrencial que caia lá fora, mas também por ser fim de semana, período em que o povaréu, por conta da cultura, não acredita que um servidor público trabalhe.

      Nesse dia, quando ingressei no recinto da minha lida diária por volta das oito horas da manhã me deparei com uma figura bastante hilária pela forma estranha, quase grotesca mesmo, como se apresentava. Postava-se de pé ao lado da máquina de escrever, e, realmente me causara certo espanto a sua vestimenta. Por um segundo pensei pudesse ser alguém com problemas mentais uma vez que isto já ocorrera no local; entretanto me lembrei quase no mesmo instante do “amigo de infância” que me contava historias e que sumira. Era ele sim, pois que em nada mudara desde os longevos tempos da minha infância. Interessante que antes suas roupas não me chamavam atenção como fizeram naquele momento, embora me parecessem ser as mesmas.

      Trajava uma espécie de paletó preto, bem incomum, e sobre ele se ajustava uma túnica feita de tecido colorido e bem ornamentado; a parte inferior do corpo era coberto por uma espécie de calção, meio bufante, que contrastava com as meias compridas e muito justas que lhe cobriam inteiramente as pernas; calçava sapatos de bicos achatados e bem largos, e, ao redor de todo o pescoço sobressaia-se uma gola grande de renda branca exageradamente engomada. O rosto era o mesmo de décadas atrás.
      
      Sem rodeios disse que ia me narrar a própria historia e que eu não voltaria a vê-lo nem ouvi-lo nesta vida. Mas, avisou-me que outros viriam me narrar suas historias para que eu as publicasse, um dia, quando e, se assim desejasse. Afirmou, também, que eu somente as ouviria se seguisse algumas recomendações, as quais, porém, eu não estaria obrigado. Dependeria, segundo ele, do meu interesse no estudo das obras de Alan Kardec, da Doutrina Espírita e, principalmente, do meu livre arbítrio. Tanto mais fácil eu escutaria o que iam me relatar e tanto mais fiel os reproduziria, na medida em que eu entendesse a finalidade do estudo indicado, e, procurasse aplicá-lo, diuturnamente, na minha vida. Interesse eu tive, estudei e entendi muita coisa, mas, nem sempre apliquei, à risca, aquilo que descobri ser o motivo de nossa existência na Terra. Finalmente me asseverou que somente verdades eu escutaria e que eu as usasse e as ajustasse da maneira que achasse correto e de algum proveito para quem as lesse pouco importando que acreditassem ou não.

      Guardei-as por um bom tempo, mas agora repasso as que mais claramente pude escutar.
      
      Contou-me que vivera uma vida passada em meados do século XVI, época dos anos dourados da Renascença Italiana, precisamente na cidade de Firenze.

      Seu espírito imortal encarnava, então, a personalidade de Giacommo Paventelli, escritor, teatrólogo, poeta, existencialista por convicção e que gozava de imenso prestigio em toda a região da Toscana.

      Profundo conhecedor das fraquezas humanas usara e abusara da facilidade que possuía no manuseio das letras publicando obras filosóficas - a maioria falaciosas - com único intuito de beneficio próprio. Exímio conhecedor das artes cênicas não raras vezes atuara no palco da vida enganando pessoas de bem com a finalidade de locupletar-se financeiramente para satisfazer seus desejos e vícios. Pródigo no manejo dos versos líricos soubera, como ninguém, aproveitar-se da credulidade das “ragazzas” casadoiras, o que fez por várias vezes, até que conheceu Leonora, jovem pura e inocente que, iludida por mil promessas de consorcio e juras de amor eterno, acabou por ceder aos caprichos libidinosos daquele que acreditava amá-la da mesma forma que ela o amava.

       Entretanto, tão logo satisfizera seus instintos animais ainda latentes em seu espírito devasso e atrasado, descartara a jovem sem qualquer pejo. A ingênua “bambola”, caída em desgraça perante sua gente, prenhe de vergonha partiu de sua cidade natal. Espírito ainda fraco, não teve a suficiente coragem para enfrentar as provações que ela mesma escolhera para progredir, e, entregou-se à prostituição. Pouco tempo depois, abandonada, só, desiludida e doente, retornara à cidade dos Médicis, e, numa noite de solidão e amargura jogara-se nas águas do Rio Arne.

      Ele, Giacommo, a seu turno, continuou seu “modus vivendi”, e, sem nenhum sentimento de culpa, totalmente despreparado para as coisas de além túmulo, desencarnara aos 60 anos, vítima dele mesmo, de sua vida insana e desregrada que lhe consumira a saúde antes da data marcada pela Lei Maior que rege toda a vida no Universo.

      Certa manhã, contou-me, abrira os olhos como se acordasse de uma noite comum bem dormida sob os efeitos do vinho capitoso ao qual se acostumara a sorver desbragadamente. Embora se sentisse um pouco diferente nem de leve tivera a intuição de que pudesse estar morto.

      Na verdade, “coisa estranha”, disse-me:” Não me supunha morto e por um tempo que não sei precisar vaguei insanamente pelas ruas fazendo tudo que estava acostumado a fazer, muito embora numa angústia e desespero alucinantes, pois que as pessoas do meu meio não me respondiam as perguntas, não dialogavam comigo, pareciam não me ver. Além disso, amargura inaudita! Falavam de mim – eu os ouvia –e sobre mim teciam os mais desairosos comentários que eram como chicotadas elétricas sobre todo o meu ser. Aos poucos, porém, foram se esquecendo; os falatórios cessaram e, não mais as encontrava em parte alguma”.

      Quando um espírito desencarna nas condições descritas tendo vivido uma vida dissoluta e acarretado, por ato seu, o mal a seu semelhante como o “ bom vivant” acarretara para a jovem Leonora - seu principal deslize naquela existência corporal- desconhecendo totalmente os valores morais e a vida que se segue após a morte do corpo, perambula, ora pelo mundo material, ora pelo espiritual, por meses, anos, e, não raras vezes por séculos sem entender a sua real situação. Mas, a Lei Maior que nos governa é imutável e se é implacável na cobrança das dívidas contraídas também é justa nas benesses concedidas pelo progresso moral que conseguimos por nosso esforço próprio.

      “Um dia”- prosseguiu:” Quando já cansado das repetições, alcançou-me o cansaço e em seguida o tédio; pensei na morte e em quantos anos eu tinha... Foi quando me passou pela mente um leve rasgo de inteligência e lembrei-me de Leonora. Bastou-me um pequeno sentimento de pesar para que ela surgisse diante de mim, desfigurada, cadavérica. Fui tomado de pavor! Sai em desabalada correria para lugar algum, pois que sempre a via à minha frente”.

      “E ela surgira”-
continuou- de uma forma aterradora! Debatia-se desesperadamente sob as águas, sentindo as mesmas dores do gênero de suplicio escolhido e consumado, ao mesmo tempo em que vociferava impropérios, lançando sobre mim acusações de “assassino” e promessas de vingança eterna. Leonora estava ali me acusando de um crime que eu não cometera! Embalde foram minhas alegações de inocência. Então, ora mergulhado nas mesmas águas sufocantes que ela, ora em bordeis asfixiantes e mal cheirosos, fui vivendo todos os sofrimentos que ela vivera na carne e em espírito. Quanto tempo durou isto? 10, 100, 200 anos? Não sei... O tempo aqui não existe, Il mio amico”.

      A vida do espírito desencarnado muitas vezes é assim. Sem se dar conta do que lhe aconteceu vaga sem perceber que não pertence mais ao mundo material e age - muito embora mergulhado em angustias- como se continuasse encarnado. Basta, porém, um segundo de lembrança do mal que praticou para a que a realidade se faça visível para ele. E o sofrimento se materializa à sua visão. Não só o seu próprio sofrimento, as suas próprias imagens, mas todas as cenas de sofrimentos a que deu causa. Por isso ele sentia as suas próprias dores e também as que já sentira Leonora; vivia estas dores constantemente, pois eram as dores dela, por seu suicídio levado indiretamente por ele.

      “Porém, seguiu em sua narrativa: depois de um tempo que também não posso calcular, senti toda a verdade que ela dizia e pela primeira vez um tênue sentimento de remorso se abateu sobre mim”...

      O remorso é a primeira porta de esperança que se abre para o espírito sofredor. Depois, vem o arrependimento sincero e em seguida a prece redentora.

      “Por fim - concluiu- “as águas se evaporaram e fui conduzido a um lugar de repouso restabelecendo-me através das preces e ajuda abnegada de guias que me pareciam anjos. Leonora já não aparecia para insultar-me com impropérios; parei de sentir a ânsia da asfixia e pude, então, entender muita coisa e me educar”.

      Deus tem pelos fracos infinita misericórdia, e não haverá um só de seus filhos que não retornará ao Seu seio, pelo próprio esforço e justo merecimento. Se a lembrança do mal praticado a ele nos retorna, o arrependimento e o desejo de repará-lo nos remetem ao socorro espiritual que sempre está à nossa disposição.

      Despedindo-se, disse-me que dentro em pouco deveria retornar à Terra onde já se encontrava Leonora reencarnada. Contava ela, então com oito anos de idade e nascera num lar humilde, mas cheio de exemplos de honradez, trabalho e carinho por parte de seus pais.

      Deveria encontrar-se com ela, mais uma vez. Mas, agora ela seria sua esposa a quem deveria dedicar-se inteiramente, já que ela nascera com os problemas de saúde que seu espírito ainda se ressentia de sua última romagem terrestre. Seus pulmões fracos, exatamente na idade em que ela se suicidara em Firenze, começariam a dar sinais de fraqueza asfixiante pela asma terrível o que, praticamente a impediria de ter uma vida normal.
      
      Caberia, então, a ele redimir-se do mal que lhe causara tratando-a com desvelo e muita paciência para que ela não caísse na mesma armadilha de antanho. A vida do casal não seria fácil, mas ele contava com o aprendizado que tivera na vida espiritual e rogava a Deus a força e a coragem necessárias para enfrentar sem lamentações as provações que o esperavam em seu novo retorno ao orbe terreno.
Nelson de Medeiros
Enviado por Nelson de Medeiros em 01/10/2016
Reeditado em 28/11/2016
Código do texto: T5778400
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