A dançarina
O corpo pesa, dói. Dele emana um desconforto sem raiz mas com alcance irrestrito. E é por isso que sei que estou acordado e que a vida ainda está colada em mim como algo pegajoso e sujo.
Mas hoje existe algo de diferente no ar: não estou sozinho no quarto.
Ela dança em torno da minha cama a dança mais suave que já vi. Os pés parecem não tocar o chão, e não ouço nada, nem música, nem o farfalhar de seu vestido e véus. Onde estarão os sons que a movem?
Não vejo seu rosto, não sei quem é. Seus rodopios são borrões distorcidos que não consigo dizer se são rápidos demais ou lentos demais. Nos braços desnudos, nas pernas expostas, vejo sua plere branca, acetinada, um contraste desconcertante com os tecidos profundamente negros que envolvem todo o resto. Penso, insanamente, ser uma estátua de mármore que se mexe ao meu entorno.
A cada passo trançado ela se aproxima. E sinto medo e quero gritar. Que venha a enfermeira, que venha alguém. Que venha algum sentido nisso tudo. Minha voz me trai, a última desertora dessa fortaleza em ruínas. Mas a dançarina não liga, e nem poderia, e continua sua sina dançante, cada vez mais próxima de mim, vindo por rodopios sensuais, misto de luxúria e mistério.
Há um delírio no ambiente, sinto o cheiro de sonhos e fantasias, e se eu pudesse me mexer um pouco que fosse sei que me depararia com o ar espesso como a água.
Quem é você?, quero saber, quero perguntar, quero dar meu último grito, exercer meu último direito.
Ela se aproxima em movimentos lentos e premeditados, braços e pernas cruzando suavemente o espaço. Quando chega ao meu lado, os braços pousam junto ao corpo, e as pernas assumem posição de prontidão. E então, o corpo todo, feito universo particular, entra num movimento só seu, e a dança prossegue noutro tom de luxúria e mistéiro.
E lá do fundo, de onde os véus fazem uma inexplorável sombra sobre o rosto dela, vêm os olhos que me encaram, vêm a boca que insinua um sorriso. Vejo olhos, vejo a boca, mas o rosto falta tal qual ao gato de Alice.
E ela espera por algo.
E ela parece me querer profundamente.
Seus olhos são fronteiras do inexplicável e eu fico assustado. Preciso saber quem é ela.
E então eu a sinto mais do que nunca quando pousa os finos dedos sobre meu peito, que ofega ruidosamente. Deles, uma onda de paz emana e corre meu corpo e vira meus medos do avesso, mostrando o que há de mais risível e patético nos meus pesadelos, agora tão infantis. Ela sorri piedosamente ao ver-me assim, tão desarmado, como se minha rendição fosse a única saída e ela se compadecesse deste meu destino derrotado.
Já não preciso saber quem é ela.
Não quero saber mais de nada.
Toda a curiosidade se dissipa conforme o conforto, inédito, me domina. Para onde foram as misérias doloridas e acumuladas anos afora?
Ela permanece ao meu lado dançando parada no lugar, gingado sutil e eterno, ainda sorrindo, dedos postos em meu peito feito âncora sem a qual um de nós se perderia irremediavelmente. Para mostrar que eu começo a entender, tento dizer, em um último suspiro, que está tudo bem, tudo bem, mesmo: os lábios se movem e nada sai.
Aos poucos, ela suaviza sua dança e vai, também aos poucos, colando a palma da mão ao meu peito. A onda de paz se propaga, aumenta, então explode numa profunda percepção atemporal - agora, depois, antes, nada disso vai existir novamente.
Tento dizer algo, repetir que está tudo bem, que eu não me arrependo mais de nada, mas nada sai, e restam apenas os meus lábios mudos abrindo e fechando.
Adivinhando minha intenção, ela sorri ainda mais, tão confortante quanto poderia ser um sorriso, e cola, por completo, a palma da mão em meu peito, que está sereno, a superfície mais calma do oceano inconformado que um dia eu fui.
Só agora é que identifico em seu sorriso algo familiar. Vejo ali sinais de velha amizade e lembro, num estalo por demais evidente, que eu a conheci a minha vida toda e que fomos amigos por anos sem-fim.
Como se esperasse por esse reconhecimento, ela fecha os olhos convidativamente. Em paz e muito além de qualquer tipo de felicidade, eu aceito o convite e também fecho os meus olhos. E só então embarco na macia e morna escuridão.