O DIA

Chegou o dia. Todos os anjos designados para ele estavam eufóricos. Tinham esperado anos por esta data, trabalhado duro, aguentado muita coisa. As diretrizes da Chefia haviam finalmente chegado! Apesar da alegria geral não houve nenhuma comemoração. O plano todo era incrivelmente complexo e exigia uma execução perfeita.

Ele olhou para a esposa e a filha que dormiam um sono pesado. Em vinte minutos o despertador iria tocar, acabando com qualquer possibilidade de escolha. Se preparar, levar sua princesa à escola e depois a mulher ao trabalho. Será que hoje conseguiria ir para o emprego? Fazia mais de 20 dias que não aparecia na delegacia. Como ainda não tinham entrado em contato com sua esposa ou vindo atrás dele? Será que já entraram com o processo de exoneração? Provável. Tinha que procurar um médico, alguma coisa. Mas travava também. Falar para outro o que não conseguia explicar nem para si mesmo? Só de pensar seu estômago se retorcia e um frio medonho lhe subia pela espinha. Levantou-se e foi até a sala. Na estante, ao lado de sua pasta de trabalho, repousava uma Bíblia. Em um arroubo, aproveitando que não havia ninguém mais acordado, ajoelhou-se em frente da poltrona. Tentou orar, mas não conseguiu falar nada, pensar em nada. Levantou-se e a abriu a esmo. Caiu no livro de Isaias, cap 55. Quando ia iniciar a leitura sentiu uma presença:

-Algum problema Amor?

-Não, Querida, nenhum. Acordei mais cedo só. Escondeu rapidamente a Bíblia. Não queria outra discussão sobre hipocrisia ou ver aquele olhar de esperança que sabia que seria destruído.

Finalmente a batalha começava. O adversário começou com um lance clássico de incentivo à desesperança. Logo de cara uma falha de reconhecimento, o ataque foi mais fraco que o imaginado. Tiveram que recuar muito dos emissários e esperar para ver se o outro lado não percebia o movimento. Se imaginassem que hoje era o dia atacariam com tudo. Mas permaneceram relativamente calmos. Também o pobre filho de Adão estava tão perdido que tinham que contá-lo quase como um aliado dos adversários. O importante era que abrisse a Bíblia. Todos os movimentos, todo o trabalho de vários dias tinham este propósito. Involuntariamente veio ao anjo coordenador da equipe a imagem de um peixe em um anzol. Sim, essa alma era a sua pesca!

Assim que se despediu da esposa o estômago começou a revirar. Sabia para onde iria. O carro foi praticamente sozinho para a biqueira. Cinco pedras, cinco pinos de cocaína e uma garrafa de vodka. Depois foi para a mesma casa que já estava indo faz alguns dias. E que conhecia a anos. Lá dentro a mesma sujeira de sempre. O dono deitado na cama com uma nova viciada, outras rodando pelo ambiente e um traficantezinho do bairro. Sentiu imenso nojo de si mesmo. Bem que podia ter alguém interessante o suficiente para valer uma batida enquanto estivesse ali e lhe levar preso. "Quanta resignação... Hipócrita!" Sabia que logo depois do primeiro pega já ia entrar em paranoia e imaginar a Corregedoria descendo de helicóptero no telhado. Todas aqueles pensamentos persecutórios. Que vontade de sumir. De morrer. Tomou um enorme gole da bebida.

Corriam de um lado para o outro tentando deixá-lo pronto e preparado. A briga estava boa. O outro lado já tinha percebido que alguma coisa estava diferente e atacavam com tudo. A garantia do sucesso era que o plano vinha direto da Chefia e com alta prioridade. Por causa da ordem de serviço especial emitida por Ele conseguiram evitar um acidente de carro, a ida de uma mulher específica para a casa de "usar drogas" e a overdose de um deles. Isso requeria muita comunicação com outros esquadrões. Se não desse certo estariam encrencados:

-Como está o nível de culpa?

-Altíssimo, sr. Eles perceberam que era nossa intenção e pararam de incentivá-la. Tivemos que assumir esta parte. Na verdade, estão atacando a parte da libido. Recebemos informações que conseguiram convocar a menina com quem ele fornicou semana passada.

-Mas ele está muito drogado. Será que ela pode influir em alguma coisa?

-Eu recomendo não arriscar, coordenador. A mulher costuma vir com uma especialista deles neste assunto, a Pomba Gira.

-Porcaria! Preparem-se para tirá-lo de lá imediatamente.

-Mas ele ainda não está pronto.

-O plano é de alta prioridade. Quebrem o protocolo! Podem esquecer a sugestão e tomem a consciência dele. Carreguem-no até o objetivo.

Como conseguira sair de lá? Apesar de estar muito louco lembrava-se de todos os seus movimentos. Apenas não os entendia. Levantou-se, saiu, pegou o carro e já dirigia há uns trinta minutos. Onde queria chegar? Na verdade, onde poderia ir? De novo foi invadido pela ideia de soltar o cinto de segurança e enfiar o veículo em um poste. Chegou a colocar a mão na trava quando percebeu que rodava pela vizinhança da sua antiga igreja. Riu e começou a chorar logo em seguida. Aquele era o dia da semana em que tinha culto à tarde. Mas, não conseguia nem olhar para ela, quanto mais entrar. Mentira, traíra, ameaçara, roubara, magoara tantas pessoas que perdera a conta. Matara... Fora arrogante, pretensioso. Mesmo depois de tudo o que Deus fizera por ele! Mas tinha tanta saudade daquela paz. Tanta saudade! Afinal de contas, sempre ia muita gente neste dia. Tantos para Ele falar, que valiam a pena. Ele podia apenas ficar ali, sentir um pouco daquilo de novo.

A igreja parecia muito maior do que se lembrava. Não ia lá há anos. Chegou bem na hora da leitura do capítulo da Bíblia:

-Com a ajuda de Deus vamos ler o livro de Isaías, capítulo 55...

Tentou acompanhar a leitura, mas as lágrimas impediam. Ficou apenas ouvindo, entendendo apenas algumas passagens.

"...Porque gastais seu dinheiro naquilo que não é pão? E o fruto de seu trabalho naquilo que não pode satisfazer?...Inclinai os vossos ouvidos e vinde a Mim. Ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei um concerto eterno... Deixe o ímpio o seu caminho... torne para o nosso Deus, porque Ele é grandiosíssimo em perdoar... Porque os Meus pensamentos não são os vossos pensamentos... Assim será a palavra que sair da Minha boca; ela não voltará para mim vazia. Mas sim fará o que Me apraz..."

O sermão durou quarenta minutos. Não escutou mais nada, apenas chorou. Sabia lá no fundo do seu ser que nada seria como antes.

Entre os anjos a festa era geral. Todos os responsáveis por ele estavam eufóricos. Relembravam as outras vezes que pensavam que seria o dia e não foram. As aparentes derrotas. De repente o único que tinha sido deixado de sobreaviso dá um alarme de que o inimigo havia lançado um grande ataque. O coordenador logo tratou de acalmá-lo:

-É sua primeira conversão, não é? Ele está seguro. A Chefia não autorizou que fizessem nada com ele. Seu coração é outro. Foi transformado pela Palavra. Agora a gente só faz a segurança...

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 12/06/2016
Reeditado em 17/08/2024
Código do texto: T5664864
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