Delírio coletivo
"EXTRA! EXTRA!
ELES ESTÃO ENTRE NÓS!
CRIATURAS ABOMINÁVEIS VINDAS DO ESPAÇO!"
"EXTRA! EXTRA!
ELES ESTÃO ENTRE NÓS!
CRIATURAS ABOMINÁVEIS VINDAS DO ESPAÇO!"
Gritavam os gemeozinhos que vendiam jornais costumeiramente na esquina, prestes a se desfazer rapidamente dos últimos exemplares. A cidade experimentava um delírio coletivo, com gente correndo para todos os lados. Carros desgovernados, saques em supermercados...
... Mas ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo...
O padre preferiu permanecer calado, esperando que o papa se manifestasse a respeito. O papa, por sua vez, pronunciou-se afirmando que ETs também são filhos de Deus.
Alguns sentiam terror; outros viam na ocasião a revelação e o final dos tempos; outros que se tratava do advento da Nova Era.
– Acho que devemos nos preocupar, agora, com a construção de um resort, e talvez também seja necessária a liberação urgente de verba para a criação de um espaçoporto para que possamos receber melhor nossos amiguinhos do espaço.
Os olhares se dividiam entre repugnância, reflexão a respeito e espanto, diante da nítida ganância do vereador, expressa até mesmo num momento tão crítico.
As autoridades se encontraram no gabinete do prefeito. Todos queriam saber quem daria as boas vindas aos aliens. O juiz repentinamente apareceu, vestindo um manto adornado de pedras preciosas e um gorro que lembrava os antigos paxás.
– Pois eu lhes dirigirei a palavra. – Afirmou em tom solene, cercado de seus eunucos, todos com as mãozinhas no peito.
– Você? – respondeu o prefeito, sem disfarçar a indignação – Quem disse isso? Por que você? O que você tem de especial? Quem você pensa que é? Deus?!
Iniciou-se uma discussão. O prefeito, o líder da câmara de vereadores, o juiz, o delegado, o padre, todos envolvidos em um bate-boca pra lá de acalorado, que culminou com socos, chutes e pontapés.
Em outro canto, alheio a toda confusão e intrigado com o que se passava, Noah, repórter investigativo, resolveu agir com lucidez. A cidade poderia, de fato, estar sofrendo uma invasão extraterrena. Ou tudo não passaria de boatos, alucinações; ou de fraude por parte de alguma autoridade, com o intuito de embolsar mais recursos; ou, ainda, um ataque de falsa bandeira, como diriam alguns. O que, de fato, estaria ocorrendo?
Parou, respirou e levantou a cabeça para enxergar o jogo. Pegou seu jipe e foi para o interior, onde disseram ter visto coisas estranhas acontecendo. O que encontraria pela frente? O Pé Grande? Chupacabras? Saci Pererê? Até que seria divertido encontrar um alien com tons brazucas, estava cheio de aliens hollywoodianos. Um saci seria muito bem-vindo.
Abandonou a euforia coletiva, os gritos, a desordem. Lembrou-se da querida Hortência, heroína do basquete. O suor, o jogo corrido, a adrenalina e, na hora de lançar a bola no garrafão num lance de falta, parava tudo com aquele suspiro mágico, como se saísse do nível mental que envolvia a todos, como se saísse dali e de seu próprio corpo e se tornasse uma expectadora de tudo, para, com toda a calma e tranquilidade, enxergar o óbvio: bola e cesta.
Bola e cesta. Razão. Lógica. Aliens não existem, caramba! Aliens não existem! Há, certamente, uma explicação lógica para tudo. Todos enlouqueceram!
O carro engasgou.
No meio do nada, o carro engasgou. Olhou em volta. Estava cercado pela mata. Nem uma viva alma entrando ou saindo daquele bendito lugar. Ninguém que pudesse lhe ajudar. E um calor maldito. Pensou se não poderia ventar um pouco, pelo menos.
E ventou.
Curioso! Gostaria de ter mais momentos assim. Resolveu que o vento não era forte o suficiente, e que deveria, ao menos, dissipar o calor.
E ventou mais forte.
‘Ok. Tudo bem. E que tal se chovesse um pouco?’
Começou uma chuva de leve. Noah ficou intrigado. Olhou em volta para ver se, de repente, não estaria em algum estúdio de filmagem ou coisa parecida. Se, de repente, não se tratasse de alguma pegadinha.
– Não é uma pegadinha. – Disse uma voz.
Que voz era aquela? De onde veio? Quem estava falando? Ele era visto? Mas certamente não via quem lhe falava. Devia responder?
– Responda-me: O que você procura? – Continuou a voz.
Noah estava nitidamente receoso em responder, quando, de repente, um papagaio lhe apareceu e começou a lhe falar:
– Acha melhor assim? Que tal um papagaio? Pode me chamar de Zé Carioca, já que eu sei que você gostaria de uma coisa, digamos… Brazuca. É esse o termo, não?
– Sim. Brazuca. Mas, peraí, braço. Eu não bebi hoje e não tomo remédio.
– Apenas responda o que está procurando, a fim de que possamos dar continuidade ao assunto, braço.
Reconheceu o tom de reciprocidade e resolveu relaxar. Bola e cesta. Agir com naturalidade. Acalmar-se diante de situações aparentemente inexplicáveis. Arte do jogo. Relaxou a musculatura e começou a falar mais à vontade com o papagaio ou o que quer que ele representasse ali, naquele momento.
– É o seguinte, gente boa. Por um acaso você teria visto um alien por aí? – Olhou bem para os grandes olhos de Zé Carioca e tentou se manter lúcido, mas pensou: ‘O que é que eu estou fazendo?’ – Quando a criatura lhe respondeu:
– Não. Eu não vi nenhuma criatura desse tipo, braço.
– Eh… Tudo bem, mas, com todo o respeito. Eu já vi papagaios treinados para falar algo além do Louro, ou repetir o nome, e até mesmo dizer algumas gracinhas, mas, um papagaio tão articulado e que raciocina para dar respostas, sinceramente, o que tá acontecendo aqui?
Nesse momento, o papagaio levantou voo e a mesma voz ecoou de outro lado. Noah virou-se e deu de cara com um cavalo, que passou a lhe falar:
– Eu sou A Bolha.
Processou mentalmente e decidiu tentar, mais uma vez, a hipótese da pegadinha. Mas isso seria improvável, ao menos por ora. Afinal, todos estavam cientes e preocupados com os eventos que ocorriam na cidade. Ninguém estava a fim de brincadeiras. Compreendeu, então, que talvez fosse isso o que de fato teriam presenciado. Talvez algum animal falando à noite. Mas, não era um animal. Era A Bolha. Voltou à estratégia de bola e cesta. Resolveu dialogar com aquele ser estranho.
– Como assim A Bolha? O que é A Bolha? O que ou quem é você? Isso é algum tipo de brincadeira?
– Longe disso. Estou aqui para levar o que é meu por direito.
– E o que é teu?
– Viu que usei um papagaio?
– Sim.
– E agora um cavalo?
– Sim, estou vendo.
O cavalo se foi, e a voz voltou a lhe dirigir a palavra. Teve alguma dificuldade em identificar a fonte.
– Aqui.
– Aqui onde?
– Do teu lado.
Virou-se e viu uma orquídea. Olhou bem para ela para ter certeza que era dali.
– Sim, é aqui. Sou eu de novo.
– Você agora é uma orquídea.
– Sim.
– O que é isso?
– Um tipo de polimorfismo.
– Tudo bem, e o que isso significa? Você vai levar o cavalo, o papagaio e a orquídea? Vai levar o quê e para onde?
– Na verdade, não levarei estes, mas seres humanos cuja inteligência está próxima do bestial. Levarei as bestas desta terra. Refiro-me aos amebianos.
– Amebianos?
– Seres que usam sua capacidade intelectual muito abaixo do nível mínimo.
– E o que acontecerá com eles?
– Serão destruídos. – A Bolha observou o olhar preocupado de Noah – Não se preocupe. Você certamente não é um deles.
– Que bom. Na verdade, eu até que to curtindo esse papo. Há muito tempo que não tenho uma conversa tão… digamos… normal, inteligível.
– É. A maioria só conversa acerca de bobagens e age de modo tão irracional, não é mesmo?
– É.
– Se você resolver conversar sobre algo mais avançado é posto de lado.
– Isso.
– Se falar de ciências, então… puff. Sofre bullying. É essa a palavra que vocês usam, não é mesmo? Eu preferia ostracismo.
– Sim. Eh…
– Entendeu onde quero chegar.
– Sim.
– Pois é. Eu viajo pelo espaço destruindo tudo aquilo que não faz uso de ao menos uma pequena parcela de sua inteligência mínima. Não precisa ser muito, eu disse o mínimo.
– Tipo os reservatórios de água de São Paulo.
– Não tão mínimo. Aqui, apenas aqueles que usam seu cérebro com a dignidade de seres humanos, inteligíveis, que pensam por si sós e usam suas cabeças de forma racional e com propósito, apenas estes eu deixarei viver. Os demais, digo os amebianos, causam desequilíbrio no universo. Eles precisam ser aniquilados.
– Que massa! Nunca pensei que fosse tão show conversar com orquídeas. Eu já tomei chá de cogumelos certa vez, uma vez só. Mas, eu não conversei com cogumelos.
– Tudo bem, vamos pular essa parte. Ainda assim você não é um daqueles que vim carregar.
– Caramba. E você se transforma em tudo o que está aqui?
– Na verdade, não. Ocupo uma área geográfica, geralmente toda a área em que se encontra a população condenada. Fixo-me a todas aquelas bestas e, então, eu as destruo.
– Destrói?
– Sim. Queimo, afogo, posso arrebatar para o fundo da terra. Coisas do tipo.
– Os amebianos?
– As bestas humanas.
– Que trabalheira, hein?
– Ô!
– E você pretende fazer isso no mundo todo?
– Aos poucos.
– Uau! Mas e os outros? Digo, os não amebianos?
– Herdarão a Terra.
Noah coçou a cabeça e, de repente, viu-se pensando em todas as pessoas da cidade em que vivia. Pensou particularmente naqueles de quem gostava. Preocupou-se com eles.
– Diga-me uma coisa: Você afirmou que não destruiria a todos, não é mesmo?
– Não. Apenas os amebianos.
– Mas e os outros? Há riscos para eles?
– Nenhum.
Agora, pôs-se a pensar na ética do trato que acabava de fazer ali. Afinal, estava concordando com o plano do alienígena? Seria correto classificá-lo como um comparsa de um crime psicótico? A dizimação de milhares de pessoas? Isso não seria uma forma de eugenia nazi-fascista? Por mais imbecil que fosse a maioria, todos, afinal, não teriam direito a rever seus atos? A uma nova chance? Não sabia bem o que fazer, já que sentiu que o tempo era muito curto e que os eventos se dariam de modo irreversível e dificilmente seriam impedidos. Afinal, quem poderia conter "A Bolha"? Decidiu se despedir, e compreendeu que talvez ainda desse tempo de convencer os homens a serem mais dignos. Essa seria a única forma de evitar a destruição total e lamentável. A questão seria o tempo. Numa última tentativa, voltou-se para A Bolha, ainda que achasse seu gesto inocente e arriscado.
– E se eu os convencesse?
– A quê?
– A se tornarem pessoas mais dignas, lúcidas, sérias, preocupadas em fazer o que é certo, com senso de justiça e civilidade.
– Pense bem no que está me propondo.
Parou e pensou. Mais uma vez, bola e cesta. Pôs os pés no chão. A Bolha tinha razão. Moisés, Gandhi, Jesus Cristo já tinham tentado, não era ele quem iria conseguir.
– Tudo bem, mas eu gostaria de não ver isso.
– O tempo urge. Não posso mais esperar.
– Preciso voltar e pegar minhas coisas.
– Corra. Estarei chegando em breve. Tomarei a forma de um disco voador nos céus. Quando você ouvir aquela música de que tanto gosta e que te faz pensar na vida, saberá que o tempo acabou.
Noah não perdeu tempo. Não sabia qual era a música, não tinha cabeça para pensar nisso agora, mas certamente se recordaria na hora.
– E meu jipe?
O motor imediatamente voltou a funcionar. Pisou fundo e voltou para a cidade.
Voltou à confusão. O juiz vestia roupas pomposas e engraçadas e discursava diante de repórteres. Tinha conseguido uma liminar junto ao Tribunal Superior que lhe concedia direitos de se reportar aos alienígenas. Em segundo plano, em verdade, já que o próprio Ministro da Justiça resolveu comparecer ao evento. Provavelmente vestiria trajes ainda mais suntuosos. O Prefeito também participaria do evento, e já tinha mandado cunharem uma placa comemorativa em que se dizia que em seu governo é que tal contato foi feito, e que nunca antes na história daquele lugar algo do tipo tinha se sucedido.
Noah correu. Olhou para a multidão enlouquecida. Todos participavam de uma festa coletiva. Pão e divertimento. Caos e desordem. As pessoas riam com toda a falta de discernimento que lhes era própria, e algo mais que isso. Embriagavam-se, gritavam e pulavam nas ruas. Soltavam fogos, eufóricas.
Finalmente, uma imagem começava a se formar nas nuvens, ao som de In the Light, do Led Zepelin, versão original. E todos os olhos se voltaram para os céus, maravilhados. Pôde-se ouvir um hippie de butique, entusiasmado, com seu inglês ruim:
– Ixxi môsti tiu bi de révein, mein. (*)
No que outro hippie de butique, indignado, respondeu:
– Ai, ai, ai, eu sou mais um fã do Led. – Falou com as mãosinhas na cadeira, afinando a voz e dando meia requebrada, para, depois, prosseguir. – Hey, cara! Pro teu governo, esses soldados do capital selvagem não estiveram em Woodstock. Eles não tem nada a ver com a ideologia do movimento.
E, assim, e, provavelmente, com toda a razão, iniciava-se uma briga que se alastrou por todos os cantos. Alguns achavam que era algo de cunho racial. Outros que era por conta da crise financeira, em consequência da chegada dos aliens.
Noah se cansou de tentar avisar a todos o que realmente estava acontecendo. Entrou em seu carro e ‘picou mula’.
De longe, já próximo da saída da cidade, pôde ouvir quando a voz de Robert Plant começava a cantar:
‘And if you feel that you can’t go on
And your will’s sinkin’ low
Just believe and you can’t go wrong
In the light you will find the road
You will find the road’
Uma névoa espessa caiu dos céus e passou a cobrir a maior parte das pessoas. A névoa brilhava como ouro. De tolos, certamente. E todos olhavam para o disco que girava cada vez mais veloz, lançando o pó de ouro de tolos que envolvia a quase totalidade dos que se encontravam nas ruas. E todos estavam nas ruas. Alguns, entretanto, não eram banhados com o pó, mas não se lamentavam com isso. Eram os que não estavam eufóricos, mas que reagiam com prudência, e, de algum modo, tentavam se desvencilhar. Alguns destes foram embora, enquanto outros se esconderam. Assim, não viram a continuação do espetáculo que se sucedeu.
A Bolha adquiria a sua forma, modificando suas cores, alterando seu brilho. Tornara-se um espetáculo por si só. Os amebianos iniciaram uma grande ola, enquanto cantavam, dançavam, gritavam, entregavam-se de modo tresloucado. E, de repente, A Bolha iniciou movimentos elásticos, no que os amebianos sentiam o efeito da gravidade com cada vez mais intensidade, o que, em verdade, deixava-os ainda mais extasiados. Todos sentiam que eram, cada um, a própria Bolha. Eram todos um só junto a ela. Nesse momento, esticavam-se e comprimiam-se, acompanhando-a. E foi assim que ela se comprimiu totalmente, afinal, desaparecendo e levando todos os que lhe pertenciam por direito.
***
Noah retornou algum tempo depois. Parou em algum restaurante e pediu um café. Viu com alegria os dois garotos vendendo jornais. Em verdade, eram arautos que anunciavam a pauta do dia para quem tivesse ouvidos para ouvir.
Havia um clima de paz no lugar. Pessoas entregavam-se presentes e caminhavam sorridentes nas ruas. Cheiro de terra renovada no ar. Paz, silêncio e ordem. A cidade era agora quase que um verdadeiro deserto, e Noah ainda lamentava as perdas. Decidiu que era hora de partir para outros cantos do mundo e reportar tudo o que verdadeiramente viu, para que isso não mais se sucedesse.
Alguém lhe daria ouvidos?
FIM
(*) It must to be the heaven, man - Frase imortalizada por um apresentador do festival de Woodstock, cuja tradução não literal seria algo como "Isso deve ser o paraíso, cara".