O trem fantasma

Aos pés da Serra da Mantiqueira, aninhada em suaves montanhas, rodeada por todos os lados com encantadora natureza verdejante, bem aos sul das Minas Gerais, se encontra a cidade de Passa Quatro, cenário da história misteriosa que hoje quero lhe contar.

Imagine uma cidade turística bem pitoresca, cheia de belíssimas árvores, ipês com cores brilhantes, bicas de água mineral cristalina espalhada por toda a cidade. O clima ameno e agradável e a luminosidade perfeita davam a cidade um ar quase mágico.

Bem no centro da cidade há uma estação de trem para fins turísticos, que faz passeios até o alto da Serra e volta. O trem é chamado Maria Fumaça e é sobre ele que nossa história fala.

A estrada de ferro, antiga, corta a cidade de alto a baixo e todos os dias os moradores ouvem o sino que anuncia a Maria Fumaça, logo podem avistar seu imponente corpo de ferro, pesado, bem cuidado, bonito, sua chaminé devolve ao ar enormes rolos de fumaça muito branca, mas o que realmente impressiona é seu apito forte, estridente e melódico que pode ser ouvido ao longe, junto com o sino de som agudo, que soa continuamente. Poucos realmente vêem o trem todos os dias, mas muitos ouvem e adivinham sua presença.

O que quase ninguém sabe é que a Maria Fumaça tem uma atividade noturna. Todos os dias a meia noite suas engrenagens começam a funcionar, suas rodas se movimentam, sua chaminé solta uma fumaça prateada e seu apito adquire uma melodia que só os sonâmbulos ouvem.

Sentindo-se livre, o trem corre pelas encostas das montanhas, aproveita cada estrada de ferro, mesmo desativada, sobe e desce, quase voa, feliz, recolhe passageiros, de várias épocas e tempos, que vagam entre os mundos.

Há muitos anos atrás, quando eu era só um garoto, despertei no meio da noite, ouvi o apito da Maria Fumaça e intrigado fui até a estrada de ferro perto de minha casa, esperei alguns minutos e nada apareceu, desapontado já estava voltando para casa quando ouço mais nítido e forte do que nunca, olho para trás e vejo ao longe um trem brilhante, coberto de névoa, que se aproximava rapidamente.

Ainda boquiaberto observei o trem que diminuiu a velocidade e parou bem ao meu lado, olhei para as janelas e vi muitas pessoas vestidas com roupas antigas, pude ver várias épocas retratadas. Surgiu na porta um homem sem idade definida, bigodes e sobrancelhas grossas ornavam um rosto extremamente comum, vestia um uniforme formidável, preto cintilante com bordas prateadas, um quepe também preto e prata, o homem sorriu e com um gesto me convidou a entrar.

Sem pensar muito entrei, parecia inevitável. Uma bruma fina impregnava o ambiente, o ar atemporal cheirava a dama da noite, o mesmo perfume que impregnava as noites da cidade.

Ainda descrente com a situação, fui caminhando até o fundo do vagão, onde achei um lugar vago, logo me sentei e olhei para meu companheiro de banco, um rapaz, de terno e gravata, cabelo repartido no meio, um bigodinho fino e bem feito coroava uma boca igualmente fina e bem feita. Parecia não ter mais de vinte anos.

Perguntei o que estava acontecendo e ele me disse que estávamos no trem fantasma, que pegava passageiros perdidos entre os mundos. Fiquei chocado. Perguntei o que eram os mundos, já que eu só conhecia um e obviamente não estava perdido coisa nenhuma. Ele me explicou que não existia um mundo, como todos criam e sim vários mundos, dimensões, como ele nomeou.

Mesmo eu sendo ainda muito novo, pude entender melhor o que me era dito do que se fosse hoje, quando estou velho e descrente. Entendi que o mundo era formado por várias dimensões que ocorriam ao mesmo tempo, em vários níveis e em várias épocas diferentes e a Maria Fumaça podia viajar entre elas. Os passageiros eram pessoas que haviam flagrado esse entra e sai das dimensões e era convidado a participar do passeio.

Antes que eu pudesse absorver toda informação, meu colega de banco me convidou a olhar a vista e quando dei por mim estava olhando uma paisagem totalmente diferente, longas planícies com toda espécie de plantações, canteiros baixos de flores multicoloridas, arvorezinhas carregadas de frutos vermelhos, fileiras e fileiras de trigo dourado dançando ao sol.

Sem aviso o cenário mudou e estamos em uma cidade grande, cheia de edifícios cinzentos, alguns revestidos de vidro que reluziam no sol, carros modernos demais para a minha época, corriam velozes, pessoas ocupadas andavam apressadas pelas ruas, ninguém pareceu notar um trem passando entre eles.

Em questão de segundos estava olhando um deserto e uma caravana de nômades tenta andar sobre dunas de areia em plena tempestade de ventos arenosos. Um vulto todo coberto dos pés a cabeça com tecido grosso e incolor em meio à tempestade escorrega e sai rolando nas areias, outras pessoas do grupo correm para socorrê-lo. Antes que veja o desfecho do episódio, já mudamos de dimensão.

Esqueci de tudo que acontecia no vagão, minha atenção havia se focado só na paisagem, nem lembrava mais de meu colega de banco, quando olhei ao meu lado ele não estava mais lá, no seu lugar havia uma senhora de cabelos grisalhos, presos em um coque, vestia uma blusa com corte simples e uma saia reta até os joelhos, era de pequeníssima estatura, seu perfil era aristocrático, com um narizinho fino e arrebitado, mesmo com idade avançada ainda era linda. Suas mãos estavam entrelaçadas e descansavam tranquilamente em seu colo. Diferente dos outros passageiros, não admirava a paisagem e sim parecia estar em uma viagem interior.

Tão impressionado fiquei olhando a pequena senhora ao meu lado que me desliguei do exterior e assistia agora os pensamentos da senhorinha. Sorria sozinha às vezes, balançava a cabeça e estreitava os olhos, parecia se lembrar de algo muito distante no passado. Criei coragem e perguntei quem era ela. Com voz calma e suave ela me disse que era de Passa Quatro também, que viajava regularmente nesse trem e que tirava esse tempo para relembrar coisas boas de sua vida, seu casamento com o primeiro e único namorado, um jovem farmacêutico muito empenhado em sua profissão, seus cinco filhos, dois homens e três mulheres, agora adultos e seus muitos netos e netas.

Intrigado, perguntei como nunca nos havíamos visto, já que a cidade é bem pequena. Ela respondeu com ar jovial que éramos de épocas diferentes. Disse também que sabia que essa podia ser sua última viagem, já que "para morrer, basta estar vivo" e preferia viajar nas lembranças de sua ótima vida, cheia de amor, do que ver as paisagens maravilhosas de outras dimensões.

Fiquei feliz de ter conhecido uma senhora tão especial. Ainda estávamos conversando quando a Maria Fumaça começa a diminuir a velocidade e percebo que estamos em Passa Quatro de novo, chegando à estação, a senhora ao meu lado disse que aquela era a sua parada e saltou do banco com agilidade impressionante e desapareceu pulando fora do vagão. Olhei pela janela e vi que estava quase chegando à rua. Imaginei se devia saltar ali também, mas o trem começou a se movimentar novamente e antes que eu percebesse estávamos em frente a minha rua, onde eu havia tomado o trem algumas horas antes.

Saltei do trem e antes que pudesse olhar para trás ele já havia desaparecido. Depois disso, todos os dias, no mesmo horário, ia aguardar o trem fantasma, mas passaram-se vários anos e nunca voltei a vê-lo. Nunca esqueci aquela experiência. Até hoje sonho com as paisagens que vi lá fora e guardo na memória a senhora que me mostrou que mais vale as lembranças de uma vida cheia de amor do que a visão de um mundo de aventuras.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 21/03/2016
Reeditado em 28/06/2019
Código do texto: T5581059
Classificação de conteúdo: seguro