Mais um dia

Fumaça. Dos canos dos veículos, do cigarro do cidadão ao lado, do asfalto em chamas, do cérebro. Vapor, gases, calor, fumaça. Sol forte, tempo nublado, ambiente esfumaçado, clima seco. A besta não podia parar, e ela não parava. O capitalismo acabou, o rock não acabou. Afinal, é certo que o diabo toca tambor desde o início dos tempos. O capitalismo acabou, mas a besta não iria parar, não até que não estivesse determinada a tal. Pessoas sisudas, seguindo autômatas rumo a seus empregos. Atmosfera de terror urbano, luz do dia. Luz do sol. Esfumaçado.

Pigarreava. Por conta do clima seco, da combustão. Por conta do cigarro não fumado, mas que ali estava. Estavam a sua volta, escondidos entre janelas e terraços, com suas armas. Armas psicotrônicas que lhe eram apontadas. Tiro certeiro atingiria sua cabeça, em cheio, a qualquer instante. Um comando tocaria em seu microchip e o faria pular na frente de algum caminhão desenfreado, sem chances para milagres. E não haveria sequer um anjo com quem pudesse lutar para mudar sua sorte.

‘Isso é coisa da sua cabeça’, dir-lhe-ia Rafael. Não. Rafael não era seu anjo da guarda, mas tão somente um colega de trabalho cuja voz esganiçada fazia com que passasse horas e horas pensando em como jogá-lo pela janela para o não ouvir mais.

‘Você devia procurar ajuda médica’. Achava que devia procurar a polícia. Mas a polícia estava com eles, todos estavam. Todos se venderam. O mundo estava perdido. Alguma substância alienígena havia tomado as consciências e, agora, todos tinham o mesmo intento. Exceto ele. Daí a necessidade de ser exterminado.

Ou seria tudo um pesadelo? Precisava acordar, então. Ou iria buscar um pouco daquela substância. O que estava pensando, afinal? Estaria, de fato, enlouquecendo? Ouvia cachorros latindo, à noite. Não havia, no entanto, cachorros em sua vizinhança. Procurou se recordar se sempre fora assim. Onde não haveria cachorros, por acaso? Eis aí o símbolo, a prova irrefutável de que havia, sem sombra de dúvidas, algo errado.

Às vezes, dava mesmo vontade de correr e pular em frente a algum caminhão desenfreado e acabar com aquela angústia. Mas não. Não queria parecer louco. Precisava se comportar, parecer normal. Até na hora da morte. Poderia não ser o último. Poderia haver outros sete mil além dele, os quais não deveriam vê-lo se entregar assim. Era um exemplo a ser seguido, e, como exemplo, decidiu parecer com os demais.

Exalar aquela fumaça não era tão ruim, afinal.

Ouviu dizer que havia imagens de cidades nos céus de algum lugar. Ouviu que extraterrestres foram vistos em outro. Leu a respeito de mosquitos geneticamente modificados, e que havia agora uma grande indústria em torno deste inovador negócio. Mosquitos que destruiriam outros mosquitos e se tornariam, enfim, os únicos. Únicos a nos picar. Uma picada distinta, geneticamente modificada.

Ouviu dizer que jogavam inseticidas na água que bebia. Ouviu que toda a música não era mais inspirada, mas fabricada por máquinas virtuais. Leu a respeito de uma peste que agora infestava todo o leste europeu e que era o desespero das meninas por lá. Peste bulbônica, talvez. Modificada? Ideologias também poderiam ser geneticamente modificadas? O que era uma ideologia, afinal? Uma peça em um jogo de xadrez. Hoje é uma coisa, mas amanhã tem outro posicionamento, e, então, significa algo diferente. "How de west was won", diria um p(r)o(f)eta.

‘Nossa religião prega o amor’, diria um imigrante que vivera na localidade há muitos anos, com forte sotaque de ventos do leste e do qual possuía vaga recordação. ‘Practice what you preach’, era o metal pesado da banda californiana Testament, que não cansava de ouvir quando tinha seus dezoito. Ouvia música clássica agora, que havia chegado aos enta. Entretanto, jamais conseguiu esquecer aquela batida nervosa.

Leu em algum lugar, ou ouviu, ou viu um vídeo a respeito, com muita dificuldade, por conta de seu inglês meia-bomba. Leu, enfim, ou ouviu, ou viu, que seja, viu,... Escolhamos o verbo ver. Sejamos sinceros. Hoje em dia, quem lê tanto assim? Então, fica assim: Viu em algum lugar. Porém, para que não fique muito rude, possamos englobar todos os outros em simplesmente ver, o que será utilizado a partir de então. Ver, leia-se: ver, ouvir, ler, etc. É melhor.

Então, viu que o dinheiro iria deixar de existir. Todos ficaríamos felizes de viver em alguma aldeia global. E, para tanto, receberíamos uma marca, na mão direita ou na testa, e, com ela, seria possível comprar tudo o que fosse possível. Até mesmo chocolate...

... Desde que não houvesse racionamento...

Viu que viveríamos todos em paz, sorrindo como animadores de auditório, ou como dançarinas que têm que rir das inspiradíssimas piadas meia-bomba do chefe (ou seriam as piadas do chefe meia-bomba?). Todos, entretanto, empregados da pirâmide, e a besta não pode parar.

Rock’n roll is not dead. O diabo toca tambor, desde o início. Não se iluda, não há nada de novo debaixo do sol. Crescera ouvindo, lendo, vendo, aprendendo esse tipo de idéias de meia dúzia de professores papo-cabeça que, por sua vez, cresceram acreditando que o comunismo era a salvação da humanidade. Nenhum deles tinha vivido em uma nação comuna, mas tinham lido muito a respeito. Os tempos passaram, a esquerda chegou, e as almas conscientes hoje compreendem que não faz a menor diferença se esquerda ou direita é quem está no comando.

“Vire sua metralhadora pra lá”. O amigo Estadão estava tirando uma soneca, sono leve, com certeza. Suficiente para ouvir tais contemplações. Não que eu as dissesse em voz alta, porém, o Estadão roga para si a fama de onisciente. Vejam só. Depois de tudo, até isso. Virei-me e olhei para ele e o vi ali, totalmente displicente, sonolento, desarrumado. Compreendi que essa era uma tendência. Todos os Estados atuais se encontram assim. Não há ordem, não há ordem. Apenas desordem. Apenas o caos. Recordei-me de que, há trinta anos, debatia na escola sobre o sistema e sobre a necessidade de parar no ermo em lugar de seguir desenfreado rumo ao inferno. Debate inútil. Os donos do poder sabiam bem para onde iam, eles sempre sabem. O inferno, para eles, seria um bom negócio. Eram negociantes por lá, tinham feito pacto com o próprio diabo e arregimentavam bilhões de almas incautas. Já tinham comprado seus terrenos no inferno e arregimentado fundos para seus negócios.

“Refugie-se aqui”, dizia uma placa ao lado da entrada de um cinema abandonado. Não era para tanto, pensou. No entanto, resolveu entrar e ver do que se tratava.

“Faltam apenas alguns segundos para o início do ritual”, falou a moça simpática com pouco menos de trinta anos, vestindo um uniforme azul com gravatinha. Lembrou-se vagamente das meninas da escola. Não, elas não usavam uniformes assim, mas era assim que as novelas as apresentavam, novelas as quais todos tinham que assistir por conta da mais absoluta falta de opção, antes do advento da internet.

Poucos segundos depois, se iniciou o ritual. Todos se levantaram enquanto um homenzinho vestido com um terno cinza se encaminhava para o púlpito. ‘Todos de pé’, ele disse. Enquanto isso, todos se entreolhavam e repartiam sorrisos e abraços amistosos, após o que o homenzinho concitou-os: ‘abracem-se, sorriam uns para os outros’. E, então, todos se sentaram. O homenzinho ajeitou os óculos e abriu um livro. Após o que pediu a todos que se sentassem.

Iniciou a leitura de algumas palavras que, em verdade, faziam algum sentido, mas não para ele, que ali se encontrava pela primeira vez e tinha perdido o bonde. Foi quando resolveu se levantar, exatamente no momento em que reconhecia que alguma coisa do que ouvia começava a se encaixar, mas que a impaciência falava mais alto. Nesse momento, todos se levantaram e foram embora também, após o que o homenzinho lhes ordenou que se levantassem e fossem embora, já que a sessão havia se acabado.

Do lado de fora, ele viu tudo diferente. Havia mais cor nas ruas, o céu parecia mais limpo, o ar mais puro. Viu crianças brincando nas calçadas enquanto bolinhas de sabão empesteavam a atmosfera. A paz, finalmente, foi interrompida por um sujeito maltrapilho que esbarrou e disse:

- Passe a carteira... e o relógio.

E ele entregou a carteira e o relógio. Pouco depois, reparou que o homem não estava armado.

- Tá vendo isso aqui?

Mostrou-lhe um revólver trinta e oito e deu um sorriso, após o que foi embora, levando seus pertences.

João foi para casa. Resolveu deixar tudo pra lá. Na carteira havia apenas alguma mixaria. O relógio era falso e os documentos eram apenas cópias, os originais ficavam sempre em casa. Tomou um banho e sentou no sofá. Descansou um pouco. Encheu uma taça de vinho seco que passou a comprar, depois que uma revista informou que aquela marca era segura, já que era a única que não possuía anidrido sulfúrico. Bebeu feliz, já que não seria envenenado pelo sistema, ao menos naquele momento de descanso. Olhou para a janela do lado de fora, o entardecer avermelhado, promessa de dia quente amanhã. Pensou nas coisas ocorridas ao longo do dia, as quais eternamente se repetiam. Tentou encontrar um sentido para tudo. Devia se casar, ter filhos? Em que mundo eles viveriam? Esse pensamento não seria anticristão? E se estivéssemos próximos do fim do mundo?

Resolveu ligar a rádio preferida na web e ouvir seus lounges. O vinho se encarregaria do restante.

Amanhã, tudo começaria novamente.

Daniel A Vianna
Enviado por Daniel A Vianna em 31/03/2016
Reeditado em 06/04/2017
Código do texto: T5591035
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.