Meu Anjo
Segundo relato de alguns autores que respiram a literatura, daqueles que dela vivem, como os que não vivem sem ela, a página em branco chega a ser, em muitos casos, o personagem principal de suas histórias tal a influência que ela exerce. E, por sua natureza intrínseca, a fonte da inspiração. Por ser invisível o seu manancial, não se mostra a qualquer um; é, não raro, o vilão em forma de rebeldia, mas pode representar a vitória final, a consagração do herói e a imortalidade do seu criador. Encaro agora esta página como quem se vê à frente de um precipício. Como dar início à descrição do que ocorreu comigo e que, só agora, tendo passado há muito pelo pelo zênite da minha existência, consigo adquirir o ânimo e a coragem de iniciá-la?
Não pretendo ser detalhista a fim de não tornar cansativa a minha leitura. Todavia, a beleza incomum do local onde ocorreu o fato que pretendo narrar, posso afirmar com convicção, não é desse mundo. Nunca havia sequer imaginado algo próximo ao que vi em comparação com o que existe em nosso planeta. Para começar, não havia noite da forma que a concebemos; a luminosidade ofuscava a vista. O céu que nos envolvia dispensa adjetivos. Pelo simples fato de não haver, na linguagem humana, vocabulário capaz de descrever a sua suntuosidade. De uma ponta à outra era a abóboda uma formação linda e uniformemente tomada de arco íris, cada um mais lindo e impressionante do que o outro.
Eu dormia. Não posso afirmar, por hora, a extensão exata do ambiente que me envolvia; se era sonho ou não, deixo para os meus leitores o julgamento. O que posso assegurar, e disto não abro mão, é que tudo me era nítido, real e ofuscante. Ela então me apareceu. Suas asas deixaram ao redor de mim, devido a sua coloração magenta e formação saliente, um efeito ainda mais entorpecente. Despertei com a suavidade de sua voz a invocar bem baixinho o meu nome.
Estava eu no paraíso? Acaso teria a vida física de mim se exaurido sem que disso me desse conta, estando agora prestes a adentrar na eternidade? E, seria aquele o meu anjo, amparando-me nesse momento de transição, do qual nenhum ser consegue escapar? Como era feliz o meu estado! Quisera então que assim fosse. Nada então melhor para uma alma cansada das dores do mundo. Nesta altura os arco íris aumentaram em número e suas cores rodopiantes nos envolveram; era um banho de luz; como girândolas no céu
lançavam em nós seus efeitos fulminantes de luminosidade.
- Onde estou? - perguntei. Cada som que eu emitia reverberava no ambiente de cores e provocava um efeito que me deixava alucinado.
Meu anjo - não podia ser outra coisa - nada respondeu. A um sinal de suas mãos, erguendo-se acima de minha cabeça, senti um leve solavanco e uma sensação de estar sendo puxado. E isto realmente aconteceu; meu corpo flutuou no espaço com ela ao meu lado. A um novo sinal seu disparamos. Começamos a ganhar o firmamento em velocidade espantosa. Ela me olhava e sorria como a divertir-se com minha expressão de medo. Tomei coragem e olhei para baixo; não mais a palheta de cores que antes me inebriara, mas, uma escuridão, uma escuridão medonha e infinita. Era como se nada mais existisse acima ou abaixo de nós; dois seres estranhos cruzando o vazio. Súbito, nova sensação me atacou e eu me vi de cabeça para baixo. Começamos então a cair. Tentei soltar um grito que não passou de um abrir e fechar de boca, enquanto ela, sempre a sorrir, era toda calma e pureza.
Penetramos naquele vazio negro e eu não vi mais nada. Foi um breve momento apenas, mas que causou em meu espírito confuso o efeito de uma eternidade. Vi-me encerrado em um ataúde, morto e esquecido. De repente, e para minha surpresa, surgiu um novo cenário. Estávamos na floresta, na floresta onde nasci e me criei. Reconheci o imenso lago azul e, ao longe, minúscula, a minha casa. Tive vontade de sair correndo, mergulhar nas águas do lago e, alcançando a outra margem, correr para minha casa e matar a saudade imensa de todos que ali deixei. Mas, o que aconteceu comigo? Não tenho a mínima lembrança. Cheguei a levantar-me para correr, mas uma força irresistível susteve qualquer ato meu e mal saí do lugar. Meu anjo então me falou:
- Não faça isto! Posso impedí-lo, mas somente até certo ponto. Poderá, se quiser, mergulhar neste lago ou dar a volta por ele e rever sua família, mas não vai encontrar o que espera encontrar; terá uma grande surpresa.
- O que está dizendo? - perguntei atônito - O que aconteceu com Suzi e as crianças?
- Nada aconteceu. Apenas aquele não é o seu lar.
Não podia, dessa vez, dar o mínimo crédito às palavras do meu anjo. Embora impedido, pela distância, de ter uma visão mais clara, reconheci o lugar que me viu nascer e onde toda a vida vivi.
- Olhe bem; não reconhece a diferença?
Tão feliz estava com a visão de minha terra que não notava as diferenças de época que meu anjo procurava me mostrar.
- Vamos dar uma volta - sugeriu-me. Novamente aquele impulso no corpo e, quando percebi, estava em pleno ar, guiado por aquela criatura; em sua mão uma espécie de magnetismo ou encantamento que me relaxava, causando-me sensações maravilhosas, mas indescritíveis. Era eu e não era eu ao mesmo tempo. Algo via por mim, algo sentia por mim e eu não saberia explicar o que era.
Realmente havia muita diferença entre o ambiente e o que me era familiar. Embora reconhecesse e estivesse convicto de que a região fosse a mesma, era como se se mostrasse ali em época diferente. Reconhecia isto a começar pela casa onde nasci. A forma, a estrutura e o tamanho eram os mesmos; porém, era nova em folha, como se recém construída. A madeira brilhava em todo seu contorno. O teto, reforçado por grossas lianas, envoltas em troncos perfilados, parecia acabado de ser construído. Não havia, notoriamente, aqueles vestígios de desgaste causados pela passagem inexorável do tempo, a exceção de um ou outro ninho de pássaro nas reentrâncias do meu telhado. Se traços de velhice havia eram o escurecimento de algum tronco - embora pudesse isto resultar da espécie de árvore que fora utilizada - umas poucas lianas que haviam se soltado ou sinais claros de corrosão nos tijolos que envolviam a chaminé.
Um aspecto que sempre caracterizou minha região é a frequência de chuvas e ventanias. Quanto a estas últimas, não são poucos os estragos causados por elas. Sempre prevendo desastres e contratempos tudo precisa ser construído ou elaborado em função desse fenômeno. As próprias árvores mais frágeis, mesmo quando adultas, precisam ser amarradas e assim privar-nos do espetáculo de vê-las se despencarem pela força do vento e voarem pelos ares. Passei parte da minha juventude auxiliando papai em sua atividade de construtor de carroças para aluguel e venda a outros proprietários de fazendas.
Muitas dessas carroças já iam com animais, pois a criação de papai alcançara uma fase próspera por volta dos meus onze anos de idade. As carroças eram despachadas semanalmente enquanto aguardavam à frente da casa tendo, atrelados a elas, os animais. Precisávamos contar com a ajuda Divina e com a sorte para não ter um trabalho de meses prejudicado por uma ou duas horas de tempestades com ventanias; se estas ocorriam seriam enormes os prejuízos, mas isto não deixava de acontecer. Os cavalos eram os que mais sofriam. Seus relinches lamuriosos alcançavam o infinito, enquanto suas patas iam, aos poucos, quase que enterrando-se ao solo, pois eram estas as únicas formas de alertar-nos quanto ao perigo iminente de se debandarem; tínhamos que controlá-los de algum modo antes que o fizessem.
Comecei a ser vítima de inexplicável sensação quando, conduzido pela mão de meu anjo e envolvido por seu olhar terno, certifiquei-me do que estava acontecendo. As diferenças tornavam-se agora tão nítidas que não me deixaram a mínima dúvida. Minha visão, que antes concentrava-se no cenário inesquecível do que sempre fora meu, a alegria de poder novamente contatar minha família dissiparam até mesmo a nuvem do medo e da ansiedade de querer saber o que ocorrera comigo. Ao visualizar o todo do cenário que me envolvia constatei uma realidade - se é que posso utilizar-me dessa expressão - inacreditável e assustadora. Onde estavam as casas que nos avizinhavam? E as inúmeras trilhas que conduziam a diversos caminhos? Sequer vejo mais esses caminhos! Minha casa parece perdida na imensidão da floresta. Ela está à beira do lago e só existe uma saída por terra que fica atrás da casa. As águas do lago parece terem inundado todas as casas, todo o pequeno comércio. Mas, agora entendo que não é bem isto o que ocorrera e, o olhar do meu anjo, envolto em cativante sorriso, entende e testemunha o meu despertar. Súbito, numa fração de segundo, encontrei-me mais uma vez sentado à beira do lago, com meu anjo a meu lado.
- Aquele então é meu passado? - perguntei e ele me respondeu;
- Isso mesmo. Você deve se lembrar agora. Antes de aterrarem parte do lago e construírem o que existe hoje, ou seja, todas as outras casas, o comércio, as vilas de pescadores e tudo que é tão familiar a você, o que havia é o que acabou de ver.
- Sim; lembro-me com perfeição; passei em memória toda minha infância e adolescência. Mas, quem é você? O que está acontecendo comigo?
- Sou Teli, da galáxia de - disse isto apontando para o firmamento na direção sul. Com a aproximação da noite, algumas estrelas já se mostravam visíveis. A lua cheia perfazia um clarão luminoso que se refletia nas águas do lago, no rosto angelical de Teli e em tudo ao redor. A floresta perdia-se na escuridão, mas algumas árvores recebiam com maior intensidade esta luminosidade lunar. Algumas folhas brilhavam e deixavam coar entre si pequenas nesgas de luz. Era possível distinguir alguns pequenos pássaros saltitando entre os galhos, procurando se acomodar e o vulto de algum morcego fazendo ronda nos ninhos.
- A distância seria incalculável se baseada em suas proporções humanas, mas diria que é ali - continuou apontando. - São oito milhões de anos luz em medidas terrestres, mas, como disse, vai além de sua imaginação. Isto não representa o mínimo problema para os nossos habitantes, pois viajamos na velocidade do pensamento; tempo e distância para nós não existem na realidade.
- E estas asas? Tenho você como um anjo vindo dos céus.
- Isto não deixa de fazer sentido; ao menos para vocês, humanos. Adaptei minha imagem as suas crenças em seres espirituais, espíritos desencarnados, protetores, coisas do gênero.
Teli mostrava-se para mim como a criatura mais linda, doce e angelical que já vira em toda minha vida. Suas feições eram um conjunto de ternura, a pela era a de uma criança, embora possuísse a vivacidade de uma mulher. O contorno dos olhos e a expressão no olhar possuíam uma característica, um encanto que fazem das palavras um recurso vão para explicar o seu efeito. O que posso dizer é que nele depositei toda minha confiança, pois me inebriava a alma e me enchia de paz e de felicidade a sua contemplação.
- E o que está acontecendo comigo? - perguntei novamente - acaso morri ou é apenas um sonho?
- Não, você não morreu, mas está sonhando. Mas, não é apenas um sonho como diz, ou seja, não é um sonho como outro qualquer. Venha, vou mostrar a você o futuro.
- Novamente senti aquele suave impacto e, de repente, já estava no ar pelas mãos de Teli. Enchi-me de alegria ao constatar que a paisagem que agora descortinava me era ainda mais familiar. No lugar do lago cujas águas alcançavam quase a minha propriedade; do pequeno ancoradouro com o pequeno barco de papai, o que havia era a nossa vila de casas, com outras nas proximidades; entre elas, ruas de terra arborizadas e, no centro de tudo, a pracinha, com a igreja, o modesto comércio e o movimento das carruagens. O lago continuava ainda imponente, só que, agora, distante, ligando a cidadezinha à floresta. Nos fins de semana ele era a nossa diversão principal. Nadávamos em suas águas, fazíamos piqueniques ou acampávamos.
Conduziu-me Teli para o outro lado e ali pude ver minha família. Agora entendia o que ela queria dizer com: estar sonhando. Só podia ser mesmo um sonho, pois ali estava eu, vendo a mim mesmo, ao lado de Suzi e das crianças. Estávamos em trajes de banho, com exceção de Daniel que não podia sequer colocar um dos pés nas águas daquele lago, o que vou explicar mais à frente. Éramos eu, Suzi, Cristina, a pequena Pâmela e Daniel. Estávamos, naquele instante, em volta de nossa ceia. Sobre a toalha branca, estendida na relva, duas cestas com bolos, sanduíches, uma garrafa térmica prateada, refresco e biscoitos dispunham-se a nossa gula. Suzi tinha os cabelos loiros presos em um coque por uma fita azul e um maiô vermelho e sensual; como sempre, estava linda e sorridente. Servia as crianças ajudada por Cristina, a gorduchinha. Me vi encostado a um tronco de árvore, folheando, o que me pareceu, uma revista de pesca, meu passatempo predileto.
A manhã, de fato, convidava a uma diversão como aquela. O sol estava quente, tornando quase insuportável uma exposição mais prolongada, por isso me recolhera à sombra da árvore. O vento não estava forte, mas era insistente e isto criava ondas nas águas do lago que, vez ou outra, vinham e beijavam a superfície de terra, deixando ali alguns refugos. Era grande a extensão de terra onde nos encontrávamos. Atrás de nós havia a floresta; o silêncio tudo dominava; a paz e quietude fazía-nos um bem incomparável. Não trocávamos aqueles fins de semana por nada que nos fosse sugerido e, mesmo as crianças, afeitas a correrias e algazarras, próprias da idade, deixavam-se extasiar por quele ambiente e parece que usufruíam dele da mesma forma que nós, adultos, embora tivessem seu jeito particular de sentir a felicidade. Não era raro um som emergir do interior da selva: uma algazarra de macacos, um coaxar de rãs ou mesmo o som estridente de uma arara. Era bom porque, não raro, quebrava a monotonia e fazía-nos lembrar que no mundo havia outros seres além de nós.
Senti no meu espírito - e a sensação foi a mais contundente de que uma sensação é capaz, pois não devia ser eu ali outra coisa além de espírito, visto que lá em baixo se encontrava o meu corpo físico - uma tristeza profunda como se antecipando alguma tragédia. Procurei distrair meus sentimentos olhando para o lago, mais precisamente a sua orla; era repleta de vegetação. Os galhos e folhas eram viçosos. Não somente as orquídeas que o margeavam exibiam beleza nas cores vivas de sua floração, mas as mimosas e galhudas acácias faziam um espetáculo à parte quando gaivotas cobriam-nas de ponta a ponta e, quando voavam em bando, o céu se enchia de vida. Voltei-me para Teli, na intenção de lhe indagar a razão de tudo aquilo, mas algo chamou-me a atenção antes mesmo de olhar para ela.
Cabe aqui explicar o que impede Daniel de se aproximar das águas do lago. Por muitas gerações um fato vinha ocorrendo em nossa família. O tetravô de minha esposa teve grande parte de sua vida marcada por fatos trágicos envolvendo membros de sua família. O que mais marcou, não só aquela geração, mas as seguintes, foi a perda de seu filho aos oito anos de idade. A mãe de sua tetravó, por razões de preconceito acabou por impedir a união de um dos filhos com uma moça da região por ser ela pobre e pouco instruída. Por causa disso, envolta por grande tristeza e desespero, a pretendente se suicidou, deixando-se afogar nas águas profundas do lago.
Muito mais do que tristeza foi o imenso ódio que se apossou da mãe da vítima a ponto de rogar uma praga para a família de minha mulher. O corpo nunca foi encontrado a despeito das constantes buscas empreendidas. No auge do desespero, disse a mãe, à beira do lago, olhando fixamente para as suas águas, tendo nos olhos uma expressão de puro ódio e terror: “Eu juro a você, minha filha, que farei a maldição cair sobre aqueles que impediram a sua felicidade e a tiraram de mim. Os homens daquela família jamais terão direito a um casamento. Isto porque, em todas as gerações vindouras, nunca mais nascerão filhos homens e os que, por ventura nascerem, nunca chegarão à idade adulta, pois você não permitirá. Chame, meu amor, todos a sua presença, para que vivam com você na eternidade.”
A começar pelo próprio noivo, que abandonou o lar e nunca mais foi visto - acredita-se que também tenha desaparecido nas águas do lago - os poucos meninos que vieram ao mundo desapareceram antes que completassem o décimo ano de vida. Somente um, que teria sido o avô de Suzi, viram quando, misteriosamente, se afogou. Confirmo que de nenhum se teve notícias e todas as buscas no lago resultaram infrutíferas. A maldição tem-se, portanto, cumprido fiel e amargamente e, quando olho para o rostinho cheio de vida de Daniel, não consigo evitar a apreensão e o medo, mas, procuramos não demonstrar isso a ele. O que levou-me a unir-me a Suzi foi o grande amor que por ela sempre senti. Contudo, confesso que a imensa vontade de possuir um herdeiro homem fez-me lançar, a mim mesmo, um desafio. O amor sempre vence. Esta convicção me dá forças e desejo de lutar pela vida de Daniel; não vou permitir que uma maldição o tire de mim. A maldição está na falta de amor. Não que os outros não tivessem sido amados, mas amo Daniel acima de tudo e mais do que todos.
Por mais que procurasse afastar a perturbação do meu espírito, não conseguia. O que me chamara a atenção foi a mudança repentina do tempo. O que vinha sendo uma temperatura agradável, embora fizesse calor, transformou-se, sem que nenhum sinal o prenunciasse, num vendaval assustador, que fazia trepidar as árvores com tamanha fúria, pouco faltando para que arrancadas do solo fossem pelas suas raízes. Embora sempre fosse comum este fenômeno, nunca o vira tão violento e assustador. Tal era o desespero das crianças que Suzi não conseguia controlá-las, pois estava também apavorada. A toalha sobre a areia simplesmente levantou vôo e todos os objetos foram lançados a metros de distância, espalhando-se ao longo da praia, alguns desaparecendo de vista. Eu, lá em baixo, tentava de alguma forma acalmar Suzi e as crianças. Todos correram em minha direção; ordenei que se agarrassem aos troncos das árvores. Eu era forte, mas, mesmo assim, senti-me balançando com a força incomum da tempestade como se fosse sair do chão a qualquer momento.
Flutuando acima de tudo, imune a tudo que se passava lá em baixo, olhava a figura do meu anjo como a suplicar-lhe que fizesse alguma coisa. Ela entendeu minha expressão e me disse com ternura:
- Tudo vai acabar bem; prepare-se para entrar em cena.
Senti que poderia, na condição de espírito, interferir de alguma forma naquele acontecimento, mas não sabia como. Tentei alçar um movimento, mas algo me impedia; era como se preso no ar estivesse, nenhuma ação correspondia a minha vontade.
- Espere; ainda não é o momento - disse Teli.
O tormento continuava. O vento era cada vez mais forte e devastador. As águas do lago pareciam tomadas de fúria incomum; era como se, ali por baixo, houvesse vulcões em erupção. Elas subiam em jatos fortíssimos que pareciam flechas lançadas em direção ao céu. Subitamente, desaparece a luz solar e uma escuridão moderada toma conta de tudo. Os jatos de água agora caíam, mas não de volta ao lago, mas sobre a areia; era o fim do mundo diante da minha visão assustadora e impotente.
Uma força incontrolável começa a querer arrancar Daniel do tronco da árvore em que se agarrara. Suzi entra em desespero ao vê-lo lutando em vão. Não havia como socorrê-lo, pois todos precisavam da força dos braços para se protegerem contra o vendaval. As duas meninas, auxiliadas por uma repentina presença de espírito, estavam, cada uma delas, protegidas pelos corpos meu e de Suzi. Mas, Daniel, logo ele, não tivera tempo de buscar socorro e agora lutava desesperadamente para não ser arrastado. No mais profundo pesar lembrei-me da maldição; aquele então seria o momento crucial em que algo deveria acontecer. Pressenti que perderia o meu filho para as águas do lago, posto que elas estavam naquele momento enfurecidas como se aguardando o momento de engolir Daniel.
Vi que era isto que estava prestes a acontecer. Daniel soltou-se do tronco e foi apanhado pela água que já havia inundado o terreno. Ele caiu deitado e começou a ser puxado, mas lentamente. A água trazia o corpinho de Daniel e ao mesmo tempo retrocedia, de volta ao seu lugar de origem, o lago. Desesperados, só nos restava olhar a cena, na esperança de que um milagre pudesse salvar nosso filho.
- Salve-o, por favor! Faça alguma coisa! - gritava Suzi aos prantos e eu não sabia o que fazer. Se me soltasse da árvore, certamente levaria Isabel, a caçula, também para um destino trágico. Neste momento, meu anjo, com uma tranquilidade própria dos espíritos superiores, apontou na direção do meu eu real e disse solenemente:
- Agora vá, é a sua vez de agir!
E, com outro gesto e num átimo de segundo, fez-me descer sobre meu eu real agarrado à árvore e me senti desaparecer dentro dele. Era como se uma força ou um poder descomunal tivesse de mim se apossado e eu não sentia mais a força do vento, embora estivesse este ainda mais forte. Soltei-me da árvore, tendo Isabel segura por um braço e, em três ou quatro passadas alcancei Daniel, já quase sendo tragado pelas águas do lago. Estas, ainda mais enfurecidas, vieram sobre mim em forma de ondas, mas batiam e voltavam, batiam e voltavam, sem conseguirem o intento de arrastar-me; eu parecia preso ao solo e nada movia-me do lugar. As crianças, firmemente protegidas em meus braços, eram também a imagem da confiança.
Finalmente, após outras tentativas frustradas, elas retrocederam, desistindo de apanhar-nos. Fez-se de repente uma calmaria, não só em toda a extensão do lago, mas a ventania cessou por completo e aquela paz comum ao local voltou a se fazer presente. Novo impulso e eu me senti flutuar, encontrando-me em seguida ao lado da figura do meu anjo; aquela figura sempre terna e amorosa, sempre a me envolver com sua aura mística. A um gesto seu me vi novamente em viagem e já estávamos em época anterior, sentados à beira do lago.
- Agora entendo; aquela então é a salvação de Daniel?
- Sim, e você será o responsável por ela.
- Mas, sou um simples mortal; como posso conter as forças da natureza?
- Mas, não é você quem irá conter as forças da natureza e sim, eu. Sou o seu poder maior, o seu Eu verdadeiro, para o qual não existem maldições de espécie alguma. Isto não é um sonho; nem sempre os sonhos são sonhos. O espírito precisa visitar regiões distantes onde pairam os reflexos dos mais profundos pensamentos arraigados no subconsciente; o subconsciente jamais dorme.
- Quer dizer que estou dormindo, estou sonhando?
- Está dormindo, mas não está sonhando; não nesta noite. Está viajando astralmente, visitando cada escaninho de sua mente subconsciente. A experiência que tive permissão de fazê-lo vivenciar durante a noite e interferir nos resultados foi esta que acabou de passar. É a que mais fortemente vinha influenciando sua vida e de toda a sua geração, mas isto acabou a partir de hoje.
- Você é espírito?
- Como falei, sou seu Eu maior, sua consciência Divina que tudo sabe e tudo vê.
- O que vi vai então acontecer no mundo real?
- Sim; mas Daniel está salvo, não precisa mais se preocupar com isto. No entanto, terá que passar pela experiência; impossível fugir a ela, é o seu predestino. Alegre-se então com o fim dado à maldição. - E, lendo meu pensamento, prosseguiu. - Ao acordar, lembrar-se-á de tudo perfeitamente. Saiba, no entanto, como usar as palavras ao dar explicações. Diga apenas que foi o poder da fé, pois estará em mim e eu em você.
Dizendo isto, desapareceu. Durante o café daquela manhã, à mesa com Suzi, eu era só alegria e confiança.
- Sabe; somos a família mais protegida que existe sobre a face da terra. E, quanto ao Daniel - acrescentei, olhando o seu rostinho dourado enquanto dormia - garanto a você, viverá muitos e muitos anos e morrerá bem velhinho, pois nada de mal jamais lhe acontecerá.
- Acordou inspirado! - ela disse, sorridente e admirada - quem contou para você, uma cegonha?
- Não exatamente, mas possui asas - respondi, mostrando meu sorriso enigmático.