A VIDA DEPOIS DA ESCURIDÃO

O despertador tocava sem parar. Claro! Esse era o objetivo. Ele havia programado assim. Sem botão de soneca. O dia seria longo. Muitos compromissos. Sem direito ao botão de soneca. Abriu os olhos, esticou o braço na direção da mesinha e veio o silêncio. Agora, era preparar o corpo para saltar da cama. Espreguiçou-se ao máximo, tentando sentir os fios de cabelo se esticarem, soltando um quase grunhido ao final do movimento. Repetiu esse mesmo ritual três vezes. Sentou-se na cama encostando as solas dos pés no assoalho de madeira laminada. Espreguiçou-se novamente. Dessa vez, apenas esticando os braços na direção do teto. Levantou-se. Caminhando na direção do banheiro, parou em frente à janela. Escancarou as cortinas. Estava escuro. Maldito horário de verão! Funcionava muito bem ao entardecer. Não, para acordar. Retomou o caminho para o banheiro. Espera aí. Tinha algo errado. Não havia programado o despertador para tão cedo. Olhou para o relógio em cima da mesinha. Nove horas. Certo. Mas, não era para estar tão escuro lá fora. Voltou para a janela. Parecia noite. Ainda havia estrelas no céu. Estranho. Tinha algo de errado. Provavelmente ele adiantara o relógio quando ao programar o despertador. Era isso. Mudara-se de estado há pouco tempo. Apartamento pequeno. O valor da mobília nova seria o mesmo do caminhão de mudança. Optara por comprar tudo novo, o que, é claro, ainda não havia feito. Providenciara o kit moradia: colchão, relógio, fogão, geladeira. O resto podia esperar. Lembrou-se da tv de quarenta polegadas, que deixara na casa da sua mãe. Percebeu que devia tê-la feito constar do kit moradia. Tudo bem. Deu um passo e chegou ao outro canto do quarto. Acendeu a luz. Vamos resolver com o que temos. Abaixou-se para pegar o celular no carregador. Nove e dez! É, havia mesmo, algo de estranho. Foi até a janela novamente. O apartamento era de fundos; andar baixo; com a parede do prédio vizinho quase grudada na sua janela. Mesmo assim, era possível enxergar uma parte do céu. No que podia ver, reparou que não havia lua; apenas o breu e as estrelas. Olhou para baixo e viu alguns carros trafegando. Poucos carros. Mas a rotina era nova. Não tinha certeza de que aquele não era realmente o tráfego normal daquele horário, naquela rua. O apartamento era de fundos. É, o trânsito parecia normal. Devia ser algum eclipse, ou qualquer outro fenômeno. Se fosse alguma catástrofe, a rua não pareceria normal; haveria mais barulho; pessoas correndo, desespero. Havia algo estranho, mas não devia ser nada demais. Melhor tomar banho logo, para não perder a hora. Andou até o banheiro e ligou o chuveiro. Enquanto colocava a pasta na escova de dentes, olhou-se no espelho. Muitos pelos. Teria de fazer a barba. Desligou o chuveiro. Começou a escovar os dentes. Bochecho. Aparelho de barbear. Enquanto cumpria a higiene pelo instinto da rotina, tentava analisar a estranheza daquele amanhecer. Lembrou-se de ter lido o jornal na véspera, mas não se lembrava de nenhuma matéria sobre nenhum eclipse. O que mais poderia causar a ausência do sol? Ligou o chuveiro. Água, sabonete, shampoo, e os pensamentos tentando encontrar uma explicação lógica para tudo aquilo. De certo, haveria. Torneira fechada. Porra! Esquecera-se de pegar a toalha no varal. Numa daquelas decisões que se definem pelas frações de segundos, olhou para a toalha de rosto. Seria melhor do que encharcar o piso, correndo até a minúscula área de serviço, arriscando-se num provável escorregão. Mandou ver. De início, o plano era dar uma secada básica que o habilitasse até o varal, sem provocar tanta sujeira e risco de queda. Não funcionou desse jeito. Acabou encharcando a toalha de rosto, e com o corpo praticamente seco. Foi até o armário, tirou o uniforme, escolheu meias e cueca. Vestiu-se. Um passo até a janela, pronto para sair, olhou novamente lá para fora. Nada de diferente. Breu e estrelas. Olhou para baixo. O mesmo tráfego de antes. Consultou o relógio na mesinha: dez para às dez. Melhor, apressar-se. Dois passos até a cozinha. Abriu a geladeira, tirou a tampa da garrafa de iogurte e deu um gole. Pronto. Vamos enfrentar o dia e descobrir que mistério é esse. Saiu, trancou a porta, chamou o elevador. Parecia que faltava algo. Enquanto esperava o elevador, checou os bolsos. Chaves, dinheiro, documentos, celular. Parecia que faltava algo. O elevador chegou. Entrou. Cumprimentou educadamente o casal no interior do elevador. A moça sorriu para ele, o rapaz devolveu-lhe o bom dia, também educadamente. Diferente da maioria das pessoas, ele gostava de ambientes pequenos; sentia-se à vontade. Reparou naquele casal jovem, bem próximos a ele, pelo pouco espaço no interior do elevador. Pareciam irmãos. Talvez, indo para a faculdade. Roupas leves, despojadas, juvenis. Ela, com pouca maquiagem; ele, com barba rala. Os dois usando... Era isso! Eram os óculos escuros. Era isso que ele havia esquecido. Jamais saía de casa sem eles. Não foram poucas às vezes que retornou ao apartamento para buscá-los, ao perceber a sua ausência. Mas, aquela era uma manhã diferente. Eles não fariam falta. Sorriu levemente consigo mesmo. Com certeza, aquele jovem casal não abrira as cortinas para olhar o céu; não tinham ideia de como estava lá fora. O elevador chegou ao térreo. Saíram do elevador. No prédio não havia porteiro. Apenas, zelador. Um senhor bastante simpático e solícito. No pouco tempo que morava ali, esbarrara com ele apenas duas vezes. Numa delas, ele se queixou que sempre tinha alguma demanda de algum morador para atender. Vazamentos, limpeza, fechaduras. Apressadamente, o casal tomou a dianteira rumo a saída do prédio. Pareciam atrasados. Confiando de que ele apertaria o botão da porta eletrônica que ficava à meia altura, na parede à esquerda do elevador, eles chegaram na saída e olharam para trás. Teve enorme vontade de se fazer de desentendido, e caminhar também até a porta, para ver qual seria a reação deles. Mas não queria se atrasar. Às vezes é melhor simplesmente, fazer aquilo que esperam que façamos. Tudo bem, nada demais. Ele acenou com a cabeça e apertou o botão. O rapaz abriu a porta e saiu correndo junto com a menina, preocupando-se em amortecer à batida da porta para que ela se mantivesse aberta. Pelo menos, isso. Apressados, mas com algum bom senso. Chegou na rua. Aí teve certeza absoluta de que havia algo de muito estranho. Não com as pessoas que passavam por ele, concentradas em seus objetivos, rumo aos seus destinos. O trânsito também parecia normal, embora tenha reparado que os carros estivessem sem os faróis acesos. Mas o céu estava negro. Estrelas no firmamento. Sem lua, sem sol. Estranho. Muito estranho também, era o fato de que a maioria das pessoas que passavam por ele, estivessem usando óculos escuros. Como poderiam estar enxergando?! Decidiu parar na padaria, pedir um café e assuntar com alguém sobre o que estava acontecendo. Os jornais na televisão deveriam ter feito alguma matéria sobre aquela escuridão. Atravessou a rua. Duas senhoras idosas caminhavam vagarosamente, contando os resultados dos seus últimos exames médicos. Diminuiu o passo para tentar ouvir um pouco da conversa. Nada de extraordinário. Nada sobre aquele breu. Uma delas, estava com problemas de memória e protestava contra o médico, que apenas aumentara a dose do mesmo remédio que ela já tomava há algum tempo. Quando a outra lhe perguntou há quanto tempo já estava tomando aquele remédio, ela não soube responder. Não se lembrava. É, o remédio não estava fazendo efeito. Apertou o passo e passou por elas. Quase chegando na esquina cruzou com um passeador de cães, puxado por cinco animais. Além do barulho que faziam, obrigavam todos a abrirem espaço na calçada para que passassem. Mas o que mais lhe chamou a atenção era a quantidade de suor que escorria do homem. Nesse momento, reparou o calor que fazia. Talvez, o calor normal de toda a manhã ensolarada. Mas não havia sol. Normal seria, se a temperatura estivesse mais amena. Sem dúvida, o calor deixava aquela estranha manhã, ainda mais estranha. Estrelas, breu e calor. Chegou na padaria. Sentou-se no banco apoiado no balcão. Pediu um café. Parecia que a simpática atendente, conhecia-o há muito tempo. Serviu-lhe o café no copo, como ele preferia. Nada de xícaras. Trouxe junto com o café, o saquinho de adoçante, como ele preferia. Nada de açúcar ou adoçante líquido. Olhou para ele como se percebesse a sua angústia, e perguntou se estava tudo bem. Como tudo e todos pareciam estar lidando da melhor forma com aquela manhã escurecida pela noite, ele se esforçou ao máximo para demonstrar naturalidade em sua resposta. Disse que sim, que estava tudo bem, apesar daquela escuridão incomum. A atendente sorriu para ele reforçando a sua simpatia, mas se afastou para atender outro cliente, sem lhe acrescentar mais nada. Talvez tenha errado em querer maquiar sua perplexidade. Continuava o mistério daquela manhã. Começou a beber o café, sem muita pressa, aguardando que ela retornasse, ou que alguém sentasse ao seu lado no balcão. Consultou o celular. Dez e quinze. Um senhor cego, guiado por um cão pastor chegou sorridente na padaria e se sentou ao seu lado. O cão desabou no chão parecendo extremamente cansado. Não pela caminhada, mas pela responsabilidade; com o dono sentado, seguro de um possível tombo, o cão relaxava, gozando da sua efetiva natureza animal. O senhor cego chamou a atendente pelo nome. Marta. Ela o cumprimentou amistosamente e disse que já traria o seu pedido. Com certeza, cliente cativo de todas as manhãs. Nem precisara fazer o pedido. Ela sequer perguntara se seria o mesmo pedido de sempre, o que denotava que ele não variava a sua rotina matinal. Mas quanta falta de sorte! Quase riu de si mesmo, ao perceber que teria que, como opção mais próxima, consultar um cego. Resolveu iniciar um diálogo a esmo, indagando sobre o cão. Tomé, era o propício nome do pastor. Estavam juntos há oito anos. Inseparáveis. Enquanto conversavam, Marta trouxe a xícara de café com leite e uma vasilha de água. O senhor cego agradeceu à atendente. Pegou a vasilha de água, abaixou-se e serviu o cão. Embora não demonstrasse estar sedento quando desabou no chão, ao ver a vasilha de água na sua frente, Tomé a sorveu com gosto. Nestor, era o nome do senhor cego. Caminhava todas as manhãs pelo bairro. Conhecia todos e todos o conheciam. De fato, era bastante comunicativo. Em pouco tempo de conversa, pareciam íntimos; amigos de longa data. Isso o encorajou a indagar daquela manhã, pois mesmo que Nestor não fosse capaz de enxergar a ausência da luz matinal, com certeza conversara com alguém a respeito, ou ouvira alguma notícia que explicasse o fato. Respirou fundo e se esforçando para denotar uma simples curiosidade, perguntou a Nestor se ele sabia a causa da escuridão daquela manhã. Silêncio. Como que, estranhando o silêncio repentino, Tomé se sentou, erguendo o pescoço e levantando as orelhas. Finalmente, Nestor soltou uma franca gargalhada, chamando a atenção de outros clientes da padaria. Disse que, com a cegueira, acostumara-se a ser alvo de brincadeiras de todos os tipos, mas aquela era, sem dúvida, bastante original. Muito educadamente, levantou-se, despediu-se dele e saiu, conduzido por Tomé. Consultou o celular. Onze horas. Agora estava atrasado. Sem nenhuma explicação da causa daquela manhã escura. Despediu-se de Marta e saiu da padaria. Quase correndo até o metrô, raciocinou que o atraso não seria grande problema. Sem dúvida, o amanhecer sem sol seria uma excelente desculpa pelo atraso. E era de fato, o caso. Atrasara-se tentando desvendar aquele mistério. Com certeza, o mesmo ocorrera com outros colegas. Talvez até, com o próprio chefe. Encostou o cartão de transporte no leitor da roleta, destravando-a. Começou a descer a escada rolante do metrô, rumo à estação da direção norte. O trem chegou. Cruzou a porta do vagão mais próximo a ele. Acomodou-se no primeiro assento que avistou. Assim que o trem começou a andar, percebeu que na pressa da sua entrada, sentara-se em local reservado para idosos e gestantes. Melhor procurar outro assento. O vagão não estava cheio. Não havia muitos passageiros naquele horário. Levantou-se. Viu um lugar ao lado de um senhor com barba muito grande. Caminhou até lá e sentou. Tudo parecia normal para todos. A ausência do sol não era assunto. Os poucos passageiros viajavam calados. A viagem do metrô era rápida. Quatro estações. Nem haveria tempo suficiente para iniciar conversa com ninguém. Chegou a sua estação. Saiu do trem. Caminhou a passos largos na direção da saída do metrô, talvez na esperança de que o dia tivesse se normalizado durante a sua viajem pelo subsolo. Escadas rolantes. Finalmente, céu aberto. Ainda estranho; ainda escuro. Consultou o celular. Onze e vinte. Olhou para o shopping. Cinco minutos de caminhada. Torceu para que Antônio estivesse na portaria. O único com quem desenvolvera alguma intimidade; mínima, porém suficiente para indagar abertamente sobre tudo aquilo, sem a necessidade de se manter preocupado em demonstrar naturalidade. Todos os que cruzaram o seu caminho naquela manhã, pareciam lidar bem com tudo aquilo. Indiferentes; apenas um dia qualquer. Não. Não era um dia qualquer! A poucos passos do shopping, percebeu que fazia muito calor. Estava ensopado de suor. Ainda bem que deixara um uniforme reserva no vestiário dos funcionários! Parou. Notou que três rapazes, que aguardavam ao seu lado, a autorização do semáforo para atravessarem a avenida, estavam sem camisa. Um deles segurava um skate. Conversavam sobre o show de rock que haviam ido na véspera. Atravessou a avenida. Deu uma última olhada para o céu antes de entrar no shopping. Nenhuma nuvem; negro; sem lua; algumas poucas estrelas. Na entrada do shopping, um pequeno grupo de crianças acompanhadas por suas mães se fazia notar pelos diferentes timbres de várias vozes simultâneas. Entrou. Sentiu-se quase aliviado quando avistou Antônio, sentado em sua cadeira, atrás do balcão no saguão principal. Logo, a sensação de quase alívio deu lugar a uma sensação de quase pânico. E se ele também não fosse capaz de lhe explicar algo? E se ele chegou muito cedo, sem dar conta de que o sol não nascera? Bem, não tardaria a descobrir. Antônio trabalhava no shopping há muito tempo, conhecia todos ali. Funcionários do shopping, lojistas e até os clientes mais assíduos. Todos conheciam Antônio. Se não fosse capaz de lhe responder, encontraria alguém que o fizesse. Cumprimentaram-se. Antônio olhou o relógio e disse que ele estava atrasado. Isso não era bom. O chefe estava muito irritado porque recebera uma multa por excesso de velocidade, naquela manhã. Com certeza, iria lhe passar um sermão por causa do atraso. Talvez, até exigisse que ele compensasse o tempo, ao final do expediente. Ele ouvia tudo o que Antônio falava sem o interromper, mas esperava uma pausa no discurso do colega para poder lhe perguntar sobre o céu. Antônio, por sua vez, permanecia eloquente com as palavras, orientando-o a subir pelo elevador secundário, para não ser visto; aguentar a bronca do chefe, em silêncio; inventar uma bela desculpa, para o atraso. Nesse ponto, Antônio deu uma pausa, tentando, ele mesmo, pensar numa desculpa convincente para sugerir ao colega. Pronto. Era esse o momento. Ele disse para Antônio que não daria desculpas, mas falaria a verdade; afinal, a ausência do sol, por si só, já justificaria o atraso. Antônio não entendeu direito o que ele disse. Então, ele relatou tudo o que acontecera, desde o momento que acordara. Antônio permaneceu em silêncio alguns minutos, esforçando-se para refletir sobre tudo o que acabara de ouvir. Não. Isso não vai funcionar. Essa era a mais absurda desculpa de atraso, que alguém jamais inventaria, e que chefe nenhum engoliria. Ele o interrompeu, demonstrando sua irritação com o fato de que Antônio não acreditara nele. Era a verdade! Não era desculpa. Era o que tinha acontecido. Sim, era estranho; ele mesmo não sabia o que estava acontecendo; não sabia o porquê da ausência do sol. Mas, desculpa?! Não. Não era desculpa. Novamente, silêncio. Antônio olhava para ele incrédulo, como se estivesse olhando para alguém que está prestes a pular de um precipício. Ele, por sua vez, mantinha o seu olhar no fundo dos olhos de Antônio. Falara a verdade. Também não estava satisfeito com o atraso; também não entendia o que estava acontecendo; também queria uma explicação; mas, falara a verdade! Ainda olhando para Antônio, repetiu que não tinha razões nenhuma para mentir. Essa última providência parecia haver convencido Antônio. A expressão do seu olhar não era mais de desconfiança, porém de pena. Antônio respirou fundo, pôs as mãos em seus ombros, e olhando-o com uma cumplicidade preocupada lhe disse que havia um problema. Sim! Finalmente! Havia um problema. Isso era fato. O que acontecera com o sol? Ele precisava saber. Ele queria uma explicação. Antônio se aproximou mais do colega e o abraçou, em silêncio. Aquele abraço; aquele novo silêncio; pareceram durar uma eternidade. Enquanto ouvia a respiração descompassada de Antônio, sentiu-se novamente desolado. A explicação para tudo aquilo devia ser terrível! Fim do abraço. Antônio deu um passo para trás e gritou para outro colega o cobrir no balcão, pois iria sair para fumar um cigarro. Pediu para que ele o seguisse até lá fora. Finalmente! O fim daquele mistério estava próximo. Saíram. Antônio pegou, sem muita pressa, um cigarro no bolso. Enquanto o acendia, pediu o celular do colega emprestado. Deu uma profunda tragada no cigarro segurando-o com uma das mãos, enquanto com o celular na outra mão, mirou o céu e bateu algumas fotos. Devolveu o celular ao colega e pediu para que ele visse as fotos que ele acabara de tirar. Havia um problema. As fotos! O céu estava azul nas fotos! O dia estava ensolarado! Mas, como isso era possível?! O que estava acontecendo? Antônio olhou para o colega e lhe respondeu com a voz grave e solene. Não havia estrelas. Não havia breu. O dia estava normal; o céu estava azul. Ele olhou para o céu. Breu; algumas poucas estrelas. Olhou novamente para as fotos. Dia normal. Como isso era possível?! Então, o problema era com ele! Sim. Antônio lhe respondeu, hesitante. O problema era com ele. De alguma maneira, ele estava vendo o dia como noite. Talvez, alguma espécie rara de daltonismo. Mas, sem dúvida, o problema era a sua visão. Desvendado parte do mistério. Não. Não se sentia melhor. Saber que o problema era a sua visão, deu-lhe apenas uma responsabilidade maior sobre tudo aquilo. Nunca ouvira nada a respeito de alguma doença que afetasse os olhos daquela maneira. Pior. Se o dia parecia noite, por lógica, a noite então iria parecer dia! Isso era terrível! Percebendo a aflição do colega, Antônio lhe disse para tirar o dia de licença, e procurar um médico. Ele comunicaria o problema ao chefe. Era preciso ter um diagnóstico e começar o tratamento o quanto antes. Não devia ser nada demais. Ele concordou. Não devia ser nada demais. Agradeceu o apoio do colega e se despediu. Iria para casa para procurar algum oftalmologista no livro do seu plano de saúde. Chegou a caminhar na direção da estação do metrô, mas achou melhor pegar um ônibus. Seguiu então, na direção do ponto de ônibus. Estava angustiado. O que seria aquilo?! Devia ser algo genético! Certa vez, lera que a maior parte das doenças raras, têm origem genética. Em muitos casos, os portadores de genes defeituosos nem chegam a desenvolver a doença. É. Devia ser genético. Assim que chegasse em casa iria telefonar para a sua mãe e perguntar se havia algum parente na família que sofrera algo parecido. Parecido com o quê?! Enxergar invertido?! Descobrir que o problema era seu, em nada facilitou. Antes, fosse algum fenômeno da natureza! Fez sinal com a mão. O ônibus parou. Ele entrou, passou o cartão no leitor da roleta e se sentou no primeiro assento livre. Tudo mecânico. Não estava ali. Estava longe de tudo, de todos. Junto com os seus pensamentos sobre o que estava acontecendo. Sentia-se bem, não fosse a visão. Estava bem disposto; não sentia dor em parte alguma do corpo. Não fumava; era magro; era jovem. Recentemente, fizera o exame admissional; nada de errado. Na verdade, suas taxas estavam perfeitas, segundo o médico que analisara o resultado. É. Devia ser genético. Resolveu que iria marcar consulta com um oftalmologista, um psiquiatra e um geneticista. Melhor aproveitar o médico de graça e investigar isso a fundo. Ainda estava no contrato de experiência. E se resolvessem demiti-lo? Começou a cantar uma música no pensamento, tentando esvaziar a cabeça de tudo aquilo. Não deu certo. As especulações logo voltaram. Quase passou do ponto. Deu sinal. Desceu do ônibus. Cinco minutos de caminhada. Nem se deu conta de que caminhava a passos largos e apressados. Fez o percurso em três minutos. Abriu a porta do prédio com as chaves, que já estavam em sua mão. Tudo mecânico. Provavelmente, estavam em sua mão desde que saltara do ônibus. Não saberia dizer. Não se lembrava de tê-las pego. Será que estava afetando também a sua memória? Não. Eram os pensamentos que o estavam içando das ações, tornando-as mecânicas. Memória motora. No elevador, consultou o celular. Meio dia e meia. Viu mais uma vez as fotos que Antônio havia tirado. Como era possível isso?! Entrou no apartamento; despiu a camisa do uniforme encharcada de suor; deu dois passos até a geladeira e encheu um copo de água. Bebeu, enquanto retirava os sapatos com os pés. Foi até o espelho do banheiro e ficou olhando os próprios olhos, tentando encontrar neles alguma falha física, alguma pista do que estava errado com eles. Nada. Fisicamente, pareciam normais. Tirou as meias e as calças. De cuecas, telefonou para a sua mãe. Enquanto aguardava que ela atendesse, deu um passo até as janelas e olhou novamente para o céu. Breu. Conversou alguns minutos com a sua mãe. Ela não sabia de nenhuma anomalia parecida na família. Lembrou-se de que o seu pai tivera um primo que perdera a visão, supostamente, devido a uma catarata precoce. Mas ia assuntar com suas tias e com o irmão mais velho do seu pai, que ainda estava vivo. Passou-lhe diversas orientações, mostrando-se bastante preocupada com o filho. Despediram-se. Ele pegou o livro de médicos credenciados do plano de saúde. Alegando urgência em ser atendido, com algum custo de argumentação, conseguiu encontrar horário para o dia seguinte com os três especialistas que definira. Iria primeiro ao oftalmologista, depois ao geneticista e por fim, ao psiquiatra. Consultou o celular. Dez para às duas. Sentiu fome. Preparou um mexido de ovos e sentou-se na cama para comer. Depois da refeição, deitou-se para ler um livro. Assim, passou à tarde inteira. Enquanto lia, percebeu que se distraíra dos problemas. Conseguiu se concentrar na leitura sem ser interrompido pelas suas próprias indagações. Levantou-se para tomar um banho e comer alguma coisa. Olhou pelas janelas. O dia começava a ficar claro. Consultou o celular. Seis e meia. É. Parecia que a noite seria clara como o dia deveria ter sido. Realmente, sua visão estava confundindo o dia pela noite, e vice-versa. Dois passos até o banheiro. Ligou o chuveiro. Antes de entrar no banho, lembrou-se de pegar a toalha no varal. Tomou banho. Fez um sanduíche de requeijão com duas fatias de pão de forma. Comeu. Uma última olhada pela janela antes de se deitar. Sem estrelas. O céu estava claro, porém com um tom de azul bem diferente daquele que pinta um dia normal. Era um azul meio escuro. Diferente de qualquer céu de qualquer dia ou noite que já houvesse reparado. Belo! Fechou bem as cortinas para esconder a claridade. Deitou-se para ler. Adormeceu.

Haviam-se passado três dias desde que o colega chegara no trabalho com a visão confusa. Antônio conversara com o chefe, explicando o problema. Manteve-se firme, intercedendo em favor do colega, até que o chefe parecesse convencido da gravidade do problema. Não era desculpa. Era muito estranho, mas era a verdade. Desde então, esperava ansioso e preocupado, algum contato do colega. Nada. Será que ele fora ao médico? Será que tinha cura? O que poderia ser? Pesquisara páginas de medicina na internet, procurando alguma referência para algo parecido com aquilo. Não achou nada. Olhou para o relógio digital que ficava embaixo do balcão principal no saguão do shopping. Nove horas. Pegou o telefone e digitou o celular do colega. Ele lhe pareceu bastante calmo. Disse-lhe que fora a três médicos. Fizera diversos exames e o resultado final sairia hoje. Retornaria aos médicos, esperançoso de que eles chegassem a alguma conclusão e lhe prescrevessem algum tratamento. Por enquanto, nada. O dia era noite e a noite era dia. Mas, estava mais calmo e mais conformado com tudo aquilo. O colega lhe contou também, que sua mãe descobrira alguns problemas de visão nos familiares da parte do seu pai. Dois casos de cegueira; alguns daltônicos; muitos míopes. Mas, nenhum caso de visão inversa. Contou-lhe ainda, que a claridade da noite não era tão incômoda, e que já estava se acostumando à escuridão do dia. Somos humanos, capazes de nos adaptarmos! Riram. É. Por pior que parecesse, por mais inexplicável que fosse, estava vivo e vivo continuaria. Se não houvesse uma cura, ou se o tratamento fosse demorado, ainda assim, estaria vivo. O colega ficou de passar no shopping quando saísse das consultas com os médicos. Sentia-se bem. Não via razões para não retornar ao trabalho, a não ser que lhe prescrevessem algum tipo de tratamento que o impedisse a isso. Pediu para que Antônio atualizasse o chefe daquelas informações e o agradeceu bastante emocionado, pela forma carinhosa que ele lhe fizera constatar à anomalia. Despediram-se. Bem, as coisas estão caminhando. O colega parecia bem disposto e otimista, apesar de tudo. Antônio levantou-se, gritou para que alguém o cobrisse no balcão e saiu para fumar um cigarro. Na volta, iria até a sala do chefe para lhe contar do telefonema. Há jeito para tudo; tudo se ajeita.

Antônio olhou para o relógio digital que ficava embaixo do balcão. Dez para às seis. O expediente estava acabando. Três meses se passara sem notícias do colega. Como ele não havia passado no shopping no dia que haviam conversado pelo telefone, Antônio ficou sem saber o que tinha acontecido. Tentou ligar para ele várias vezes, sem sucesso. Enfim, foi atendido pela gravação da operadora de telefone, informando que aquele número havia sido desativado. No trabalho, esperaram alguns dias, até que o seu chefe se viu obrigado a demiti o colega por abandono de emprego. Nenhuma notícia; nenhum contato. Onde andaria o colega? Será que estava em tratamento? Será que fora internado? É. Provavelmente algum dos médicos o obrigara à internação para tratamento. Como se diz no popular, notícia ruim logo chega; se não ficara sabendo de nada, é porque não acontecera nada de ruim. Talvez, nunca mais volte a ter notícias do colega.

Consultou o celular. Dez para às dez. Sua vida mudara drasticamente. Há uma semana não falava com a sua mãe. Na última vez que conversaram pelo telefone, ele insistiu para que ela fosse morar com ele, mas, sabia que isso dificilmente ocorreria. Lembrou-se daquela manhã em que o sol não aparecera. Riu sozinho. Como pudera ter demorado tanto para perceber que o problema era consigo, e não com o mundo?! Como poderia imaginar que ser portador de uma anomalia genética, desconhecida da ciência, seria capaz de mudar tanto a sua vida?! De uma breve negação intuitiva, para uma quase comemorada, aceitação completa da sua doença. É claro que estava se divertindo com isso, até porque, não era portador de uma doença terminal; mas, de uma doença sem precedentes. Nenhum dos três especialistas que o atenderam foram capazes de diagnosticar a sua doença. Não havia, no conhecimento da medicina, registro de nenhum caso similar ao seu. O único consenso entre eles era de que isso lhe abriria uma oportunidade de vida única. E foi o geneticista quem mais contribuíra para que isso, de fato, ocorresse. Ele fizera contato com um centro de pesquisas de um famoso laboratório farmacêutico na Finlândia, relatando o seu problema. Há séculos os países de pouco sol convivem com uma baixa produtividade laborativa, pelos efeitos das noites longas. Há décadas os centros de pesquisas desses países tentam produzir um medicamento que neutralize esses efeitos. Sua espécie de anomalia genética era fonte rica para tais pesquisas. Então, fora contratado como cobaia humana. Submetia-se a exames médicos quase diários; sofria algumas restrições na alimentação; era-lhe definitivamente proibida a ingestão de álcool; mas, o retorno era enorme. Recebera cidadania. Morava num luxuoso apartamento de três quartos, bancado pelo centro de pesquisas; telefone; internet; tv a cabo; nenhuma despesa. E, enquanto pesquisavam a cura para a sua doença, percebia uma considerável renda mensal. Gastava com roupas, e com sua recente coleção de óculos escuros. Recebia aulas de idioma, e tão logo o dominasse, poderia se matricular na faculdade. Já decidira cursar química, ou farmácia. Estivera a convite de um famoso geneticista local, em um seminário de reengenharia genética, na noite anterior. Conhecera uma encantadora e belíssima estudante de farmácia; combinaram de jantar no próximo fim de semana. É. Sua vida mudara. Lembrou-se novamente daquela manhã escura. Lembrava-se meticulosamente de cada detalhe, de cada uma das pessoas que cruzaram o seu caminho. O casal de irmãos, no elevador; a senhora, com pouca memória; Marta; Nestor e Tomé. As personagens passavam pela sua memória e o transportavam para o que havia vivido. Lembrava-se de Antônio com enorme gratidão. Por diversas, pensou em lhe telefonar para dar notícias, mas sem saber muito bem o que dizer, acabava desistindo. A vida lhe apresentou um precipício, que se transformou em horizonte. Agora ele tinha a certeza de que não precisava enxergar o sol para saber que ele estava ali.