MÚSICAS, MÚSICAS SÃO*

A esposa e os filhos estavam na casa da sogra pelo fim de semana. Isso já tinha rendido um sábado delicioso. Só comeu porcaria, assistiu A Lararanja Mecânica e uma comédia romântica boba que adorava, sem ninguém encher o saco. Releu Nada de Novo no Front, do Remarque, de uma sentada. No computador, só o que gostava; Caúby Peixoto, Nirvana, The Beatles, Chico Buarque, Frank Sinatra. Adormeceu na sala com um livro de crítica literária no rosto ao som de Nana Caymmi.

Acordou tarde. Tinha que fazer alguma coisa antes deles voltarem. Dar um jeito na louça, passar um pano na casa, lavar os banheiros, capinar o mato do quintal. Mas não podia deixar a chance de fazer o seu ritual de sonho passar;

Afastou os móveis da sala, respirou fundo algumas vezes e começou a cantar, à plenos pulmões:

-"Oi, Coração. Não dá para falar muito não. Espera passar o avião.

Assim que o inverno passar, eu acho que vou te buscar

Aqui tá fazendo calor, deu pane no ventilador

Já tem fliperama em Macau, tomei a costeira em Belém do Pará

Puseram uma usina por lá, talvez fique ruim para pescar

Meu amor!"

E toda a realidade assumiu um tom amarelado, como os filmes e as fotos dos anos 70. Passeava por um Brasil arcaico, mas que mudava a um ritmo nunca visto antes. Pequenas cidades agonizando, onde só tinham sobrado mulheres e crianças, que aguardavam a tão sonhada chamada do marido do Sul: Venham! As paisagens passavam pela janela de seu Mercedes Benz 1313. Quando ligava para casa tinha que rezar para ter alguém perto do orelhão e que soubesse quem era sua esposa.

A música acabou e ele voltou. O jogo só tinha uma regra. Tinha que cantar a primeira música que viesse à cabeça e entregar-se:

-"Sentindo um frio em minha alma

Te convidei para dançar

A tua voz me acalmava

São dois prá lá, dois prá cá"

E agora estava em um ambiente escuro e esfumaçado de um salão de bailes antigo. Todo desengonçado, óculos fundo de garrafa, contador. Em um canto, ficam várias mulheres que são contratadas pelo estabelecimento para dançar com os clientes. O pessoal da repartição sempre dizia que algumas saiam com os clientes depois do expediente. Mas nunca teria coragem de perguntar. Na verdade foram necessários vários copos de uísque com guaraná para criar coragem de chamar uma delas. Nunca se sentiu tão enlevado em toda sua vida. Faltava-lhe o ar Era o paraíso!

A música acaba, emenda logo outra:

-"Outside the barracks by the corner lights

I'll always stand and wait for you and at night

We will create a world for two

I'll wait for you a whole night through

For you, Lili Marleen

For you, Lili Marleen

Sob um calor escaldante, o soldado, como a maioria dos seus colegas, tira um pequeno tempo de descanso sob a sombra de um dos poucos tanques que sobraram. Estão colocando minas sob a areia para tentar deter ou pelo menos retardar o incrível avanço do Africa Korps de Rommel. Mas sempre neste horário, duas da tarde, eles dão um descanso e tocam pelo alto falante esta música. E ele pensa em Glenda. Em seu cabelo loiro, seus olhos castanhos, na noite que ficaram juntos antes de se alistar. Em que se entregou com tamanha sofreguidão. Escrevia-lhe toda semana, mas como explicar o que era lutar sob um calor de 50 ºC, em desvantagem de artilharia, sempre com sede. Ia morrer, sabia disso. Mas nunca daria menos que o seu máximo pela Inglaterra. Afinal de contas, fora isso mesmo que Churchill dissera: "Hoje eu não posso prometer nada a vocês, a não ser sangue, suor e lágrimas!". O que era engraçado é que já ouvira essa mesma música tocada pelos alto-falantes alemães. Do lado de lá existia um soldado que como ele só queria voltar para sua amada. Em que ponto as coisas chegaram a este ponto?

A mudança foi tão grande que seus olhos até se ofuscaram:

-"Chorei, chorei, até ficar com dó de mim

E me tranquei no camarim

Eu tomei um calmante, um excitante e um bocado de gim

Amaldicoei o dia em que ti conheci

De muitos brilhos me vesti,

Depois me pintei, me pintei, me pintei

O camarim minúsculo e mal-iluminado parecia estar se fechando sobre ela. Chorava, chorava, chorava. Durante um ano tinha vivido o sonho de todo travesti. Aquele homem tinha lhe assumido e ela tinha sido mulher. Realmente mulher. Com que gosto arrumava a casa, lavava e passava a roupa. Preparava-lhe a janta e a marmita que levava para a obra. Se anulara, perdendo muito dinheiro por deixar de cortejar os clientes da boate. O patrão só não a dispensara por ser a melhor cantora. Mas reclamava bastante, ainda mais da presença ciumenta dele toda noite. Mas ela! Como se sentia amada.

Desgraçado! Era igual a todos! A abandonou assim que os amigos do serviço descobriram. Meu Deus, como doía! Que vontade de morrer!

-"Carla, sua vez!"

Subiu no palco e cantou. Cantou com toda a dor de sua alma. Toda tristeza do seu coração parecia sair em sua voz. Quando terminou, estava vazia. Só restava apenas uma pequena esperança de que ele tivesse se arrependido. Saiu correndo como estava e foi para casa. Estava vazia.

O telefone tocou. Era a esposa ligando para avisar que saíria daqui a umas duas horas. É, realmente o conhecia. Pegou a enxada e foi para o quintal.

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 04/02/2016
Reeditado em 04/11/2024
Código do texto: T5533323
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