A obra final
Ao sair da prisão, decidiu que mudaria de vida. Depois de dois longuíssimos anos naquele inferno, graças ao seu protetor, percebeu que poderia sair antes. Fez conforme o catecismo dele e estava livre. Não totalmente, mas ver-se fora daquele inferno era o que importava.
À rua, ninguém a esperava, além dele. Aliás, fora ele o único que a visitara naquele período. Seu pai a abandonara e os amigos, bem, descobrira que não os tinha. O único que sobrou foi aquele moço que mal se envolvia nas orgias, que nunca se embebedava, que não se picava, mas estava sempre por perto, observando e, de vez em quando, sorrindo. Seu olhar, tão enigmático quanto o sorriso, tinha algo de improvável, algumas vezes parecia quase insano, mas sempre a atraía. Ele lhe falava pelos olhos e a ela cabia decifrar cada palavra. A boca daquele homem servia praticamente para sorrir. Os lábios eram atraentes, mas o hálito era forte, um tanto desagradável. Não quis beijá-lo nas poucas vezes em que estiveram próximos. Era incrível como aquele homem estava sempre presente nos momentos cruciais de sua vida, inclusive quando fora presa. Naquela ocasião, ele estava ao seu lado, ela pôde vê-lo nitidamente, apesar de que, daquela vez ele não exibia seu belo sorriso.
Encarou-o à porta do presídio e ganhou o sorriso enigmático, que durante as visitas à prisão não parecia tão satisfeito. Suas visitas, na verdade, destinavam-se praticamente a dar-lhe instruções. Preciosas instruções.
À frente do presídio, não trocaram palavras, não era necessário. Apenas começaram a caminhar lado a lado pela rua ensolarada, sem um pé de nada, sem calçamento, sem limpeza, sem beleza. A beleza daquela tarde era essa caminhada, era o vento quente balançando seus cabelos ensebados, era respirar um ar mais puro, era ver e sentir a luz do dia por inteiro depois de tanto tempo.
Em silêncio, rapidamente chegaram à encruzilhada da estrada vicinal, que daria para a rodovia principal, após alguns quilômetros. Ele a encarou com aquele mesmo olhar, que ela decifrou facilmente: “que lado vamos tomar”?
Ela, sem pensar muito, decidiu ir para a direita. Ele ficou parado, parecia pensativo. Demorou um pouco, mas depois a seguiu. Não caminhavam mais lado a lado, ele ia ligeiramente atrás. O único lugar que ela tinha para ir era a casa do pai e certamente ele a acompanharia até lá. Teria um longo caminho, não tinha dinheiro para o ônibus, mas sentia que deveria ir ao encontro do que restou de sua família. Talvez arranjasse uma carona.
Surpresa das surpresas, ao passar pelo ponto de ônibus, viu seu pai sentado ali, como se a esperasse. Secamente, ele perguntou:
— Onde está aquele rapaz que fez questão de te buscar?
Ela olhou pra trás e ele já não a acompanhava. Respondeu ao pai, simplesmente:
— Seguiu seu caminho, eu segui o meu.
Ficaram sentados no ponto, não conversaram, apenas esperaram quarenta minutos até que o ônibus passasse. Ela nada tinha a contar ao pai e ele parecia ter vergonha dela, não queria saber. Entraram no ônibus e seu pai fez que não a conhecia, pagou as passagens discretamente e tratou de sentar-se numa poltrona ao lado de uma senhora que dormia com a boca aberta.
Ela, sem muitas opções, sentou-se três poltronas à frente, ao lado de um rapaz que lia a bíblia. Ele interrompeu a leitura, levantou os olhos e a encarou. Aquele olhar... Era o mesmo olhar de seu protetor. Sim! Havia o enigma, a mesma força vinda de dentro daqueles olhos. Seus cabelos tinham um cheiro forte, não muito agradável, mas eram lindos. O rosto, belíssimo, era emoldurado pelas malcheirosas, mas bonitas madeixas. Ficou olhando o rapaz ao lado, enquanto ele se revezava entre a bíblia e os olhares profundos em sua direção. Finalmente, ele fechou o livro e num impulso de pregação que só os crentes têm, segurou a mão da recém-chegada.
— Vou te levar para o melhor lugar desse mundo, mas antes preciso de uma promessa.
— E quem disse que eu quero ir?
— Você quer, sim. Qualquer um sabe que você nunca quis essa vida miserável. É só fazer a coisa certa, que tudo mudará daqui pra frente. E a primeira coisa certa a ser feita é a promessa.
Sem saber o que fazer, ela olhou para trás e não viu mais o pai. Olhou pela janela do ônibus e não compreendeu onde estava, que lugar era aquele onde o ônibus passava. Havia cochilado? Havia sonhado aquelas palavras? Pela janela, viu as luzes intermitentes da polícia passarem pelo ônibus, que reduziu a velocidade até parar. Antes que os policiais entrassem, sem pensar muito, mas encarando francamente aqueles olhos penetrantes, ela disse:
— Prometo! Prometo o que quiser, mas não deixe que me levem.
— Fique tranquila, quem te levará sou eu.
— Afinal, quem é você?
— Eu sou – e sorriu lindamente. O mesmo hálito conhecido, repugnante.
Naquele instante, ela sentiu tudo ao seu redor arder. Em meio àquela sensação de ardência, viu ao seu lado, por entre as chamas, o seu protetor e seu olhar profundo, seu sorriso inteiro, enigmático. Precisava saber mais dele.
— De onde te conheço?
— Desde sempre. Não se lembra?
Aquele olhar! Lembrou-se da mãe que a abandonara quando ela ainda carregava alguma inocência. Saiu para trabalhar e nunca mais voltou.
— E o dia em que te violentei, depois de te dar um remedinho? Não era isso o que procurava? Alívio? Você devia ter uns 13, 14 anos.
As chamas ao seu redor cresciam. Quis sair, mas não conseguia, parecia presa àquela poltrona. Olhou para a rua e viu seu pai, do lado de fora do ônibus. Ele continuava:
— Na hora em que você matou a riquinha sequestrada, eu estava lá. Quando foi presa pelo assassinato, eu estava ao seu lado. Não se lembra?
Quase sem forças, fez que sim com a cabeça. Daquilo ela se lembrava nitidamente.
As luzes intermitentes dos bombeiros chegavam fazendo algazarra com as sirenes. Dentro do ônibus, ela, a fumaça, as chamas e aquele moço, que sorria, enquanto lhe dizia:
— Olhe ao seu redor, contemple sua obra final. A fuga do presídio, o sequestro do ônibus, essas chamas. As almas deploráveis que morrem carbonizadas. Eu sei que você já não sente mais a dor do abandono, nem a dor do estupro, nem a aflição do presídio. Não sente o alívio da picada, nem a violência da polícia. Você foi fiel à sua promessa até o fim. Você e sua alma agora me pertencem.
À rua, ninguém a esperava, além dele. Aliás, fora ele o único que a visitara naquele período. Seu pai a abandonara e os amigos, bem, descobrira que não os tinha. O único que sobrou foi aquele moço que mal se envolvia nas orgias, que nunca se embebedava, que não se picava, mas estava sempre por perto, observando e, de vez em quando, sorrindo. Seu olhar, tão enigmático quanto o sorriso, tinha algo de improvável, algumas vezes parecia quase insano, mas sempre a atraía. Ele lhe falava pelos olhos e a ela cabia decifrar cada palavra. A boca daquele homem servia praticamente para sorrir. Os lábios eram atraentes, mas o hálito era forte, um tanto desagradável. Não quis beijá-lo nas poucas vezes em que estiveram próximos. Era incrível como aquele homem estava sempre presente nos momentos cruciais de sua vida, inclusive quando fora presa. Naquela ocasião, ele estava ao seu lado, ela pôde vê-lo nitidamente, apesar de que, daquela vez ele não exibia seu belo sorriso.
Encarou-o à porta do presídio e ganhou o sorriso enigmático, que durante as visitas à prisão não parecia tão satisfeito. Suas visitas, na verdade, destinavam-se praticamente a dar-lhe instruções. Preciosas instruções.
À frente do presídio, não trocaram palavras, não era necessário. Apenas começaram a caminhar lado a lado pela rua ensolarada, sem um pé de nada, sem calçamento, sem limpeza, sem beleza. A beleza daquela tarde era essa caminhada, era o vento quente balançando seus cabelos ensebados, era respirar um ar mais puro, era ver e sentir a luz do dia por inteiro depois de tanto tempo.
Em silêncio, rapidamente chegaram à encruzilhada da estrada vicinal, que daria para a rodovia principal, após alguns quilômetros. Ele a encarou com aquele mesmo olhar, que ela decifrou facilmente: “que lado vamos tomar”?
Ela, sem pensar muito, decidiu ir para a direita. Ele ficou parado, parecia pensativo. Demorou um pouco, mas depois a seguiu. Não caminhavam mais lado a lado, ele ia ligeiramente atrás. O único lugar que ela tinha para ir era a casa do pai e certamente ele a acompanharia até lá. Teria um longo caminho, não tinha dinheiro para o ônibus, mas sentia que deveria ir ao encontro do que restou de sua família. Talvez arranjasse uma carona.
Surpresa das surpresas, ao passar pelo ponto de ônibus, viu seu pai sentado ali, como se a esperasse. Secamente, ele perguntou:
— Onde está aquele rapaz que fez questão de te buscar?
Ela olhou pra trás e ele já não a acompanhava. Respondeu ao pai, simplesmente:
— Seguiu seu caminho, eu segui o meu.
Ficaram sentados no ponto, não conversaram, apenas esperaram quarenta minutos até que o ônibus passasse. Ela nada tinha a contar ao pai e ele parecia ter vergonha dela, não queria saber. Entraram no ônibus e seu pai fez que não a conhecia, pagou as passagens discretamente e tratou de sentar-se numa poltrona ao lado de uma senhora que dormia com a boca aberta.
Ela, sem muitas opções, sentou-se três poltronas à frente, ao lado de um rapaz que lia a bíblia. Ele interrompeu a leitura, levantou os olhos e a encarou. Aquele olhar... Era o mesmo olhar de seu protetor. Sim! Havia o enigma, a mesma força vinda de dentro daqueles olhos. Seus cabelos tinham um cheiro forte, não muito agradável, mas eram lindos. O rosto, belíssimo, era emoldurado pelas malcheirosas, mas bonitas madeixas. Ficou olhando o rapaz ao lado, enquanto ele se revezava entre a bíblia e os olhares profundos em sua direção. Finalmente, ele fechou o livro e num impulso de pregação que só os crentes têm, segurou a mão da recém-chegada.
— Vou te levar para o melhor lugar desse mundo, mas antes preciso de uma promessa.
— E quem disse que eu quero ir?
— Você quer, sim. Qualquer um sabe que você nunca quis essa vida miserável. É só fazer a coisa certa, que tudo mudará daqui pra frente. E a primeira coisa certa a ser feita é a promessa.
Sem saber o que fazer, ela olhou para trás e não viu mais o pai. Olhou pela janela do ônibus e não compreendeu onde estava, que lugar era aquele onde o ônibus passava. Havia cochilado? Havia sonhado aquelas palavras? Pela janela, viu as luzes intermitentes da polícia passarem pelo ônibus, que reduziu a velocidade até parar. Antes que os policiais entrassem, sem pensar muito, mas encarando francamente aqueles olhos penetrantes, ela disse:
— Prometo! Prometo o que quiser, mas não deixe que me levem.
— Fique tranquila, quem te levará sou eu.
— Afinal, quem é você?
— Eu sou – e sorriu lindamente. O mesmo hálito conhecido, repugnante.
Naquele instante, ela sentiu tudo ao seu redor arder. Em meio àquela sensação de ardência, viu ao seu lado, por entre as chamas, o seu protetor e seu olhar profundo, seu sorriso inteiro, enigmático. Precisava saber mais dele.
— De onde te conheço?
— Desde sempre. Não se lembra?
Aquele olhar! Lembrou-se da mãe que a abandonara quando ela ainda carregava alguma inocência. Saiu para trabalhar e nunca mais voltou.
— E o dia em que te violentei, depois de te dar um remedinho? Não era isso o que procurava? Alívio? Você devia ter uns 13, 14 anos.
As chamas ao seu redor cresciam. Quis sair, mas não conseguia, parecia presa àquela poltrona. Olhou para a rua e viu seu pai, do lado de fora do ônibus. Ele continuava:
— Na hora em que você matou a riquinha sequestrada, eu estava lá. Quando foi presa pelo assassinato, eu estava ao seu lado. Não se lembra?
Quase sem forças, fez que sim com a cabeça. Daquilo ela se lembrava nitidamente.
As luzes intermitentes dos bombeiros chegavam fazendo algazarra com as sirenes. Dentro do ônibus, ela, a fumaça, as chamas e aquele moço, que sorria, enquanto lhe dizia:
— Olhe ao seu redor, contemple sua obra final. A fuga do presídio, o sequestro do ônibus, essas chamas. As almas deploráveis que morrem carbonizadas. Eu sei que você já não sente mais a dor do abandono, nem a dor do estupro, nem a aflição do presídio. Não sente o alívio da picada, nem a violência da polícia. Você foi fiel à sua promessa até o fim. Você e sua alma agora me pertencem.