Soldado do império (01)
Recordo claramente: foi mais uma batalha campal; estou sentando descansando os braços, em meio a centenas de cadáveres e feridos que sangram e gemem. Nossa legião acabou de derrotar o exército inimigo e o general já vai longe, prestes a tomar a pequena cidade bárbara, mais uma entre milhares. Os escudos da vanguarda formam uma parede à frente e ouve-se longe o rumor da sua marcha. Quando entrarem na cidade, vão matar os velhos, estuprar as mulheres, esbofetear as crianças, saquear, atear fogo nas casas que não lhes interessarem ocupar.
Caminho pelo campo, cuidando para não tropeçar nos cadáveres de companheiros e inimigos mortos. Recordo minha infância, quando brincava de luta com espadas de madeira. Eu era menino e corria nas vielas que serpenteavam entre as ínsulas do campo de marte, em zigue-zague entre os adultos que se moviam pelas ruas ou que trabalhavam nas oficinas sem prestar atenção nas crianças. Ouvia com atenção as palestras dos pedagogos e meu sonho era ser um soldado do império, forte como um leão, veloz como um cavalo, fulminante como uma águia, letal como uma víbora. Era ainda um adolescente quando ingressei na carreira militar e ouvi as instruções que tornariam realidade o meu sonho de menino. Nessa época pela primeira vez ouvi conversas de censura ao rei. Eram sussurros de condenação à desmesurada ambição do rei. Ele formava exércitos para destruir os povos vizinhos e tomar as suas terras. Ele dizia que era necessário manter os inimigos subjugados, para garantir a segurança de nosso reino, mas não havia real necessidade disso.
Os comentários circulavam quase em silêncio, primeiramente no recôndito dos dormitórios, depois em breves conversas entre colegas de mútua confiança, com o tempo em pequenas rodas de conversa, nas horas de descanso. Éramos constantemente transferidos de uma legião para outra, e assim ficávamos sem nossos amigos de uma hora para outra. Algum tempo depois passei a ouvir palavras de condenação à política do rei. Ninguém confiava em mim, eu não podia confiar em qualquer companheiro.
Ao longo de quinze anos, ou mais, participei de incontáveis batalhas, e sempre derrotamos os inimigos. Somos fortes como leões, velozes como cavalos, fulminantes como águias, letais como víboras. Os limites do império já não cabem nos mapas, de tanto que expandiram, e as batalhas são travadas cada vez mais longe de casa. Há vários anos vivo exclusivamente em terras conquistadas muito distantes do reino, porque não compensa o esforço de ir para casa e retornar para a próxima campanha. Estou cansado, e cada vez mais fortes e frequentes vibram em meus pensamentos as palavras de censura ao rei. Sinto agora o quanto é absurdo destruir povos que não constituem real perigo à segurança do nosso reino. Cada vez mais vívidos, recordo os rostos dos inimigos mortos, contraídos de dor, quando os atingi com meu gládio ou minha lança. Cada vez mais tristes são as recordações dos olhares das mulheres que estuprei, das crianças que esbofeteei, dos velhos que sacrifiquei em nome do rei. Durante muitos anos meu coração foi duro, mas agora a saudade de casa torna triste tudo quanto habita minha memória.
Súbito, um guerreiro inimigo coloca-se à minha frente e interrompe meus pensamentos. Em posição de guarda, ele pretende enfrentar-me, mesmo sabendo que seria derrotado. Olho-o nos olhos e ergo a mão direita vazia, em sinal de que não aceito o desafio de lutar. Saia da minha frente, por favor, eu digo em pensamento. Ele parece confuso com minha atitude. Mostro a mão esquerda, para ele perceber que não carrego nenhuma arma, e sigo caminhando em frente, indiferente ao guerreiro inimigo. Desconcertado, ele também larga seu gládio e começa a caminhar ao meu lado, em silêncio.
Súbito, sinto uma dor lancinante nas costas. Procuro compreender o que aconteceu, mas a visão turva-se e sinto meus joelhos dobrando-se. Vagarosamente recobro a consciência, mas em torno de mim a luz do dia se tornou cor de prata, e eu posso enxergar nitidamente vários quilômetros ao redor de mim. As árvores não têm cores, tudo é cor de cinza e de chumbo, como no momento que precede uma grande tempestade. Aos meus pés está caído um soldado do império, com uma flecha nas costas. Ao seu lado, com uma flecha no peito, está o guerreiro que me enfrentava. Tenho a estranha sensação de conher aquele soldado aos meus pés. A flecha é de um arqueiro do império. O corpo é meu. Algum companheiro matou-me.
Antes que meus pensamentos comecem a fazer sentido, sinto falta de peso e começo a flutuar. Eu sei: estou morto. Só não entendo porque ainda estou vivo. Estou a caminho do Hades. Olho em volta e vejo a vastidão do campo de batalha, e calculo quatro ou cinco mil mortos, a maioria soldados inimigos. Vejo milhares de soldados flutuando como eu, mas não nos comunicamos uns com os outros. Cada um cuida de seus próprios pensamentos. Penso nos tempos de infância vividos na periferia da capital, onde nasci e cresci, e desejo intensamente retornar ao lar, para me despedir dos meus pais, se estiverem ainda vivos, dos irmãos e dos amigos de infância. Mas um vento estranho não me permitia prosseguir. Eu era compelido a caminhar na direção de um horizonte muito, muito iluminado.