Uma noite alucinante!

Uma noite alucinante

Andávamos apressados pelas ruas escuras, desviando das outras pessoas que vinham em sentido contrário, todos tentávamos nos esconder da chuva fina e fria que caía. Nossas capas e botas já estavam encharcadas, nossa busca por um bar acolhedor e uma dose de bebida parecia não ter fim. Caminhávamos os quatro como se fossemos os cavaleiros do apocalipse (a diferença era a presença dela entre nós). Maldita ideia de numa noite assim procurar um bar com música, mas o tipo de música que buscávamos combinava bem com o tempo e o ambiente local. Éramos eu, Dan, Miles e Janis. Quatro amigos em uma busca pelas raízes do blues.

Descemos ao longo da rua principal que foi ficando cada vez mais escura e enlameada, de repente a rua terminou bem em frente a alguns prédios mal iluminados. Uma placa em neon com letras queimadas chamou nossa atenção – Devil’s Kitchen – seguimos para lá. Bloqueando nossa passagem surgiu um negro muito alto e com um ar sombrio, trajava-se como alguém dos anos 20. Olhou-nos de alto a baixo, parecia nos avaliar. Olhou-nos um a um, quando seus olhos pousaram nela sorriu de um modo estranho como se a reconhecesse, em sua boca brilhava um dente de ouro que o fazia parecer um lobo. Abriu os braços e nos deixou passar.

Entramos em um recinto com poucas luzes e vimos algumas mesas e cadeiras, quase todas ocupadas. Era um salão grande e do lado direito vimos um palco pequeno. Do lado esquerdo ficava o balcão do bar, nos dirigimos para lá a passos rápidos. Pedimos umas cervejas e começamos a olhar as pessoas em volta. Um lugar exótico com uma clientela no mesmo padrão, cabeludos ou barbados, roupas negras ou coloridas, ternos ou jaquetas, uma miríade de estilos e épocas. Homens e mulheres de diferentes tipos e raças. Janis olhou para uma mesa e me cutucou apontando para uma moça sentada de frente para nós.

__Olhe a garota de cabelos longos e óculos de aros redondos, quem te parece? Sob a luz mortiça era difícil visualizar todos os cantos do bar, mas a moça era bastante visível de onde estávamos e a semelhança era de assustar. ___ Realmente parece muito, se eu tivesse uma capa de disco para comparar seria capaz de dizer que é uma sósia perfeita dela!

__ Então olhem ali no palco, vejam o cantor e o guitarrista! Falou Miles quase cuspindo a cerveja em cima nós. __ Este maldito lugar deve ser uma conferência de sósias de estrelas da musica! Aqueles no palco são cópias perfeitas do Curt e do Jimmy! Olhei para o palco e fiquei arrepiado, pois o Cobain e o Hendrix pareciam em uma sintonia incrível enquanto executavam uma versão transloucada de “Cocaine”.

Quando me virei percebi que Janis não estava mais conosco, a vi indo em direção à mesa onde a moça de cabelos longos estava. Começaram a conversar e logo Janis se sentou, entre uma dose e outra de absinto percebi que as duas já pareciam velhas amigas. Olhei para Miles e Dan e sorrimos.

Passaram se alguns minutos e outra vez a luzes do palco foram acesas, uma figura lenta e até um pouco pesada se dirigiu para lá, levava uma guitarra. Era um homem negro, já bastante entrado na idade, uma figura indiscutivelmente conhecida para ser ignorada. Nunca vi os olhos de Dan se abrirem tanto, ele quase teve um surto quando viu B.B se dirigindo para o palco. Correu até ele e parecendo um fã louco começou a elogiá-lo.

__ Não acredito, você é uma lenda viva da música! Que lugar é esse que reúne tanta gente incrível! Senhor King sou muito fã do senhor! O senhor é um dos meus ídolos, um dos motivos de eu tocar guitarra! – foi falando Dan atropeladamente.

__ Quer dizer que você toca guitarra meu jovem?! E onde ela está? Um guitarrista não abandona sua amada em nenhum momento! Até na hora do sexo ela está ao lado da cama, para lembrar que a mulher é apenas uma amante.__ Não me chame de senhor!__ A guitarra nos mantém eternamente jovens, e em alguns casos até imortais.__ Já viu alguns dos amigos que estão aqui hoje? Falando isso deu uma gargalhada mostrando todos os dentes.

__ Senhor King eu a deixei no hotel, mas o senhor não sabe a emoção que eu estou sentindo ao vê-lo assim na minha frente.__ Queria tê-la aqui para dedilhar algumas notas para o senhor ver.

Neste momento B.B se dirigiu a alguém na escuridão e disse: __ Joe, faça a gentileza de me trazer uma das irmãs de Lucille aqui. – O negro alto que havia nos recebido na porta saiu das sombras com uma guitarra muito parecida com a de King. B.B pegou-a e entregou-a a Dan que embasbacado não sabia o que fazer.__ Vamos jovem, você me disse que queria dedilhar umas notas, aí está a guitarra e ali está o palco nos aguardando. Dizendo isso se dirigiu ao palco e sentou em um banco colocado ali para ele. Dedilhou algumas notas, escalou todo o braço da guitarra e acenou para que Dan subisse no palco.

Olhando do bar dava para ver o nervosismo de Dan, eu conseguia ver suas pernas tremendo e sua testa brilhando de suor. Ele se dirigiu ao palco, ligou a guitarra e dedilhou algumas notas para mandar embora o nervosismo. Neste momento algo mágico começou a se desenhar diante dos meus olhos. B.B entendeu a mensagem e acariciou de modo libidinoso as cordas de Lucille e começaram a tocar “Cross Road” de Robert Johnson. Neste ritmo a noite passou de forma alucinante, músicas e muitas doses de uísque e absinto nos fizeram esquecer o mundo lá fora. Fui ficando entorpecido e a última coisa que me lembro é de ver o gigante negro sentando em nossa mesa me olhando e sorrindo daquela forma sombria e sedutora.

As pancadas secas pareciam vir de longe, como se estivessem atravessando uma parede grossa. Foram ficando mais altas e acompanhadas de solavancos, abri os olhos achando que fossem Dan ou Miles me zoando por ter dormido no meio da conversa. Era um guarda que com uma cara avermelhada que batia na lateral do nosso carro com o cassetete. O guarda me assustou, mas o pior foi não saber como eu tinha chegado a nosso Plymouth 58. Olhei em volta e vi que meus amigos também estavam no carro, todos meio adormecidos. O guarda de forma ríspida me perguntou o que fazíamos naquela parte velha da cidade. Disse que devíamos ir embora porque era um lugar perigoso. Tentei organizar as ideias, mas não conseguia entender ou me lembrar de como tínhamos saído do bar e entrado no carro. Afinal tínhamos chegado ali caminhando!

O guarda foi embora e eu comecei a acordar meus amigos, eles despertaram e também não entendiam como estávamos no carro. Nossa noite alucinante não poderia ter sido um sonho, afinal todos nos lembrávamos da nossa louca aventura no mundo da música. A rua ainda era a mesma de terra batida e enlameada, mas eu tinha certeza de que não havia aquela encruzilhada e o os prédios em volta não eram tão decadentes. O Devil’s Kitchen continuava lá, mas em todas as portas e janelas havia tabuas pregadas impedindo qualquer acesso ao local. Teias de aranha e muita sujeira cobriam todos os vãos. Fiquei durante um tempo perdido em pensamentos, mas quando olhei para uma das janelas do segundo andar tive a nítida impressão de ter visto na janela um rosto sorrindo e no meio do sorriso um brilho riscando a penumbra. Entrei no carro e abri o mapa, a rota 66 se estendia a nossa frente e muitas outras cidades interessantes surgiriam.

Eddie Shibumi

Eddie Shibumi
Enviado por Eddie Shibumi em 25/06/2016
Código do texto: T5678475
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