LÍDIA
I
Eu escutava muitas vozes dentro de mim. Todas ao mesmo tempo, dizendo coisas que não conseguia entender inteiramente. Sabia que cada uma delas era um pedaço do meu eu. Eles estavam em desacordo e não paravam de gritar, berrar e protestar contra uma serie de coisas, Cada um a sua maneira detestava a vida.
Era absurda aquela situação. Mas eu não conseguia fazer aquilo parar. Aos poucos o mundo ia perdendo a realidade para mim e me tornava incapaz de lidar com as pessoas, com as situações cotidianas. Apenas Lídia permanecia próxima de mim aturando meus silêncios e recusas de mundo. Não sei como seria sem ela. Lídia era minha única ligação com a realidade. Mas me sentia um fardo na vida dela. Queria que a coitada fosse embora para ser feliz bem longe de mim. Ela merecia uma existência diferente daquela que eu podia oferecer.
Em uma manhã de outono de domingo ela me levou para passear. Eu preferia ficar em casa enterrado em mim mesmo. Mas ela insistiu até me fazer declinar da minha veemente recusa. Saímos bem cedo e ela dirigiu por longas horas até chegarmos a um lugar paradisíaco. Era um bosque onde o verde parecia entrar nos olhos da gente e nos arrastar para a natureza, para uma espécie de comunhão com o mundo vegetal.
As vozes dentro da minha cabeça ficaram mais agitadas. Pareciam querer alertar para algum tipo de perigo ou ameaça. Mas não entendia direito...
Lídia me falou coisas sobre aquele lugar. Dizia que coisas estranhas haviam acontecido ali. Mortes, orgias e histórias de amor que permaneceram invisíveis a memória social por longos anos. Mas era possível sentir a força daquele bosque.
Segundo Lídia, estávamos em um espaço magico que nos fazia sentir o quando a vida é maravilhosamente absurda na falta de sentido de tudo. Eu concordava com ela. Nos beijamos de repente. E as vozes não paravam dentro da minha cabeça... Mas eu sentia os lábios macios de Lídia, sua língua dançando com a minha e isso era mais importante que tudo. Como nunca antes eu me dava conta do quanto gostava de Lídia, do modo intenso como ela era importante para mim.
Isso era o que mais importava na vida. Não se sentir sozinho, se importar com alguém, ter alguém que se importe. Os seres humanos são muito carentes, não se bastam, não sabem viver sozinhos. Mas as vozes diziam o contrario... Elas estavam muito agitadas hoje e me deixavam confuso.
Lídia estava na minha vida a tanto tempo que não conseguia lembrar do dia em que nos conhecemos. Ela era a única pessoa da qual me lembrava na vida. Ninguém mais tinha lugar nos meus dias. Vivíamos um para o outro.
Aquele lugar era realmente mágico... Lídia estava linda. Mas... de repente percebi que ela parecia triste. Interroguei-a sobre o motivo. Mas ela não me respondeu. As vozes aumentaram.
Porque ela não queria me dizer? Provavelmente o problema era eu. Só poderia ser eu! Meu modo de viver estragava a vida dela. Sempre soube disso. Aquelas vozes... Malditas vozes!!!!! Me desculpei com Lídia. Disse o quanto ela era importante para mim, mas o que mais me importava era a felicidade dela. Não suportava vê-la sofrer. Ela, entretanto, me isentava de qualquer responsabilidade.
Diga meu mundo
Enquanto ainda te escuto
Sem saber a tristeza do meu rosto.
Tudo que somos é uma ilusão
Mais verdadeira do que a realidade.
Quando ela me disse estes versos não entendi seu significado. Éramos toda a realidade. Não havia nenhuma ilusão entre nós....
Então as vozes gritaram em uníssono em um tom de trovão:
-Mentiras, mentiras, mentiras!
Tudo que existe é uma mentira!
Acreditam todos no que não existe
Acreditando desesperadamente
Nas mentiras que os tornam possíveis.
Eu exigi que elas se calassem. Mas elas repetiram aquelas palavras, uma, duas e não sei lá quantas mais vezes! Malditas vozes! Porque não me deixam??!!!
Mas algo começou a acontecer com Lídia... Ela estava desaparecendo... Ela se tornava translucida bem diante dos meus olhos. Aquilo era absurdo. Mas estava acontecendo. Mal podia acreditar naquilo. Que maluquice era aquela. Foi quando ela me disse aos prantos aquela frase insólita:
-Você me ama porque eu nunca existi...
-Não... Como pode ser?!Lídia...
As vozes pararam. Nunca tinha sentido tamanho silêncio dentro da minha cabeça... Eu finalmente estava vazio das vozes e Lídia... Lídia havia desaparecido. Talvez as vozes sempre tenham tentado me falar sobre Lídia... Mas era tudo absurdo demais. Agora sem as vozes eu era eu ... Apenas eu na soma de todos os meus eus. Sem Lídia...
Queria desaparecer também; ir ao encontro de Lídia. Em algum lugar dentro do “desaparecimento” nos reencontraremos. Foi por isso que morri logo depois... Mas agora estou aqui amarrado em uma maca em um quarto de hospital. Eles roubaram minha morte, me afastaram de Lídia... Não me deixarei enganar. Não estou aqui agora. Aqui não é real. Estou em outro lugar. Estou com Lídia; preciso me concentrar. ..
II
Acordei de repente nesta praia deserta. O sol estava forte.
Lídia me falava coisas sobre o significado da vida. Segundo ela, a vida existe apenas como um fato psíquico. Ela acontece na medida em que temos consciência dela, em que a vivemos como uma predisposição mental. Os animais não sabem que estão vivos e, muito menos, que vão morrer um dia. O mundo não existe para ele como um fato complexo e dinâmico imbuído de significado. Apenas nós humanos vivemos significados. Não conseguia deixar de prestar atenção em seu rosto, me embriagava o conforto da sua voz macia. Não me preocupava com o sentido da vida. Para mim o significado de tudo era Lídia.
Mas não estávamos sozinhos. Havia mais alguém naquela praia. Eu podia sentir. Olhava em volta, estudava todos os cantos dentro do meu ângulo de visão e, surpreendentemente, não via ninguém. Mas sabia que não estávamos sozinhos.
Lídia se afastou de mim por um instante. Quis dar um mergulho. Pensei em acompanha-la , mas minhas pernas não me obedeciam, qualquer inercia me manteve ali sentado na areia observando Lídia em trajes de banho. Ela estava mais linda do que nunca. Mas eu não me lembrava de quando tínhamos nos conhecido, de como ela entrou na minha vida. No fundo isso pouco importava.
Foi então que aquela senhora estranha de olhos azuis de ressaca apareceu ao meu lado e começou a falar coisas estranhas.
Raso é o finito no falso abstrato de todo infinito.
A existência é ilegível e insignificante.
Todo cotidiano uma fantasia tola
Em nossas ilusões coletivas.
Deixe de ser tolo,
De acreditar em alguma coisa.
Inventa lucidamente sua ilusão derradeira.
A vida passa mais rápido do que você pensa.
Assim ela me falou da vida . Mas não entendi. Não queria entender. Não valia a pena saber. Toda certeza é uma fantasia que inventamos para suportar a mera existência. Apenas Lídia era real... Lídia... Ela era minha religião.