Cheguei. Aqui estou em paz

Cada metro que desbravo desse mundo me sinto mais próximo de chegar a lugar nenhum. Às vezes é difícil andar quando a grave voz estomacal insiste em gritar contigo, te exigindo que coma alguma coisa. Infelizmente, caro estômago, eu não posso simplesmente encontrar algo para lhe satisfazer, cabe a minha sorte me alimentar todos os dias.

Vejo os outros animais maiores andando por aí com aquelas coisas grandes e barulhentas, como podem ser tão rápidos? Um dia um amigo não se levantou mais, depois de ter sido atingido por uma dessas coisas, eu o empurrava com minha pata e o chamava pelo nome mas ele não respondeu, preferiu ficar dormindo -- Azar o seu, vou me divertir sozinho -- disse a ele.

Nós cachorros nunca soubemos como são chamados esses animaizões, entre nós os apelidamos de grandões.

Os grandões são animais estranhos, tão imprevisíveis. Alguns são muito bondosos, me tratam bem, trazem comida, mas outros são estupidos e grosseiros, fazem caras feias ao nos ver, falam coisas altas com seu latido estranho e alguns chegam até mesmo a nos machucar, sem termos feito nada. Não entendo esses.

Uma vez um grandão se aproximou de mim. Me escondi em baixo do banco de uma praça, então ele se abaixou e com gestos carinhosos me fez confiar nele. Me deu o que comer e depois que eu terminei minha janta ele se sentou do meu lado e ficou me acariciando. Eu fiquei bobo, olhando pra ele, reparando no seu pelo branco, quase prata e seus olhos aparentemente cansados. Eu queria muito entender tudo o que ele me dizia, pareciam ser coisas bonitas. Dia após dia ele vinha ao mesmo local, me trazia comida e brincava comigo. Nos tornamos grandes amigos.

Certa vez, quando aquela grande bola amarela estava perto de bater no chão, como sempre fazia, fui ao encontro de meu amigo e pela primeira vez em muito tempo ele não estava me esperando. Não entendi o porquê. Esperei mais uma queda da bola amarela e tentei o encontrar de novo, sem sucesso. Eu não o vi desde então, apesar de sentir a presença dele sempre que passo naquele lugar estranho, cheio de grandões de preto e sons tristes. Deve ter encontrado um novo amigo por ali.

Voltando pro agora tudo que sinto é fome e dor em minhas patas, não aguento mais andar. Meus olhos estão pesados, acho melhor eu tirar um cochilo.

Cheguei no meu sonho, aqui é um lugar onde adoro ficar, pois minhas patas não doem e meu estômago parece ter ficado mudo. Às vezes encontro meus amigos por aqui, eles estão saudáveis e felizes, sempre com alegria correm a meu encontro e me dão um longo abraço. Não sinto saudade da outra terra, não sinto falta de estar sozinho a maior parte do tempo, de ser ignorado pela maioria dos outros bichos. Se houvesse uma forma de eu ficar pra sempre por aqui, aproveitando as maravilhas dessa vida. Esperem, estão me chamando pra jantar! Corro ao encontro desse cheiro: carne assada, minha preferida é...não! Não quero acordar!

Que barulho todo é esse? Por que o céu está com todas essas luzes coloridas, preciso correr! Não adianta, quanto mais eu corro mais essas luzes parecem me perseguir. Desvio de algumas máquinas pelas ruas, algumas emitem sons pra mim, parecem estar me xingando. Mas espere! Lembrei do meu amigo que conseguiu um longo e relaxante sono após bater em uma dessas. É isso, não vou desviar mais.

Lá vem, é você que vai me levar pra aquela terra linda de novo. Lá vem você, com seus olhos brilhantes e amarelos, cada vez ficando maiores, de novo emitindo esse som pra mim. Me ajude amigo, encoste em mim e me tire daqui. É agora, tu vai encostar...

Marco de Souza
Enviado por Marco de Souza em 20/09/2016
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