Palavras Mortais
Um tímido raio de sol, passando por uma pequena fresta da janela, insistia em diminuir a penumbra do quarto. Ele permaneceu alguns minutos deitado, observando o movimento irregular das partículas de poeira banhadas pelo feixe de luz. Sentou-se na cama sonolento, e sentiu algo frio e irregular sob os pés. Ergueu o pé assustado. Um besouro? Não, não se movia. Olhou melhor, parecia um arame preto retorcido. Parado, ali no chão gelado, uma palavra. Sim, uma palavra, mais especificamente a palavra “ávido”. Sem pensar mais na palavra ele levantou-se e dirigiu-se ao banheiro onde demorou alguns minutos com sua higiene pessoal e quando voltou, ali continuava, o “ávido” no chão. É uma palavra simpática, em suas escritas ele sempre gostou de proparoxítonas, que aliás também é uma proparoxítona. Pegou delicadamente aquela pequena palavra, com o cuidado de quem carrega um cristal fino e depositou-a no balcão do banheiro. Enquanto se vestia repassava mentalmente os afazeres do dia. Nada especial. Não costumava se alimentar de manhã, nada além de uma xícara de café puro.
Café. A bebida eleita dos escritores e literatos. E como seus pares, Alberto a tinha como sua bebida predileta. Mas era apenas nesse pormenor que ele os acompanhava. No mais, como ele mesmo se descrevia, era um homem normal. Sempre foi estranho responder que era escritor quando lhe perguntavam sua profissão, os olhares eram como se estivessem vendo um bicho raro. Para sua defesa, vestia-se em conformidade com seus 35 anos, nada de capas pretas ou grande barba. Adorava jeans e camiseta como qualquer jovem. E suas corridas da tarde, embora muitos pensassem que era pelo viés de vida saudável, era na verdade o período em que tinha suas melhores ideias e inspirações.
Após a xicara de café, já bem acordado, sentou-se na escrivaninha e retomou o trabalho do dia anterior, um conto pela metade, que já vinha se arrastando a dias sem inspiração para o seu final. E para sua surpresa, o “ávido” encaixava como uma luva na frase inacabada. E a partir desse momento tudo fluiu. Em menos de uma hora, estava terminado. Ele recostou-se na cadeira, espreguiçou, olhando o conto terminado com uma enorme satisfação. Seu dia correu sem contratempos. Precisou sair para resolver alguns assuntos pendentes no banco, escreveu um pouco mais, à tarde, quando cansou, fechou o note e retornou à leitura iniciada há alguns dias de um clássico de Maugham. E quando voltou ao quarto, já passando das 23h, notou que a palavra sumira. Não estava mais no balcão onde fora deixada. O sono veio rápido enquanto pensava na palavra e quão bem se encaixou na sua narrativa.
Acordou com a dificuldade habitual. O sono matinal é sempre o melhor. Mal levantou a cabeça já reparou um borrão negro contrastando com o chão de pisos brancos. Despertou rapidamente e num pulo estava fora da cama. No canto do quarto, um amontoado escuro. Com cuidado separou as palavras que formavam o emaranhado. Agora eram cinco. “Caluda, falácia, íncubo, vetustez e ostracismo”. Tentou sem sucesso achar uma ligação entre as palavras e a do dia anterior. Como na manhã antecedente, recolheu as palavras e depositou-as no balcão do banheiro. Agora sua curiosidade foi aguçada. O que seriam aquelas palavras? Pareciam de metal, mas tinham uma certa flexibilidade. Porque apareciam assim em seu quarto? Claro que não falaria isso a ninguém, seria sem dúvidas chamado de louco. Diferente dos dias anteriores, desenvolveu seu trabalho de forma muito satisfatória. Ideias, palavras, vinham a sua mente quase ordenadas. Por não deixar de pensar incessantemente nas palavras encontradas de manhã, acabou usando quatro delas em sua escritas. Só não encaixou íncubo. E quando voltou ao quarto para dormir, na pia do banheiro estava a palavra íncubo. As quatro usadas nos escritos sumiram. Não fazia sentido, mas começava a aparecer um padrão. A palavra usada sumia. Faria o teste na manhã seguinte. Usaria íncubo e veria o resultado. Nessa noite demorou a dormir. O pensamento vagava, hipóteses absurdas iam e vinham, até que, quase duas horas depois seus olhos se fecharam.
Na manhã seguinte, o primeiro raio de luz encontrou-o desperto. Assustado. Sentado na cama, olhando atônito, sem esboçar reação. O chão do quarto esta preto. Um tapete de palavras negras cobrindo todo o quarto. Deviam haver milhares de palavras ali. Seguindo a proporção geométrica do aumento das palavras, no seu próximo despertar estaria sufocado pelas palavras. Elas estariam inundando seu quarto, abarrotando até o teto. Olhando para a bancada do banheiro, a palavra lá deixada “incubo” sumira. Alberto nunca fora dos mais corajosos, mas agora sem vergonha de admitir, estava apavorado. Na cama mesmo começou a escrever. Era impossível olhar as palavras do chão uma a uma, então escreveu a esmo. Tudo que lhe vinha na cabeça. Eram três da tarde quando a exaustão e a fome chegaram. Pode notar pequenas diferenças. Em alguns locais podia ver o piso branco do quarto. Afastando com cuidado as palavras com o pé, ele foi até a cozinha, e comeu um sanduíche rapidamente e bebeu o suco direto da garrafa. Voltou ao quarto e continuou a escrever. A história vinha com facilidade, se continuasse nesse ritmo, logo teria um livro completo.
Já era madrugada. Nenhum som na noite negra além do pipocar no teclado. Escrevia desesperadamente, num furor insano. Sua vida dependia disso. Apesar de toda disposição, suas mãos começaram a dar sinal de cansaço de tanto escrever e precisava de um esforço sobre humano para manter as pálpebras abertas. Até que o sono venceu e tudo escureceu.