CABEÇAS

CABEÇAS

POR ROOSEVELT VIEIRA LEITE

José Freire é a antiga terra da família Freire. Sobre isso não vou contar, contudo, dizem os mais velhos que por aqui os homens perderam suas cabeças...

- Encontraram um corpo sem cabeça no matagal próximo do Portal da cidade.

- Hoje em dia num se sabe se se volta mais pra casa.

- Pois é, e agora a moda é matar e arrancar a cabeça. Esse é o terceiro corpo sem cabeça.

- E como foi mulher? Cortaram a cabeça como?

- Parece que foi de foice.

- Num diga?

- Num foi o que? Passaram a foice e pronto o finado perdeu a cabeça.

- Mas é uma barbárie aqui em José freire. Quem diria. Num escapa mais lugar algum do mundo.

- E a gente conhece quem foi a vítima?

- Não, mas, logo saberemos, aqui, em José freire nada fica escondido muito tempo.

A pequena cidade do agreste sergipano acordou apavorada com mais um homicídio. Os casos de corpos sem cabeça, agora, somavam três. O povo não queria mais sair de casa e a conversa se espalhava nos quatro cantos das terras de São Roque e Nossa Senhora da Boa Hora.

- E o que é que diz a policia?

- Nada.

A linha de investigação era os doentes mentais. Contudo, todos os devidamente investigados tinham álibis perfeitos nos dias dos assassinatos. Isso é o mesmo que dizer que as autoridades não sabiam coisa alguma e que mais gente, certamente, ia morrer. A cidade do vale do rio Vaza-Barris que avista de longe a serra de Itabaiana ainda não conhece o progresso nem o movimento das cidades grandes. José Freire é lugar de gente honesta e trabalhadora. Os crimes dos corpos sem cabeça estavam angustiando a todos, todavia, ao mesmo tempo, fazia a curiosidade do freirense aumentar. Quando acharam o primeiro cadáver a metade da população velou o coitado, agora, o terceiro caso, o povo todo saiu pra ver o ocorrido. A polícia de Itabaiana veio dar reforço aos colegas freirenses.

- A população está revoltada.

- Num sei se é revolta ou curiosidade.

- É revolta e curiosidade.

- Num diga amigo. Curiosidade com o que?

- Essas coisas de corpo sem cabeça só ocorre em cidades grandes.

- O crime está ficando cada vez mais especializado até nos sertões.

Com mais de 16 mil habitantes a comunidade de José freire marchava rumo ao futuro sob o trabalho sagrado de seu povo. Desde o início da colonização com as Sesmarias, o povo do agreste aprendeu que o trabalho constrói e muda realidades. O crime, então, em José freire não tinha lugar.

- Mulher quem diria, aqui, em José freire essas coisas. Mas, quem foi, hein?

- Num sei não. Deve ser gente de fora. Daqui, eu acho que num foi não. O povo daqui num faz isso, não, mulher.

- Mas, como, não, mulher? Em José Freire tem gente de todo tipo.

- Pois, eu moro aqui desde menina, nunca vi uma coisa dessas.

As pessoas diziam o que sabiam. Os comentários aumentaram pelo meio da semana. A população estava atenta ao radio que hora ou outra mencionava o ocorrido triste de José freire. Mas, o tempo acalmou a população. Aos poucos a vida voltava ao normal. A feira da sexta trouxe gente de todos os povoados. O povo se reuniu na Praça 13 de Julho para comprar e vender, e nos momentos livres, prosear.

- Num si sabe quem fez aquelas barbaridades num é seu Paulo?

- Nem vamos saber. Hoje em dia o crime é organizado.

- É, tá muito organizado mesmo. Mas, o fato é que parou.

- Graças a Deus.

Infelizmente, na noite de sexta feira, quase a meia noite, encontraram próximo ao chafariz outro corpo sem cabeça. A população, na madrugada, encheu a lugar e o ar de perguntas. Quem é? Como foi? Tá morto mesmo? Pela manhã a TV de Aracaju chegou para cobrir a matéria:

“Encontraram sentado encostado à mureta do chafariz, entre torneiras e garrafas peti o corpo de José Olegário da Silva, um agricultor residente em José Freire. Agora são quatro corpos sem cabeça no agreste sergipano. As autoridades estão trabalhando na pista de um matador em série, um serial Killer”. Quando as pessoas ouviram a expressão: “serial killer” entraram em delírio.

- Mas, aqui em José freire? Isso num é verdade, é verdade?

- É verdade, eu já sabia. Disse Thereza que corta cabelo.

- E é Thereza? Você já sabia? Então porque num me falou semana passada. Mas, num era o suspeito um doente mental? Estão matando é toda semana.

- Não, num é toda semana. É de quinze. E quem mata e corta a cabeça num é doente mental, não?

- Num faz diferença, mulher. Estão matando. Isso é fato científico.

Novamente, o povo se apavorou; desta feita, a ordem social era: “Todos em casa até que o monstro fosse capturado”. As viaturas policiais de Itabaiana e Aracaju cortavam a pequena cidade a todo instante, e isso dava certa calma as pessoas, sem, contudo, matar lhes a danada da curiosidade.

- Oxente! Oxente! Quer dizer que agora o povo num sabe de nada? Isso é cárcere privado! Esse povo de cidade grande vem pra cá e pensa que em José freire num tem gente com cabeça. Aqui, o povo também pensa! Alardeou seu Osvaldino nos microfones da radio Princesa da Serra, em Itabaiana. Era um protesto contra a política de segurança imposta pelas autoridades e pelo prefeito local Mundinho da Cajaíba. Vossa Excelência havia pedido às pessoas que saíssem de casa apenas quando muito necessário e evitassem andarem à noite sozinhas, uma vez que os assassinatos ocorriam no horário noturno; o prefeito ainda acrescentou: “Eu vos peço a compreensão em nome de São Roque e de Nossa Senhora da Boa Hora”.

Nada disso mudou o quadro funesto da pequena José freire. Os corpos continuaram aparecendo. O povo parou de conta-los, o terror se instalou no sertão do agreste. O silêncio calou a voz da cidade que se refugiava na paróquia, nos braços de seu vigário João Ernestinho.

- Pra onde tu vais moça?

- Mãe, hoje é dia de vigília pelos assassinatos dos “corpos sem cabeça”.

- E é minha filha?

- É mãe, os católicos e os protestantes se uniram para fazerem todas as sextas feiras a vigília da salvação de José freire. A igreja crer que isso é coisa do demo mãe.

- Coisa do demo o que minha filha?

- Vamos comigo, mãe!

- Vá com Deus, minha filha, eu fico aqui com minha novelinha.

Apesar de a fé ser grande as mortes continuaram. Definitivamente, nem Deus e nem a polícia sabia coisa alguma sobre o serial killer. A pequena José Freire entrava no terceiro mês de más notícias e na quarta semana de toque de recolher. As autoridades estavam na língua do povo e este não poupava o verbo para expressar sua revolta. Foi nesse balaio de gato como diz o povo da terra que surgiu um nome muito especial na comunidade de José freire. Quando o povo se desanimava da vida, pois, nem nas calçadas andava mais apareceu um herói freirense: “Maximiliano”. O rapaz nascido e criado na Serra das Minas entrou em José freire, em plena Rua João Pessoa e Avenida José Carlos Ribeiro de Oliveira dizendo que a culpa dos crimes é da República.

- República é a mãe dele, filho da peste! Tá mangando do povo, eh?

- Pois, num é! Essa criatura é doidxa. Onde já se viu?

- A República deve ser as quengas dele. Estou sabendo que Maximiliano é chegado a uma rapariguinha.

- E é Rosalvo?

- Num é o que! Maximiliano saiu das Minas porque deixou duas buchudas.

- Mas, rapaz num conte! E agora anda dizendo que ver a Deus?

Na pracinha onde tem o churrasquinho no esperto mais gostoso de Sergipe, Maximiliano parou para seu primeiro discurso ao povo de José freire. O rapaz branco de seus trinta anos se vestia como um frei franciscano e carregava uma cruz de madeira de quarenta centímetros por setenta. Ele a pendurou num pé de Juá e fez o sinal da cruz:

“Monarquia! Monarquia! Eis a solução do sertão! Quando veio a República o povo do sertão foi abandonado, e isso porque o Deus que coroa todos os reis se apavorou com a maldade humana. A república só cuida de cidade grande já dizia meu antecessor Antônio Conselheiro. Vejam Aracaju! Vejam suas avenidas, seus prédios, sua beleza! Tudo está perto do rico e da propriedade privada. O pobre que é o sertanejo nas terras da praia só tem esgotos fétidos e roubalheira. A culpa das mortes é da República, não duvidem!”

O povo ouvia a fala de Maximiliano com um pé atrás. Houve momentos de tumulto e isso chamou a atenção da polícia. Mais uma vez a paz reinou na avenida mais importante do município. E o profeta freirense continuou sua fala sob a vigilância atenta da lei.

“Monarquia! Eis a vossa salvação! Qual o regime político do céu? Pergunte a vossos sacerdotes! Pois, eu vos digo: ‘No céu tem um rei, e ele ama o sertão’. Colocaram nas vossas mentes que todo homem tem uma cabeça. De onde vem o dito popular: ‘Cada cabeça, seu guia’. O senhor Jeová me deu os olhos do Conselheiro e eu vi com eles. E vi que nas terras do agreste as mulas não tem cabeça. Aqui é terra de mula sem cabeça, de lobisomem e de sacis. Digam vocês a vocês mesmos! A República os fez acreditar que essas terras são vossas e que todos são iguais perante as leis. Eis a causa de perderem as vossas cabeças”. O céu fechou, as nuvens ficaram pesadas e a chuva caiu caudalosamente sobre o povo. O profeta de José freire continuou na praça e segundo populares não se molhou: "Não caiu nele, uma gota d’água”.

A notícia de que um novo Antônio Conselheiro aparecera no sertão se espalhou rápido pela região do agreste sergipano. Logo as caravanas e romarias foram organizadas para a cidade de José Freire, e com isso, o povo se esqueceu das mortes.

- Comadre, ontem, mais um corpo foi encontrado. Mas, num é de gente daqui não.

- Por quê?

- É por que é preto.

- Como assim criatura?

- Aqui, em José freire num tem preto.

- Tem, sim, senhora, em José freire há lugar para todos.

Os comentários eram poucos e miúdos. O que estava na alta na pequena cidade de José freire eram as falas e os feitos de Maximiliano.

- Você sabia que ele curou dona Raimunda da padaria?

- Não, eu sabia que ele é meio doido.

- Doidxo o que? O homem é lido, estudado. Hoje ele só falava no tal de latim.

- Latim! Ah, e isso é coisa de se falar? Quem entende isso aqui em José freire?

- Só o padre Ernestinho.

- E por sinal, o que é que Ernestinho diz desse tal profeta?

- Ernestinho anda muito calado. Até agora nada disse desse homem. Com os relatos dos milagres e prodígios de Maximiliano as autoridades decidiram ouvir a estranha personagem da Serra das Minas.

- Maximiliano como vai seu pai e sua mãe, tão bem?

- Meu pai e minha mãe é a monarquia. Meu Deus e meu rei têm seus súditos. O prefeito Mudinho da Cajaíba coçou a barbicha depois o saco escrotal e piscou o olho esquerdo para o Tenorzinho como que dissesse: “Olha o doido aí”. A conversa foi pouca. O prefeito entendeu que se tratava de um débil mental. “Mas, o senhor vai deixar esse cara solto?” Tenorzinho insistiu com vossa excelência para tirá-lo das ruas. “Se preocupe não companheiro, o rapaz é um coitxado”.

Maximiliano, o coitado, reunia todas as tardes na praça uma boa quantidade de gente. Depois da reza do terço, o profeta do agreste falava suas ideias antirrepublicanas. Seis meses depois, eram 20 ônibus das mais diversas localidades do agreste, a notícia havia de fato se espalhado pelo sertão: “Antônio Conselheiro voltou”. Contudo, sua volta não impediu que as mortes continuassem.

- Etelvina, mulher! Acharam mais um sem cabeça.

- Foi? Foi na estrada da barragem, foi? Esse era filho da terra e vai dar o que falar.

- Por que mulher?

- Ele é parente dos Macaíbas.

- Num diga!

- É mulher; os macaíbas que foram políticos daqui nos anos quarenta!

- Como era o nome dele mesmo?

- Dizem que o finado achado acéfalo era José Sobrinho Macaíba Neto. Tataraneto do finado Juvêncio Macaíba, um dos primeiros prefeitos de José freire.

A morte do Macaíba alvoroçou o município inteiro. O delegado plantonista de Itabaiana solicitou um destacamento de 10 viaturas para José Freire. A comunidade estava alarmada e com medo, entretanto, a igreja lotava as noites e as tardes a praça do churrasquinho. A polícia entendeu que Maximiliano não podia mais reunir pessoas devido à precariedade da situação. Maximiliano, então, subiu a Serra do São José: “Foi no monte que o mestre pregou, assim, será comigo”. Disse consigo Maximiliano, o profeta do agreste. A polícia pensou ter se livrado de um problema, o tempo, no entanto, revelou que um problema maior havia surgido. Multidões subiram a serra para ouvir Maximiliano:

- Padre Ernestinho, o tal Maximiliano está tirando o povo da missa.

- Não senhora, minha paróquia nunca esteve tão cheia, dona Cosmerina.

- E é, sua santidade?

- Sim, senhora. É nos momentos de dificuldades que o povo busca a Deus.

- Mas, esse rapaz fala mal da igreja!

- Bem, cada um diz o que quer. Mas, afinal, quem é esse jovem senão mais um coitado do mundo, carente de juízo e de Deus?

- É sim senhor.

Os crimes, apesar do forte aparato policial continuavam. O serial killer do agreste não temia a ninguém. Desta feita foi o filho do dono do “Mercadinho Pague Nada”. A psicosfera de José freire fechou. O pânico, o medo, a curiosidade de alguns, e a devoção de outros tornaram a cidade frenética e movimentada. E isso preocupava o prefeito e o delegado que insistentemente diziam nas rádios de Itabaiana que o povo ficasse em casa. Mas, nada como a pulsão religiosa para tirar o povo de casa. Quanto mais Mundinho da Cajaíba pedia a comunidade calma e cautela o povo saia de casa em busca de Deus. Um grupo de Jovens decidiu subir a serra e passar sete dias com o profeta. Seus pais ficaram apreensivos, mas, a fama de Maximiliano entorpecia o povo. No final dos sete dias os jovens relataram o seguinte:

“Nós entramos em estado de transe depois que Maximiliano riscou um pentagrama com carvão sobre uma lápide ao lado da capela. O céu estava escuro e cheio de estrelas. Vimos no transe que a cidade de José Freire era uma cidade do Império Colonial. Nela havia poucos estabelecimentos comerciais, e a maioria dos empregos era de funcionários públicos. O povo costumava sentar às tarde na calçada enquanto seus poucos escravos faziam o trabalho pesado. À Tardinha desfilavam na rua principal os carros que vinham da roça. Uns traziam milho, outros amendoim, e outros qualquer coisa. Havia, próximo onde hoje é a Igreja da matriz uma construção de madeira, era uma guilhotina. Nela, todos os que discordassem das crenças comuns teriam suas cabeças cortadas fora. Foi assim, segundo o transe, que todos passaram a acreditar nas mesmas coisas. A voz uníssona, segundo, Maximiliano é conquistada a força”. O fato mais estranho testemunhado pelo grupo de jovens conselhenses foi o episódio do grupo escolar. Segundo eles, em José freire só havia um grupo escolar. Nele, as crianças ao terminarem o ensino fundamental, tinham suas cabeças cortadas fora e no lugar era posto a cabeça de seu parente falecido mais próximo. Dessa forma, os educadores pensavam construir mais uma geração. O relato dos jovens chocou a nata social. Maximiliano foi acusado de anarquia e uso de drogas entorpecentes. “É preciso prender esse rapaz o quanto antes”. Disse o professor doutor Oviêdo Dias Sobral. “Esse rapaz passou dos limites”. Disse o Padre Ernestinho com um tom de decepção. “Maximiliano tinha tudo pra da certo”. Afirmou o prefeito Mundinho da Cajaíba em discurso na Assembleia Legislativa.

De profeta Maximiliano da Serra das Minas passou a bandido. A polícia fez diligências nas grotas da Serra do São José e nenhum vestígio de sua contraditória pessoa foi encontrado. Um jovem cujo nome era Macdonald Pereira, também discípulo do Conselheiro comentou em casa que Maximiliano havia afirmado que o assassino poderia ser encontrado no prédio velho da antiga prefeitura de José freire. Esse é um prédio fechado de alvenaria que não vê gente há quase um século. As pessoas comentaram o fato por um tempo, depois, o povo se calou. A história chegou aos ouvidos do subdelegado Macedão, mas, o mesmo alegou não dar ouvidos à asneiras de fofoqueiras. As investigações do serial killer já tinham um suspeito o qual seria revelado tão logo o DNA do mesmo fosse comprovado. Segundo o cabo Ximenes, o suspeito era natural da Boa Vista e tinha uma longa ficha psiquiátrica com passagens pela São Marcelo (Manicômio e Hospital psiquiátrico de Aracaju) e pelo CAPS de José Freire. O nome não seria difícil de concluir-se, mesmo assim, o povo de José Freire estava sem conhecer o maníaco assassino das cabeças.

- Roberto, Roberto.

- Sim, Germano, fale logo, num tá vendo que essa roda tá me dando trabalho. O mecânico de autos mais famoso de José freire estava atento ao radio e a seu trabalho na oficina São Miguel Arcanjo onde você tem seu carro cem por cento protegido.

- Encontraram mais um cadáver, e desta vez além da cabeça cortaram a genitália.

- Como?

- Rapaz, encontraram o bilau do homem na boca da cadela Lupita. A danada estava ao lado do chafariz do Celão.

- Rapaz, foi mesmo! É o fim do mundo em José freire. Mais uma vez a população se trancou em casa. Os homens não queriam mais sair. Suas mulheres lhes diziam: “Tá vendo o fim do mundo chegou. Agora vocês aquietam o facho, ou fazem assim, ou txau bilau”. A revolta, no entanto, era muita. O comercio caiu setenta por cento. As escolas fecharam as portas, somente a igreja e o grupo fiel ao Conselheiro Maximiliano se reuniam nas noites frias do inverno freirense.

Foi numa noite de segunda feira que o caldeirão estourou de vez. A polícia cercou a pequena José Freire. Houve uma denúncia que o serial killer estava na cidade. O DNA do moço da Boa Vista foi negativo, a polícia baseava se, agora, na denúncia de uma senhora que viu uma movimentação defronte ao prédio velho da antiga prefeitura. Segundo a denunciante, um homem de cor entrou no prédio pulando o muro, depois se ouviu gritos dentro do imóvel. A tropa de elite do município de Itabaiana foi acionada. Logo o prédio velho foi cercado. A televisão de Aracaju cobria toda a empreitada policial, a cinquenta metros de distância separados por uma faixa amarela estava o povo que falava de tudo e sobre tudo:

- Até que fim meu Deus essa história chegou ao fim!

- Será mesmo?

- Ah, o homem tá cercado ai dentro, e tem polícia pra todo lado. É o fim mesmo desse vagabundo!

- E como é que você sabe que é ele mesmo? Você o viu?

- Não! Mas, tá todo mundo dizendo que ele está ai.

- ah, sim.

As pessoas munidas de uma certeza inabalável começaram a gritar a uma só voz: “Justiça”. Alguns arruaceiros quiseram invadir o prédio com pedras a paus nas mãos. Mas, a polícia os prendeu mesmo antes que cruzassem a rua. Para todos os fins aquela noite seria o desfecho de uma história que muito assustou a pacata cidade de José Freire no estado de Sergipe.

Finalmente, o delegado de Itabaiana chega. Era o momento da invasão. O delegado usa o megafone pedindo que o meliante se retire em paz da propriedade. Nenhum som é ouvido exceto os gritos do populacho: “Entra e mata logo esse filho da peste”. Os ânimos estavam alterados. O delegado Edir resolve, então, dar a ordem de invasão. O povo se afasta, e com fuzis e metralhadoras na mão a polícia põe abaixo a porta selada com alvenaria. Um trator bulldozer da prefeitura fez o serviço para a polícia. À porta ficaram três policiais, e a tropa entrou no imóvel escuro.

O prédio velho da prefeitura foi construído no século vinte. Foram muito bem construídos seus compartimentos. O tempo tem seus meios e o velho prédio fora isolado para reforma e essa nunca aconteceu. A saleta de entrada estava cheia de teias de aranhas e poeira no chão. Alguns sacos de lixo e papeis velhos faziam a recepção da mesma. O escuro fora vencido pelas lanternas dos policiais. De súbito, do escuro ouve-se vozes e sons de pisadas. As pisadas eram aceleradas nas quatro direções dentro da casa. Os agentes militares acharam que era uma reação e responderam com fogo. Os buracos nas paredes da saleta e a fumaça de pólvora dividiam o espaço com a sombra do escuro sinistro ao fundo. Pelos buracos das paredes escorria uma liquido vermelho, os policiais entenderam que era sangue. Os agentes da lei em número de quatro entram numa sala maior com um balcão do lado oeste e atrás do mesmo, mesas e armários de escritório. Mais a frente ao sul um pequeno corredor leva o olhar para o fundo. Pequenas esferas de luz vêm de lá e iluminam o lugar. Por volta de 1600, onde hoje é o José Freire, viveram índios, negros e brancos em paz. Durante mais de cinquenta anos as três raças viveram em perfeita harmonia naquela região. Até que chegaram os carros-de-boi e com eles as cercas, depois, as tropas de Salvador para garantir a ordem da nova sociedade. As esferas de luz assustaram os policiais que se esconderam com as armas na mão. As luzes iluminaram o prédio e isso assustou Ximenes e seus colegas. O cabo Ximenes usa o radio para falar com o delegado:

- Edir, a coisa aqui está muito estranha. Acertamos em alguém tem sangue pra todo lado. Mas, não vimos corpos ainda. Tudo aponta para mais de um meliante.

- Certo, entrem e revistem tudo. O prédio está cercado. Ninguém sai dai.

- Agora, tem algo muito estranho.

- O que?

- Não acendemos luzes, contudo, o prédio encontra-se iluminado, e as luzes andam por todo o estabelecimento.

- Como assim?

- Num sei doutor. Os homens estão assustados. Antes que Edir retomasse a palavra para continuar a conversa os policiais ouvem um som agudo como se fosse um gemido. Era um carro-de-boi com dois bois, um preto e outro pardo. O primeiro era conhecido como “Pai Preto”, e o segundo “Pai Caeté”. Atrás do carro de boi pessoas saiam das salas da prefeitura velha de José freire. Todos eram loiros e altos. Eles traziam um globo na mão. As crianças que acompanhavam seus pais cantavam canções que lembravam a terra deles. Aqueles eram os que deixaram a velha terra para conquistarem o novo mundo. Animais e homens acampam-se no salão de reunião do prédio. Houve um silencio sepulcral. Os policiais de olhos arregalados observavam tudo. Ximenes pergunta a si mesmo: “Mas, o que é isso?” “Será o fim do mundo”. O soldado Wilson, filho do Povoado Vermelho urinou nas calças. Seu líquido excrescente correu pelo chão tornando-se visível aos demais.

- Que é isso macho? Tá com medo de que?

- Homem, tu num vê não, é? Tudo isso ai é alma do outro mundo.

- Que nada, isso é efeito visual. Tem alguém muito inteligente ai dentro. Os seriais killers são mentes patológicas muito espertas.

De súbito, tropas de cariris entram na sala e começa a matança. A policia se assusta e atira sem direção, as balas atravessam as pessoas e furam mais buracos nas paredes. O liquido vermelho aumenta. A cena some como fumaça e os agentes da lei se escondem no almoxarifado do prédio. Mais uma vez, Ximenes reporta as condições a seu superior. O delegado Edir envia mais soldados. O povo estava excitado demais, algumas pessoas gritavam: “Deixa eu entrar pra mim matar esse filho da peste”. Outros diziam: “A policia tá com medo de um bandido, isso é um absurdo”. Algumas mulheres rezavam em voz alta para Nossa Senhora da Boa Hora. Já outros, acharam melhor cantar a canção evangélica: “Deus forte”. O povo estava à beira de tomar o controle da situação em José freire, mas, alguma coisa os impedia.

- Ximenes, tá vendo o que eu estou vendo?

- Não.

- É bem ali, rapaz!

- Onde?

- Vindo do lado esquerdo do corredor.

- Sim, estou vendo. E quem é?

- É mais de um, está vendo não?

- São vários. Eram Jesuítas que chegaram da Cajaíba. A princípio o aldeamento Cajaíba viveu momentos de muita paz. Mas, quando a nova ordem foi imposta além mar, os índios curumins tiveram que deixar os padres cortarem suas línguas. As margens do Rio das Traíras ficou cheia de línguas de criança. As crianças não podiam mais falar de seu mundo com sua língua, quando precisavam dizer alguma coisa, um padre lhes emprestava a língua lusitana. Mas, isso não foi tudo. Os policiais assistiram a cena com as armas arraiadas. Foi o dia em que as cabeças das crianças foram exigidas. “Toda criança indígena da Cajaíba deve dar sua cabeça a Cristo”. Os padres aguardavam a fila de meninos e meninas voluntariamente arrancarem suas cabeças e as depositarem aos pés dos sacerdotes de Cristo. “Pra que índio com cabeça?” Questionou o vigário Santos. O costume de arrancar cabeças desceu a Cajaíba e se espalhou por todo o vale entre as serras. Não havia mais índio ou negro com cabeça, e com o tempo até os brancos perderam as suas.

- Precisamos de liberdade! Gritou o vigário do Povoado José freire. Antes de 1919, a cidade de José Freire era povoado de Itabaiana. O vigário Antenor decidiu abraçar a causa da emancipação política de José Freire. Em seu palanque, o sacerdote bradava que os problemas de José Freire era a dependência de Itabaiana.

- Em José freire, nada se resolve! José Freire num tem nada! Estamos à mercê da boa vontade dos políticos itabaianenses! Os polícias que chegaram, mais os que estavam no almoxarifado ouviram os gritos de Antenor, e da multidão que se reuniu no salão da velha prefeitura. Os foguetes estalavam no céu. O povo de José Freire estava em êxtase. Era a hora da libertação.

Os policiais decidiram usar uma estratégia. Era preciso chegar até aos fundos do prédio. Segundo Ximenes e Edir, o bandido, ou os bandidos estavam certamente controlando todo o show de efeitos especiais de algum lugar no fundo do prédio. Ali, havia um quarto anexo.

- Vamos sair daqui atirando. Ai num tem ninguém são somente imagens holográficas. Disse Ximenes em tom baixo.

- Eita, o cabo está bem informado. O bandido, então, quer humilhar a lei. Disse o soldado Mateus, filho do povoado Rio das Pedras. Os policiais, em número de sete, saíram atirando para todo canto. A fumaça de pólvora subiu e ofuscou a visão dos mesmos. Após a investida os homens da lei ouviam gemidos cuja fonte não era localizada. Os gemidos eram semelhantes aos dos feridos na guerra. Uma voz forte e grossa ecoa pelos compartimentos da prefeitura: “Dai-me meus filhos de volta, dai-me suas cabeças e suas línguas; seus sonhos e esperanças”. As paredes, de seus buracos feitos pelas armas de fogo, sangravam sem parar. Os soldados estavam banhados de sangue. “É sangue mesmo”. Disse o soldado Martins ao cabo Ximenes. O líquido vermelho não parava de jorrar. O mesmo começou a sair da prefeitura, e o povo do lado de fora se desesperou.

- Vamos entrar, os soldados estão mortos.

- Está doido rapaz? Eu num entro ai nem a pau!

- É o canso, mataram Ximenes. Uma mulher baixinha morena com cara de índio disse veementemente: “Recebeu o que merecia o safado”. A mulher estava gestante de quatro meses. Outros diziam: “Bem feito”. No meio do tumulto Olegário Mariano, natural de José Freire um rapaz muito bem estudado toma a palavra e fala ao povo:

“Vocês estão enganados. O que acontece é que a policia ainda não encontrou os bandidos. Vejam que as armas ainda estão em posse dos policiais, e se os marginais tivessem o controle delas nós não estaríamos mais aqui”.

Um baixinho de voz fina e semblante de anão gritou de detrás, do povo: “Cala a boca abestado, você sabe de nada”. Com isso o povo rumou na direção do prédio. Os policiais defronte ao mesmo barraram-no com armas em punho. O prefeito Mundinho toma a palavra: “Não se faz justiça com as próprias mãos, calma gente, calma!” “Cala a boca Mundinho, onde está o dinheiro de merenda escolar?” Gritou uma senhora, magra alta, de voz rouca que usava uma peruca vermelha. “É isso, esse povo pensa que a gente a besta”. Mais uma vez a turba tenteou invadir o prédio. O policial Galindo do Amarante, um afro descendente deu um tiro para o alto. O homem esbugalhou os olhos determinados a conter a multidão. Dona Dindin, uma senhora muito conhecida na feira de José Freire, disse ao povo: “Gente o rapaz fala muito serio, vamos esperar mais um pouco”. Um lado da rua gritava eufórico “Eu estou com Mundinho”. O outro lado dizia: “Mundinho coisa nenhuma, vamos entrar”.

Os policiais do lado de dentro do prédio municipal chegaram ao quarto dos fundos. Era um espaço de seis metros de cumprimento e quatro de largura. O piso do lado externo, entre o fim de um corredor e o quarto era antigo. O anexo seria a resposta para a policia. O ar estava ameno, nenhum sinal de movimento. O vento suave vindo do lado de fora refrescava os policiais que estavam um pouco tensos e confusos. A pintura cinza do prédio entorpecia as pessoas. Os policiais entraram no anexo e foram direto para a parede dos espelhos. Nos espelhos eles se viam sem cabeça. Todos os soldados estavam sem cabeça nos espelhos da parede. Eles olhavam entre si, e se viam com cabeças, mas, nos espelhos toda a tropa estava sem a parte de cima.

- O que isso quer dizer?

- Quem sabe estamos enfeitiçados?

- Onde estão nossas cabeças?

Uma voz do fundo frio e escuro do quarto que ficava atrás de um estante de livros antigos disse: “Venham aqui!”

Os soldados foram até a voz. No lugar, ao lado de pilhas de livros, revistas e jornais estava um monte de ossos; eram restos de esqueletos humanos com vários crânios de diferentes tamanhos. “As cabeças foram encontradas; agora, os corpos têm cabeças. Já adiantamos alguma coisa”. Pensaram os policiais ao ver as caveiras.

Não havia mais ninguém, nenhuma alma, nenhum som, nenhum movimento; parecia que não havia pessoas agitadas do lado de fora. Os soldados baixaram as armas e evitaram olhar para os espelhos. “De quem são essas cabeças?” Perguntou Ximenes à tropa.

- São das pessoas que foram assassinadas.

- Não, a quantidade de caveiras é maior que a quantidade de corpos.

- Não havia notado isso. Sim, isso é certo. De fato, a quantidade de caveiras era mil vezes maior que o numero de vítimas do serial killer. “De quem são as inúmeras outras?” Ximenes não entendia o ocorrido. Os soldados e seu líder estavam sem explicação. As paredes produziram um som como um arroto e derramaram mais sangue. Com o cheiro das hemácias as caveiras rangeram os dentes. Os soldados se apavoraram e começaram a atirar e feriram uns aos outros com armas pesadas. Os soldados da tropa de fora entraram em socorro aos seus amigos. Encontraram-nos muito feridos. O povo aproveitou a situação e invadiu o prédio. Ninguém foi encontrado. Nenhum assassino, somente as caveiras. As pessoas foram orientadas a não se olharem no espelho, pois, os espelhos davam náuseas. A multidão voltou para casa. As pessoas falavam sobre o problema, cada um tinha sua teoria, todos falavam de tudo e ninguém sabia, na verdade, de nada. Afinal, e o serial Killer onde estava?

O tempo passou e a prefeitura ficou sobre proteção policial. No entanto, isso não impediu o povo de dar uma olhadinha nos espelhos da prefeitura antiga. “Freitas; toma cinquentinha!” “Pois, não, doutor, entra aí”. O povo foi se olhar nos espelhos da velha prefeitura e se encontraram lá sem cabeças. A febre dos sem cabeça tomou conta de José Freire. Por isso, o povo passou a ter duvida se tinha cabeça. Curiosamente, depois do ocorrido no prédio velho da prefeitura, as mortes cessaram, o serial Killer sumiu e a paz voltou à pequena cidade de José Freire...

FIM

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 03/01/2016
Reeditado em 21/12/2019
Código do texto: T5498831
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