O poder da música

– ‘Aquilo é música?’, perguntou ela, enquanto apontava para um espetáculo de luzes coloridas que se formava no céu, entre as nuvens, o que se podia vislumbrar pelo imenso buraco no teto, em meio aos escombros do prédio em que viviam. Pressentia a frustração, prestes a se formar em seu rosto, de modo que temeu, mais uma vez, dizer-lhe que não. Lamentou algum dia lhe ter comentado a existência. Não imaginava que a criança tornaria isso uma obsessão. Em verdade, ele mesmo não conhecia a música, apenas ouvira falar a respeito, quando ainda era, ele próprio, uma criança. Depois do colapso, jamais uma melodia foi ouvida novamente.

S@ra MK foi encontrada no lixo, em silêncio, arredia, desconfiada. Devia ter uns seis anos apenas. Seus pais foram devorados pelos mutantes. Na fuga, jogaram ali a menina, numa tentativa derradeira de preservá-la. Emílio SS 30 teve todo o cuidado de tomar conta dela, a partir do momento em que a encontrou. Lembrou-se de uma palavra que ouvia de seus pais constantemente: ‘esperança’. Sim, essa foi a palavra que veio a sua mente quando a viu pela primeira vez. Reconstituíra então seu senso familiar e passou a protegê-la e lhe dar todos os cuidados possíveis, o que, por si só, constituiu-se em uma tarefa árdua.

Precisavam ser rápidos para pegar a comida, que se compunha apenas de pão, água e alguns animais mortos que eram trocados no mercado que se formou naquilo que outrora fora uma bela praça. Todos os encontros públicos eram feitos em pleno dia, onde os mutantes não podiam ir por conta de sua irritabilidade à luz.

Os mutantes eram descendentes de alguns dentre os indivíduos mais frágeis que sobreviveram ao colapso. Estes se esconderam em cavernas e subterrâneos. Lá, em virtude da necessidade de sobrevivência, desenvolveram certas habilidades ao longo dos anos, tais como a visão noturna, o hábito de comer carne humana, entre outros. Seus genes foram passados para seus filhos, e, adaptados, de geração em geração, acabaram por criar uma subespécie distinta e superior. Entretanto, eles só saem à noite, quando caçam os homens. Temerosos, os demais seres humanos que permaneceram normais compreenderam a necessidade de se unirem contra eles, evitando lugares fechados durante o dia e dormindo em grupos à noite, utilizando-se sempre de muitas tochas e espelhos que ajudassem a ampliar a claridade do local. Mesmo assim, às vezes, sobretudo em tempos de escassez na caçada, alguns mutantes adentravam os recintos e, quando isso ocorria, na maioria das vezes, conseguiam fazer uma ou outra vítima. Por conta disto, estabeleceu-se como pena para os criminosos serem jogados a eles para serem comidos, o que diminuía sensivelmente esse tipo de abordagem, até por conta da frequência dos atos antissociais praticados.

S@ra MK transcendia essas preocupações como se fosse imune a todo o risco a que se submetiam os demais. Ao contrário, buscava em todo o lugar, e a todo o tempo, a música. Mesmo sem jamais tê-la ouvido, como a quase totalidade dos que viviam naquele mundo destruído – e, os que o tinham, só se tinha ouvido falar deles -, acreditava que a música era o caminho para a condução da humanidade a sua redenção. Emílio SS 30 acompanhava, em silêncio, a sabedoria das reflexões daquela criança, mas apenas conversavam a sós sobre tais coisas, temendo serem considerados antissociais. Inspirado por ela, ele próprio tentou encontrar a música, algumas vezes, mas não sabia como. Não tinha recursos culturais para tanto, a tradição civilizada não lhe fora adequadamente transmitida. Os sofrimentos e privações de todos aqueles anos, toda aquela luta pela sobrevivência, tudo impediu que os homens encontrassem em seus corações momento adequado para uma pausa na qual pudessem se dedicar à busca pela harmonia, pela melodia, pelo ritmo. Mas Emílio SS 30 tentou. Recordou-se de, certa vez, numa tentativa de ensinar a S@ra o que nem mesmo ele sabia, bater os pés no chão. Bateu as mãos também. Tudo num esforço totalmente desprovido de sincronia, diante dos olhos atentos e cada vez mais críticos da menina que, ao final, teve de perguntar o que ele pensava que estava fazendo. Ele não sabia. Ela também não, mas, apesar de não saber o que era música, ainda, um senso que parecia haver dentro de si lhe apontava que o que seu tutor tentava fazer certamente não era.

Não havia sobrado instrumentos musicais. Tudo fora queimado, junto com os livros. A humanidade desconsolada estava cheia de si. Cheia no sentido do desgaste. Cheia de todo o conhecimento que a levou àquele estado de coisas. O homem não queria mais se ver, envergonhado com o resultado de seus atos. Achava-se incapaz de realizar algo realmente bom. Sua cultura o espelhava. E, assim, mais de um século havia se passado.

Ventos de mudança, S@ra MK representava uma nova geração. A quarta ou a quinta após o colapso. Devia ter uns dez ou onze anos agora. Emílio não conhecera seus pais, mas, às vezes, desconfiava de que S@ra fosse também uma mutante. Tudo o que a menina fazia era diferente. Tinha graça. Até no modo de andar. Ela não andava se arrastando como todos os demais, mas o fazia com atitude e determinação, como se estivesse indo para algum lugar, nesse mundo desorientado. E Emílio percebia que os outros, pouco a pouco, acompanhavam-na. Teve essa percepção alguns dias antes. Começou a notar que, à sua volta, o modo de andar das pessoas se modificava. Associou isso ao modo de andar de S@ra, mas não quis comentar. Preferiu ficar em silêncio e continuar observando. Com algum esforço, percebeu que ele próprio mudara seu modo de falar. Cada vez mais se via brincando com a forma como as palavras circulavam em sua boca, mas não compreendia muito bem isso. Entretanto, é certo que S@ra falava assim. E a garota buscava a música. Incessantemente ela o fazia.

As pessoas também pareciam não olhar muito para ela, mas instintiva e intuitivamente a seguiam. Seus modos mudavam gradativamente. Emílio começou a compreender o que estava acontecendo, mas não sabia se devia intervir no processo, já que tudo era tão silencioso. Ninguém falava nada, ninguém comentava. Ninguém parecia perceber a influência que a menina exercia cada vez mais sobre todos. E Emílio começou a entender o que seria a música. Ela estava nos gestos, nas pausas, nas brincadeiras cada vez mais frequentes. Nos passos com cada vez mais ritmo, nos modos de falar cada vez mais graciosos, nos sensos de direção e de tempo aparentemente despertados. E, assim, o tempo passou, e a revolução silenciosa de S@ra MK progredia, sem que ninguém atentasse para as transformações que, para o atento Emílio, se faziam cada vez mais evidentes. Até que um dia, naquele bendito dia, quando S@ra já contava com seus catorze ou quinze anos de idade, algo incrível aconteceu.

A menina começou com apenas um andar em círculos. Depois, começou a estalar os dedos em intervalos rigidamente iguais. E a gingar seu corpo de um lado a outro, e a rodopiar, e a simular corridinhas para frente e para trás, e de um lado a outro. Todos paravam à sua volta e se punham a observá-la. Alguns, hipnotizados por seus movimentos, tentavam acompanha-la, enquanto o atônito Emílio sentia um aperto crescente no peito, ao mesmo tempo em que também apreciava a beleza daqueles gestos. Os movimentos de S@ra evocavam algo em sua mente, como se ele pudesse ouvir o que não era ouvido, no que parecia ser acompanhado pelos demais. Emílio compreendeu que S@ra respondia a um estímulo que vinha de dentro de si, algo que a fazia se movimentar daquele jeito. Como se ela pudesse ouvir alguma melodia, harmoniosa e com ritmo, e como se todos, inclusive ele, a partir de agora, também o pudessem. Emílio finalmente ouvia música. E palmas começavam a ser ouvidas, e todos começavam a cantarolar para acompanhar a garota. E cantarolavam a mesma canção, com as mesmas palavras. Sim, todos cantavam a mesma canção jamais cantada, ao mesmo tempo, como se a letra da música lhes fosse ditada por alguma força invisível. E a canção dizia assim:

“CANTE UMA CANÇÃO”

Um estrondo se fez ouvir, interrompendo o fluxo ao qual todos se entregavam. Pouco a pouco, as pessoas começaram a se afastar e se posicionar em volta da menina, que permaneceu parada, no centro da roda, ainda em transe. Bono W3, um dos juízes da comunidade, aproximou-se com seu olhar inquisitório que forçava um a um a se recompor, como que se restabelecesse o juízo. Ele parou diante de S@ra MK e examinou seu estado com uma aparente complacência para, repentinamente, assumir um ar mais austero e se voltar para a multidão que o circundava.

– ‘Música… e dança. Cultura. Todos nós pudemos ouvir a música, mesmo que ela não tenha sido executada, não é verdade?’ – falou, dando voltas para se certificar de que todos assentiam. – ‘Mesmo depois de todos os esforços que fizemos para que isso pudesse ser evitado, parece que o mal sempre tem uma maneira de se manifestar. Nem que seja por meio de uma aparentemente inocente menina. Vocês já se esqueceram de como tudo isso começou? Não se recordam das advertências de nossos antepassados? Querem começar tudo novamente? Essa menina é o fruto de toda a desordem, a filha do demônio, com sua flauta, tocando em seus ouvidos, arrebatando seus corações, trazendo-os ao estado de alucinação completa, carregando-os de um lado a outro. Vocês não vêem isso? Desejam mesmo recomeçar tudo? Será que nossa humanidade já não sofreu o bastante?’ – Estendeu as mãos para S@ra e a ergueu. Passou as mãos em seu rosto e o segurou, ficando de frente para ela, com os olhos fixados nos seus. – ‘Vamos, conte-me: quem te ensinou essas coisas?’.

Sara mantinha o olhar fixo e vago, sem, no entanto, emitir qualquer resposta.

– ‘Você não vai dizer, não é? Sabe o mal que você representa para toda essa comunidade? Você não tem ideia, não é mesmo? Afinal, é só uma menina. Imagine se você crescer, do que será capaz.’ Virou-se para os guardas e mandou a levarem. Emílio correu para segurá-la e tentar implorar por clemência.

– ‘Bono W3, ela não fez por mal. É apenas uma criança. Não sabia o que estava fazendo.’

– ‘Você é o responsável por ela?’

– ‘Sim.’

– ‘Então foi você quem a ensinou estas coisas?’

– ‘Não, quero dizer, que coisas? A menina estava apenas brincando.’

– ‘A menina estava apenas brincando? Brincando, você disse. Até eu ouvi música antes que a multidão se manifestasse, meu amigo. E isso. Isso é muito sério. Não queremos música, não queremos… literatura. Queremos paz, paz longe das realizações humanas. A vida já é bastante difícil apenas com as tarefas diárias. Não precisamos desse comércio de ideias por aqui. A menina será jogada para os mutantes.’

– ‘Então eu também vou. Porque a música que havia nela me contagiou. Ela está em mim.’

Bono W3 parou para avaliar o homem, e, depois, responder.

– ‘Tudo bem. Você pode ir’.

Depois se voltou para a multidão que se aglomerava em volta para perguntar:

– ‘Mais alguém?’

Todos se voltaram e viraram as costas, retornando às suas atividades. Ao final, apenas S@ra e Emílio eram levados pelo grande corredor escuro que dava para o portão que conduzia ao lado de fora do prédio. Faltavam poucos minutos para o pôr do sol e todos os prédios já estavam fechados. O toque de recolher, em verdade, era dado uma hora antes, de modo que não seriam aceitos em lugar nenhum, sendo certo que de se tratavam de antissociais.

– ‘Desculpe-me, pai.’

Pai. Ela nunca o chamou assim. Apesar de tudo, estava orgulhoso. S@ra o introduziu à música. Sempre ouvira falar dela, e pensou que, à semelhança de tantos, morreria sem a conhecer. Sabia que sua filha, agora podia dizer, não a tinha aprendido com ninguém, e que tal conhecimento vinha de dentro. Não percebeu seu olhar fascinado e imaginava se ela teria condições de verbalizar o que tinha feito. Permaneceu em silêncio. Não sabiam para onde ir. À medida que a escuridão se intensificava, um medo crescente começou a tomar conta de Emílio. S@ra, por sua vez, permanecia ainda ilesa ao risco, confiante, tranquila. Uivos de um vento forte começaram a varrer a cidade, acompanhados de gritos amaldiçoados de seres das sombras que se aproximavam. Eram eles, os mutantes, com olhos que brilhavam no escuro, garras afiadas, ausência total de articulação de palavras e uma tecnologia linguística consistente na linguagem de cliques, remanescente da época em que seus antepassados se escondiam dos sobreviventes mais fortes. Emílio e S@ra estavam, agora, cercados por uma multidão obscura de zumbis.

Os mutantes os levaram para a praça, a mesma em que funciona o balcão de negócios durante o dia, e onde os animais mortos são comercializados. Emílio pressentia a morte, quando S@ra MK, repentinamente, começou a cantar uma canção. E talvez o mundo estivesse tão carente de música que cada molécula, cada partícula do ar, da terra, cada elemento químico se manifestaram. A aurora boreal tomou todo o céu e o fez tão claro que os mutantes tiveram que desviar os olhos para baixo, desesperados. O vento também se intensificava, trazendo consigo o exército do ar, composto por águias, que se punham a lhes devorar. Emílio então compreendeu o motivo de sua pupila demonstrar tamanha segurança. Ela possuía o poder transformador da música em seu interior, e ele agora se manifestava. E as coisas grandiosas que se sucederam foram vistas por todos, que compreenderam que era chegado o momento de renascer. Precisávamos viver, precisávamos nos reconstruir. E a música seria um bom instrumento para isso.

Daniel A Vianna
Enviado por Daniel A Vianna em 25/02/2016
Código do texto: T5554442
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