Uma estranha criatura
Este e outros contos estão no livro "As luzes de gás neon", do autor.
Uma estranha criatura
As pessoas que circulavam por aquela área do centro da cidade o conheciam. Figura sempre a caminhar por aquelas ruas, a sentar nos bancos das praças, carregando um saco nas costas, com a entrada amarrada de grossos barbantes. Alguns até conheciam a marquise onde se abrigava para dormir.
Embora maltrapilho, suas vestes eram limpinhas. Não se sabia onde eram lavadas. A face envelhecida, castigada pelo sol e pela vida, não permitia estimar com precisão a sua idade. Os longos cabelos desgrenhados escapavam pelo gorro vermelho – certamente doado por alguém - que protegia sua cabeça do sol. Apesar do modo como vivia, tinha uma boa aparência. Levava costumeiramente consigo uma garrafa com água.
Nas mãos conduzia dois livros. Percebia-se que um era a Bíblia e o outro uma obra de Nietzsche: “O Crepúsculo dos ídolos”, o que o tornava ainda mais misterioso. Passava horas a lê-los. Às vezes em voz alta. Quem sabe já os tivesse lido várias vezes? Não se sabia se possuía outros livros. Parecia alguém letrado. Gastava parte do tempo contemplando a beleza dos jardins e o ir e vir apressado dos transeuntes, como a querer decifrá-los.
Não se sabia se tinha família. Nunca foi visto com ninguém. A solidão, as ruas, a praça e o seu abrigo noturno, eram suas companhias. Tentativas foram feitas para o tirarem do trecho por onde circulava. Todas infrutíferas. Seu lar era ali e acolá, tendo o dia e a noite como seus aliados.
Não era dado a muitas palavras. Nem sempre respondia às perguntas que lhe eram feitas, mas atendia a todos com um largo sorriso, a revelar uma completa e bela dentadura. Não passava necessidades. As pessoas sempre lhe traziam algum alimento, roupas, agasalhos e, às vezes, dinheiro, os quais agradecia com o mesmo sorriso. Além disso, tinha caído nas graças de um português dono de um restaurante, que lhe servia as refeições básicas e onde, certamente, satisfazia suas necessidades fisiológicas, inclusive banhar-se. Em troca, varria a calçada do estabelecimento.
Eram muitas as especulações sobre aquele homem e o conteúdo do saco que carregava, o qual não permitia que ninguém o tocasse. Alguns diziam ser um ex-empresário rico que teria falido e que agora passava por momentos de instabilidades emocionais. Outros, que talvez ele fosse um intelectual excêntrico, que resolveu viver uma vida diferente e estaria ali por algum tempo a encontrar-se consigo mesmo ou, ainda, um religioso que assumira a sua “franciscanidade”. Quem sabe não fosse – indagavam alguns - alguém sem o domínio de suas faculdades mentais e pudesse oferecer algum perigo à sociedade? Havia ainda os que pensavam ser ele o resultado do abandono do lar, de onde teria sido expulso desde cedo, por ter cometido algum malfeito ou causado algum desgosto. “Deve ter sido alguma decepção amorosa” – afirmava um curioso, com ar de entendido no assunto. Especulações eram o que não faltavam. Por último, os que entendiam ser ele mais um malandro, um vagabundo, que deveria estar trabalhando ao invés de servir de peso ao governo e à sociedade.
E o saco que conduzia com tanto cuidado? O que conteria? Também eram muitas as conjecturas. “Pelo volume e formato, deve ser algumas roupas” – dizia uma senhora, enquanto olhava o saco a distância. “Não deve ter nada de valor” – assegurava outro curioso. “E então porque o segura com tanta força e não permite que ninguém dele se aproxime” – ficavam a perguntar-se. Talvez, além de roupas, contivesse algum alimento e outros livros. Havia quem insinuasse a existência de drogas.
Quando se recolhia sob a marquise que o abrigava, tinha todo o cuidado de usar o saco como travesseiro. Assim não seria surpreendido por alguém que quisesse leva-lo. Seu sono era leve, e apesar de viver nas ruas não se sabendo desde quando, os alimentos que recebia das pessoas e mais as refeições que fazia no restaurante do português, mantinham-no forte.
Passado algum tempo, a misteriosa criatura simplesmente desapareceu. Os que o viam com frequência sentiram a sua falta. As especulações do que poderia ter acontecido surgiram de toda a parte. Teria morrido e sido sepultado como indigente? Teria sido vítima da violência urbana? Estaria hospitalizado em algum manicômio público, por ter contraído alguma doença infecciosa? Teria enlouquecido de vez e sido levado para algum sanatório? Ou apenas teria completado o seu estágio de mendigo e retornado à sua verdadeira vida? Nenhuma certeza se tinha do ocorrido.
E o saco? O que fora feito dele? O que continha? Onde o havia deixado? Alguém roubara? - Eram indagações também sem respostas.
Dias depois foi encontrado sobre um dos bancos da praça onde costumeiramente sentava, um saco que parecia ser aquele que era carregado com tanta segurança por aquela enigmática criatura. Ninguém ousou abrir. E se de alguma forma fossem incriminados pelo seu conteúdo? E se houvesse drogas? Chamaram um policial, que se aproximou fazendo-se acompanhar de outras autoridades civis e eclesiásticas e muitos curiosos. Não iria assumir sozinho o risco de abrir aquele misterioso invólucro.
Diante da ordem de que ninguém se aproximasse, o policial desamarrou os grossos barbantes que fechavam a boca do saco. Algumas folhas de papel voaram de dentro dele e logo foram levadas para longe pelo vento. Ninguém tentou alcança-las. Nada havia escrito nelas. Finalmente descobriram o que ele continha: além das folhas de papel em branco, um par de tênis bastante usado, algumas peças de roupas e dinheiro, muito dinheiro. Notas de cem reais e até alguns dólares. Não se soube exatamente a quantia porque foi levado e contado na delegacia. Os seus destinos até hoje não se tem conhecimento: nem da estranha criatura nem do conteúdo do saco.
Restou uma última indagação: pretendia escrever um livro?