O navio do não-existir
Ela estava em um império. Um navio. Provavelmente a casa dela, junto a milhares de pessoas que também moravam ali, desde sempre. Mas algo estava errado, ela percebeu de repente. Chamas se aproximavam, e eles precisavam fechar o navio e inundá-lo; para se salvarem, as pessoas corriam para fora do navio. Mas algo a chamou mais para o interior do navio e ela foi, guiada pela intuição. Chegando lá, porém, não sabia o que encontrar, pois nada havia. Percebeu que morreria se continuasse ali. Começou a procurar alguma saída do navio, desorientada. Via pessoas que conhecia de vista, fazendo o mesmo, pessoas indo para lados diversos, correndo, ansiando pela vida. Ela, como um ser sem vontade própria, movida por uma energia intuitiva, que guiava seu corpo, foi avançando em uma única direção. A água estava inundando o navio. Ela estava quase desistindo, percebendo que seria enterrada pela água. Estava chegando em frente à porta. Pensou que se fecharia devagar, de tanto querer, mas esta se fechou rapidamente, sentenciando sua prisão dentro do navio. Procurou por outras saídas, mas não havia. Já debaixo d’água, não conseguia mais conter o ar em seus pulmões. Percebeu que aquela intuição a levou à morte. Era a morte chamando-a. Via pessoas ao redor, mas nenhuma delas podia ajudar, pois estavam na mesma situação. Ansiava uma salvação, mas sabia que não havia. Ela estava sozinha. Sempre esteve só. Era uma alma solitária que estava morrendo sozinha. Finalmente sua solidão se consumaria no maior fato de sua vida. Estava se entregando, sozinha, à morte. Ela se renderia. Era culpada; estava se entregando. Até que os braços de uma menina a envolveram pela cintura, para tirá-la daquela agonia que precede a morte. Quando abrisse os olhos, esperava estar do outro lado do navio; do lado de fora, olhando para o céu, nublado que fosse, trovejando, o céu todo caindo sobre si mesma, queria o lado de fora de qualquer jeito, do jeito que estivesse, mas que fosse o lado de fora. Já estava muito grata à menina. Mas ela apenas não abriu os olhos. Ela estava ao lado de sua irmã, rindo, confortável, em casa. Anos atrás. Ela havia morrido; ela não existia mais. Quem a levou durante seu processo de não existir mais, foi a memória do passado, junto a sua irmã, a sua casa. O que mais desejava, ansiava, o que mais seu espírito pedia, era a vida, o mais importante bem que ela tinha. Não conseguia nem exprimir isso em sua feição, pois ela, que não existia mais, estava presa em suas memórias. Incapaz de criar novos momentos. Incapaz de se expressar. Incapaz de realizar seus sonhos. Ela era diferente. Depois da morte, ela não existia mais. E assim, tudo acabou. Ninguém se deu pelo não existir dela, nem ela mesma. Talvez ela nunca tivesse existido realmente. Mas isso, ninguém jamais saberá: é mistério perdido no inconsciente. E tudo partiu... do navio do não-existir.