Céu
Acordou deitado sobre úmida e perfumada relva. Levantou a cabeça e olhou ao redor, aturdido: realmente havia vida após a morte! E deveria estar no Paraíso Celeste, pois o local em que se encontrava era muito belo. Ao fundo, longínquas montanhas abaixo do céu azul, muito limpo. Próximo de si, bosques verdejantes com clima aprazível e sombras frescas, e o som do vento agitando as folhagens das árvores era a única coisa que se ouvia naquela distinta e erma paisagem.
Levantou-se sentindo uma vitalidade jovial que há anos não experimentava. Olhou para si e reparou que ostentava o seu corpo de moço, e totalmente nu. Envergonhado, olhou mais uma vez ao redor para se certificar de que não havia ninguém.
É, estava só.
Durante toda sua vida evitou refletir muito sobre o mistério da morte pois, embora religioso, tentava crer no post mortem, mas nunca conseguira ter a fé necessária para abraçar esta teoria como certeza. Mas, uma vez ali, a ideia que fazia da vida eterna era diferente do que estava experimentando: podia lembrar de toda sua vida terrena, coisa que ele não imaginava que os mortos conseguissem. Pensou em seus derradeiros momentos, na velhice, e na doença que lhe tolhera a vida. Logo, teve certeza de que estava mesmo morto.
Bom, mas já que estava ali, livre de sua agonia de morte e com a disposição da época de seus vinte e poucos anos, resolveu explorar o lugar. Quem sabe não encontraria seus saudosos pais ou sua esposa… Ou, ainda, o próprio Jesus, passeando por ali?
Caminhou por horas a fio, e não encontrou ninguém. Nem mesmo haviam animais, apenas ele e a exuberante flora que o cercava. Certificando-se, resignado, que estava mesmo só, reparou pela primeira vez em curiosos elementos que compunham a paisagem, e que ele não tinha certeza se já estavam ali ou se apareceram naquele momento em que se deu conta: por todos os lugares haviam mesas e mais mesas postas com belos banquetes de comida farta e fresca, como se tivessem acabado de ser preparados.
Estranhou aquilo, mas percebeu que sentia fome.
– Como um morto sente fome? – Perguntou a si próprio, confuso.
Aproximou-se de uma das mesas, a que estava mais perto, e encheu seus pulmões com aquele aroma incrível que exalava dos pratos. E que pratos! Vistosos, um convite à gula.
Não pensou muito e tratou de sentar-se numa cadeira da mesa e servir-se fartamente. Depois da regalada refeição, recostou-se na sombra duma árvore próxima dali e dormiu.
* * *
Foi acordado por uma náusea irresistível, e mal teve tempo de virar-se à sua esquerda para vomitar. Sentia-se tonto e enjoado, e logo imaginou que devia ser pelo fato de que comera demais. Mais uma vez achou muito estranho o fato de experimentar sensações corporais típicas de quando estava vivo, como a fome, o sono e o enjoo.
Suava frio, tudo ao seu redor girava, e continuou vomitando. Após considerável tempo, começou a se sentir melhor, mas estava fraco. Levantou-se de onde estava e cambaleou para um outro lugar que lhe parecia mais propício à recuperação, e lá descansou. Quando já se sentia quase em plena forma, pensou em comer algo para fortalecer-se.
Andou por ali olhando outras mesas, e a variedade de comes e bebes que elas portavam era invejável a qualquer grande soberano ou magnata da história. Imaginou que deveria ir com mais calma agora, e procurou por alimentos que dessem mais sustento e que não fossem tão pesados. Encontrando, sentou-se novamente à mesa e alimentou-se mais uma vez, porém, com parcimônia.
Saciado, levantou-se e pôs-se a caminhar, para ajudar na digestão. Foi andando por ali e contemplando a paisagem, verdadeiramente bela e sem igual. Porém, sua cabeça foi lhe pesando e sobreveio uma vertigem. Recostou-se numa árvore e novamente começou a vomitar.
– Não é possível! Será que tudo que comerei me fará mal assim? – Pensou, perplexo em sua agonia, agora pior do que antes. Após muito vomitar, fraquejou e dormiu, para que pudesse passar aquele mal-estar.
* * *
Acordou pela mais uma vez, novamente se sentindo fraco.
Ficou deitado por um tempo, pensando se aquilo realmente era o Céu, ou se era uma espécie de Purgatório… Ou, mesmo, Inferno.
Será?
Refletiu: fora uma pessoa boa, ou, pelo menos, se esforçara para tal. Ia à igreja e até colaborava nas suas obras. Buscou ser bom filho, bom pai, bom marido… Trabalhou duro e não deixou que os seus passassem por necessidades. O.K., tinha mágoas e rancores dentro de si, mas geralmente não passavam disso mesmo. Por quê então mereceria aquela punição? Mas… Será que era punição mesmo? Talvez ele só não tivesse se alimentado das coisas certas, só isso…
Enquanto pensava, foi sentindo a fome apertar novamente. E, junto com ela, veio outra sensação muito humana à tona: o medo. Medo de novos mal-estares e enjoos, e medo de que aquilo se repetisse por toda a Eternidade.
– Bom, imagino que não há como morrer duas vezes. E se eu não comer mais nada?
Colocou esta ideia na cabeça e negou-se a comer. Ficou por ali mesmo, experimentando se sua tentativa daria certo.
Passado um bom tempo, observando a plácida paisagem, permaneceu sentado onde estava, sem se deixar levar à alguma mesa. Sentia a fome aumentar, e resolveu andar para ver se se distraía um pouco.
Levantou-se com ligeira tontura e principiou sua caminhada. Não se sentia muito bem, mas buscou esquecer isso e explorar o lugar. Era um vale plano entre duas serras não muito altas e bem onduladas. Não via sol no céu, mas ele estava constantemente claro, com algumas poucas nuvens e uma brisa quase que constante. Entre as árvores, pastos e charcos, haviam as mesas aqui e acolá. Umas maiores, outras menores, mas todas com fartura e variedade de pratos. Refletiu que aquilo deveria realmente ser algum teste ou punição contra si, e que não deveria ser o Paraíso, como pensara à primeira vista, mas realmente uma espécie de Purgatório ou Inferno.
Após muito e muito caminhar, sentiu-se melhor da fraqueza, mas a fome era grande e constante. Em seu trajeto, limitou-se a beber das jarras que constavam nas mesas, e a água, pelo menos, não lhe fazia mal.
Numa das mesas, já muito longe de seu ponto de partida, resolveu colocar sua teoria em novo teste: sentou-se e tentou comer, devagar e com cuidado, escolhendo muito bem do que se servia. Não comeu muito, de forma que ainda permaneceu com ligeira fome, e recostou-se ali perto para observar sua reação.
Não demorou muito, e o que temia lhe ocorreu novamente: enjoos, vômitos e muito mal estar. Depois de tanto passar mal, desmaiou.
* * *
Despertou após muito tempo, mais do que o habitual. Concluiu, finalmente, que alimentar-se era impossível. Sentiu uma profunda tristeza e a certeza de que estava sob o peso de uma maldição. Deus o estava castigando por alguma coisa, ou era uma prova muitíssimo pesada. Pôs-se de joelhos e rezou, chorando e implorando por misericórdia. Seu desespero era enorme, pois sabia que ele não tinha sequer o recurso da morte para livrá-lo daquela angústia. Seu sofrimento desenhava-se no horizonte de sua alma como uma tormenta sem limites nem fim.
Após muito rezar e chorar, resolveu, definitivamente, não mais comer. E, para poupar energias, ia permanecer imóvel, em constante oração e meditação, e assim o fez.
* * *
Muito e muito tempo se passou, talvez o equivalente a dias terrestres, ali impossíveis de serem contados pela ausência do sol e das noites. Mergulhou no mais profundo de si e lá buscou refúgio, lutando contra toda a fome, fraqueza e dor que se abatiam contra ele com mais e mais peso. O desespero vinha em golpes duros, e cada vez menos ele conseguia controlá-lo. A agonia de pensar que aquilo seria infinito destruía-o por dentro, e foi sentindo-se cada vez menor, incapaz e impotente.
Por fim, desabou.
Chorou copiosamente, desesperado. Clamava por misericórdia divina, mas nada mudava. Sequer um sinal lhe era dado.
Altamente confuso e tentado pelo aroma da comida que estava ali perto, arrastou-se até a mesa e sentou-se, desolado. Sabia que aquela era sua sina, então nada mais lhe cabia a não ser aceitar.
Quando ia se servir, estacou.
Reparou que, entre os fartos alimentos, haviam algumas poucas frutas – as quais ele odiava. Não eram as mais bonitas que ele já havia visto na vida, o que lhe era estranho, já que a comida daquele lugar possuía uma perfeição impensável aos melhores restaurantes da face da Terra. E esse estranhamento lhe deu a ideia de que poderia estar aí alguma chave ao enigma que lhe era proposto.
Pela primeira vez deste que chegara ali, ele pegou uma fruta para comer. Escolheu um morango de vermelho meio pálido, e mordeu. Sentiu um azedume típico dos morangos, e engoliu-o com uma careta. Mas, ao sentir o morango chegar ao seu estômago, regozijou-se enormemente: finalmente ele tomou um alimento que lhe satisfazia plenamente.
Ao terminar de comer o morango, não sentiu necessidade de comer mais nada. Recostou-se na cadeira em enorme júbilo, aliviado por estar livre do desconforto e da insegurança. Espreguiçou-se alegremente e sentiu, partindo de seu estômago, uma sensação de gozo tomar forma e, por fim, transcender a si próprio. Abriu os olhos e viu-se engolfado por uma grande luz que o circundava e envolvia por completo. Não sentia mais nada além de plenitude e felicidade sem fim. À sua frente, dois grandes olhos risonhos o contemplavam, aparentemente satisfeitos. Perguntou então, ao ser que lhe observava:
– Será que isto é o Céu?