923-MARIA FUTRICA

Era uma mulher feia, muito feia, magra, boca faltando dentes, queixo fino e proeminente, nariz adunco e orelhas de abano, que sobressaiam por entre os cabelos brancos compridos e escorridos pelos ombros. Magra, muito magra, e por isso parecia ser alta. Usava invariavelmente o mesmo tipo de roupa, um vestido cor de cinza, que ia até as canelas finas, de mangas largas e compridas. Nos pés, um par de chinelos muito velho.

— Fica longe dela, Bete.— Aconselhava meu irmão Boni, um pouco mais velho do que eu. — É uma bruxa disfarçada.

Era muito asseada. Roupa sempre limpa, os cabelos brancos que flutuavam de tão lavados, e a casinha bem cuidada. Um pequeno jardim na frente da casa revelava o cuidado que tinha com as flores: gerânios, esporinhas e um viçoso pé de comigo-ninguém-pode, que é contra maus olhados.

Viúva e sem filhos, vivia só numa casa pequena e modesta, que ficava no outro quarteirão da mesma rua da nossa casa. Minto, tinha uma companhia sim, um gato preto, grande, que ficava sempre no portão, assentado à moda dos bichanos, cochilando de dia e com os brilhantes olhos verdes acesos como duas luzinhas.

Me perseguia um pensamento que tentava afastar de minha cabeça de menina inocente: seria ela uma bruxa de verdade e o gato preto um animal dotado de poderes mágicos?

Não era bem vista nem bem tratada pela vizinhança devido à boca suja, como diziam e seu prazer em fazer fofocas. Falava alto na rua com os que passavam; mesmo com aqueles que evitavam passar defronte sua calçada, caminhando pela calçada oposta.

— Já vai prá feira, seu Chico? Vai pela sombra, que o sol te molha.

Ou

—Passeando tão cedo, dona Carolina? Gastando a sola do sapato, hein?

Gostava muito de espalhar boatos na vizinhança. Inventava coisas, implicava com todo mundo e chegava ao desplante de bater nas portas das casas dos vizinhos para levar fuxicos e futricas, fofocas e maledicências.

Por isso merecia o nome que lhe fora posto: MARIA FUTRICA.

E por incrível que pareça, era sustentada por um amante. Dizem que quem ama o feio, bonito lhe parece. Pois é, a bruxa futriqueira encontrara seu par.

Ele era um velho bem velho, todo branquinho, cabelos, barba e o rosto, que parece nunca havia tomado sol. Miúdo, magro, era o par certo para Maria Futrica.

Seu Ambrósio (assim se chamava) morava do outro lado da cidade. Boni, que me mantinha atualizado nessas coisas, pois com sua bicicleta rodava sem parar, me falou:

—Seu Ambrósio mora perto da caixa d’água, no alto de seminário.

Ele aparecia todas as tardes, já no anoitecer, e passava a noite com Maria Fuzarca.

Isto eu sabia por que o via entrando e saindo da casa de Maria Fuzarca, já que, como disse, a casa ficava no outro quarteirão, era bem visível do alpendre de nossa casa.

Maria Fuzarca espalhou pela vizinhança que a vizinha da frente, dona Miranda (Altamiranda por extenso), estava de “caso” com seu Ambrósio.

Igualmente solitária, vivia a baiana corpulenta e gorda sua vida pacata e sentiu-se incomodada com o boato. Ameaçou Maria Fuzarca:

— Cê fica calada no seu canto – gritou ela da janela — senão te dou uma surra! Esse pirralho de seu amante também que fique longe de mim!

Em vez de se aquietar com a ameaça, Maria Fuzarca aumentou a boataria, denegrindo a baiana.

Não demorou muito para que a baiana passasse das ameaças à ação.

Numa tarde quente, daquelas tarde compridas que anoitece lá pelas sete horas, estava eu, banho tomado e esperando a janta ficar pronta, conversando com algumas amiguinhas da vizinhança. Sentadas na calçada. Boni estava com a gente.

Vimos quando seu Ambrósio ia chegando e Maria Fuzarca esperando-o no portão. De repente, Apareceu dona Miranda correndo na direção dos dois amantes.

Sem avisar, deu um puxão no velhinho, que caiu de lado. E A seguir agarrou Maria Fuzarca pelos cabelos.

— Óia a briga, óia a briga — gritou Boni, levantando-se e correndo na direção da confusão. — Vem, meninas, vamo ver de perto.

A rua estava deserta, só se via os três envolvidos no entrevero.

O velho Ambrósio levantou-se rápido e por sua vez, puxou dona Miranda pelo braço. Ela caiu, sem soltar a bruxa, em cima do Ambrósio. Rolaram pela rua de terra, levantando poeira.

Ficamos a uns poucos metros da confusão, observando.

Mesmo no chão, dona Miranda dava tapas na cara de Maria Fuzarca. Os dois, a bruxa e seu amante, não eram páreo para dona Miranda, de braços roliços, pernas fortes e mãos grandes. E, além do mais, furiosa com os boatos da vizinha.

Logo eles ficaram de pé. Dona Miranda deu um soco no velho e agarrou a bruxa quando ela tentou correr na direção do portão de sua casa. Mais uns tabefes e o rosto da pequena mulher ficou vermelho, acho que saia sangue da boca ou do nariz.

Seu Ambrósio fugiu da luta, correu pra dentro da casa. Dona Miranda, sentindo-se satisfeita com os golpes aplicados na vizinha, e o sangue que manchava também sua mão, largou Maria Fuzarca, que, trôpega, fugiu na direção de Seu Ambrósio. Deu um tropeção e caiu.

— Bem feito! — disse Boni só prá gente escutar.

Enfim, os três contendores saíram de cena. Ficamos só nós na rua, esperando... nem sabíamos o quê.

— Acabô, meninas. Vam’imbora — Boni aconselhou.

Quando, à mesa do jantar, começamos a contar com entusiasmo a briga, papai deu uma pigarreada e botou fim na conversa:

— Vocês não tinham nada que ir lá ver. Quando gente grande briga, criança tem que ficar longe. Ouviram?

Balançamos a cabeça, afirmativamente.

Daquela tarde em diante, nunca mais vi Seu Ambrósio. Acho que ele ficou com medo e não visitou mais Maria Futrica. Ela, por sua vez, deixou de futricar e de mexer com as pessoas. Virou outra.

Para felicidade da vizinhança, não demorou muito tempo e ela mudou-se da nossa rua.

Boni, que sabia de tudo, disse:

— Ela ta morando lá prá cima, na casa do seu Ambrósio.

Cessada a boataria, o sossego tomou conta da nossa rua.

O gato preto não foi com a bruxa, pois, como se sabe, não acompanha quem muda.

De Maria Futrica só ficou a lembrança.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 26 de setembro de 2015.

Conto # 915 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

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Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/08/2016
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