Epifania
Prédios erguidos. Multidões guiadas por seus interesses, cruzando ruas movimentadas, enquanto os sinais se fecham e os veículos aguardam, rangendo seus motores, já que o tempo não pára, nem o mundo, nem a vida.
Joseph parou. No meio da rua, ele parou. Estava caminhando, com seu terno escuro e seus sapatos polidos; com sua maleta repleta de documentos e seus negócios importantes; com suas dúzias de clientes que o aguardavam; com suas dúzias de executivos que lhe depositavam suas expectativas; com todas as câmeras de vigilância que filmavam seu caminhar pelas ruas...
E, apesar de tudo, ele parou. Um momento de reflexão. Ele olha para as massas e enxerga a besta; vê que ela caminha rumo ao precipício, carregando consigo a multidão de incautos.
Ele quer sair desse trem. E sabe que isso representa seu caos e colapso. Sua mulher cuspirá fogo de dragão ao olhar para sua figura patética, incerta, adormecida tal qual um iluminado do caminho (E quantas vezes ela o alertara para que se afastasse de tais elementos: eles se vestiam mal, andavam a pé e diziam loucuras. Agora, Joseph comportava-se exatamente como um deles).
Olhou para todos os lados. Procurava algo que fizesse sentido. Buscava, em verdade, o próprio. O sentido. Sim, o sentido da vida e de todas as coisas. Afinal, não era eterno. Alguém poderia anunciar a morte de um sujeito atordoado, após a queda de uma vidraça ou aparelho de ar condicionado. Ou poderia ser a explosão de algum bueiro. Ou, quem sabe, sentisse fome, e então seria noticia o fato de que um sujeito engasgara com um caroço de azeitona, ou espinha de peixe...
... Ou algo menos significante...
Então, tudo poderia acabar de repente, e todos aqueles documentos em seu poder passariam às mãos de alguém mais habilitado e responsável. Um novo queridinho, o qual ficaria animado e quentinho, e bem posicionado dentro dela, a besta do precipício.
E o que seria sua vida fora do trem, afinal? Joseph resolveu sentar no banco da praça. O celular tocou. Deviam ser os advogados, preocupados com seu atraso atípico. Era apenas mais uma audiência, apenas mais um caso vencido envolvendo alguns milhões. Coisa corriqueira, cachorro morto.
Pegou o aparelho e o jogou no chafariz atrás de si.
Seria processado, demitido, humilhado, escandalizado, abandonado por mulher e filhos, os quais o chamariam de traidor e fracassado até o dia de sua morte, se é que estariam lá para receber a bênção última em seu leito próprio de tal ocasião.
E ele não se enganava: seus amados filhos certamente não estariam lá.
Não era mais um adolescente descompromissado. Em verdade, jamais fora descompromissado. Nem ao menos um adolescente, se levarmos as coisas ao pé da letra. À semelhança de seu pai, e do pai de seu pai, e do pai deste, toda a sua vida fora orientada para seu sucesso no mundo cosmodemoníaco, materialista e concreto.
Nem um de seus dias havia sido em vão. Antes, tudo fora calculado. Sabia de cor a quantia guardada em cada aplicação. Sabia o dia exato em que seu filho mais novo iria se formar em engenharia de bioprocessos, com futuro emprego e padrão salarial já acertados em um dos braços da companhia.
Tudo sob controle.
Joseph, o bom garoto. O bom, previsível e estável garoto. A peça certa na engrenagem, incapaz de dançar fora do ritmo. O queridinho do sistema, com seu lugar cativo na janela, com direito a visão privilegiada da queda da besta do precipício.
Porque todos os Ezequias desse mundo sabiam muito bem que esse dia chegaria, mas sorriam, certos de que a bomba explodiria nas mãos das “gerações futuras”. “E empurremos a besta com a barriga”, diziam uns. “Comamos e bebamos, pois, amanhã, morreremos”, diriam outros.
E tudo isso passou a ser insensato demais para o pobre Joseph. E ele para o mundo inteiro.
Resolveu, então, voltar para casa e conversar com sua mulher e filhos. Era possível que conseguisse algum apoio, apesar da certeza inequívoca de que seria chutado dali com todas as falsas lágrimas e falsos cuidados que teriam com sua futura e provável mendicância.
Chegou a casa. Sua mulher e filhos, curiosamente, o aguardavam sentados no sofá. Sua chegada parecia mais do que esperada. Joseph se preocupou. Parecia que havia algo grave que quisessem lhe dizer. Foi Pedro, seu filho mais velho, quem rompeu o silêncio:
- Pai, tem uma coisa que precisamos lhe dizer.
Joseph ficou inquieto, pensando na possibilidade de que eles já soubessem de sua decisão. Mas, como isso seria possível?
- Não sabemos como dizer isso, mas estamos preocupados com a reação que o senhor terá.
- Decidimos desistir de tudo.
- Tudo? Como assim tudo? Tudo o quê?
- Tudo, pai. Absolutamente tudo.
- Eles não querem seguir o futuro que nós traçamos para eles e... eu concordo com isso. Na verdade, eu não quero mais viver a vida que nós temos vivido, respondeu Elise, olhando nos olhos de Joseph como se aguardasse alguma confirmação.
- De onde vocês tiraram essas idéias?
- Estávamos aqui conversando e pensando, refletindo em certas coisas e, é como se estivéssemos em um trem desgovernado – respondeu Hugo, seu caçula.
- Os antigos chamavam os veículos de besta. É isso. Parece que estamos trancafiados numa besta desgovernada – concluiu Pedro, com certo ar intelectual e triunfante, como alguém de visão histórica madura. - E a questão é: para onde ela vai? Para onde estamos indo? No que estamos nos tornando? – continuou.
- E quando foi que vocês tiveram essas idéias? Foi assim... de repente?
- Exatamente, pai. Foi agora há pouco.
Sem saber ainda o que se passava na mente de Joseph, Elise tentou apazigua-lo:
- Eles voltaram da escola com essa decisão. Eu também estava em casa e, nós conversamos. Tínhamos um mesmo pensamento.
- O que você fazia em casa?
- Eu larguei o emprego – respondeu sua mulher, com alguma resignação.
- C-como?!!
- Toda aquela correria, de repente, pareceu tão sem sentido. A vida é tão breve.
Joseph tentava assimilar o que estava acontecendo. Aparentemente, tinham pensado justamente a mesma coisa.
- Tudo bem. Vamos fazer o seguinte: façamos as malas e vamos partir.
- Para lugar nenhum – completou Elise.
- Exatamente. Vamos para onde o nariz apontar. Vamos seguir a estrada sem rumo.
- Nada de regras.
- Nada de regras.
E assim fizeram. Ao saírem para a rua, entretanto, observaram uma grande movimentação. Todas as pessoas saíam de suas casas levando poucas bolsas e mochilas. Entreolhavam-se e perguntavam uns aos outros. As respostas variavam um pouco, mas, em regra, todos diziam a mesma coisa. Tinham decidido abandonar tudo e recomeçar a vida em algum lugar distante, com histórias diferentes.
Joseph entrou em seu carro com a família, estarrecidos. Ligou o rádio e começaram a ouvir o noticiário. Foi quando descobriram que se tratava de um fenômeno mundial. Todos largaram tudo o que estavam fazendo, largaram seus empregos, seus negócios; fugiram do trem desgovernado. Ninguém acreditava mais na política, nos políticos, no dinheiro, no sistema.
Abandonaram seus negócios, suas posses, seus pontos de vista e compromissos sociais. Destruíram os aparelhos de TV e tudo aquilo que possuía chips ou que os mantinham conectados a qualquer coisa.
Por via das dúvidas, Joseph pegou o celular de sua esposa e ligou para o trabalho, mas ninguém atendeu. Ligou para os advogados, idem. Resolveu jogar o aparelho celular dela fora também, sem que houvesse qualquer reação a isto.
Seguiram rumo a lugar nenhum.
A besta agora caminhava solitária, e ela cairia sozinha no precipício. Em verdade, havia alguns poucos que não queriam abrir mão do que tinham. Estavam apegados demais às coisas que seus olhos podiam ver e que seus lábios podiam provar e que seus corpos podiam vestir. Não conseguiram sair da besta, antes que ela os arrastasse até as profundezas.
Os demais estavam todos salvos. E o que seria do mundo a partir de então, ninguém saberia dizer. Não saberíamos como viveríamos a partir de então.
Todos olhavam para a grande besta, agora de modo bastante nítido. Observavam-na agonizar e caminhar em direção ao precipício.
Joseph compreendeu que tudo não passou de uma grande epifania.