A HORA

Durante toda aquela noite quente, que bem podia ter sido silenciosa, além do ladrar incessante dos cachorros, ouviram-se murmúrios nos quartos do palacete assobradado do Comendador.

Pareceu que ninguém ali dormiu bem, pois logo cedo do dia, lá pelas quatro horas, todos já estavam de pé, na cozinha, comentando entre si o que mais lhes parecia impossível de se acreditar. Todos tiveram o mesmo e impressionante pesadelo quase que ao mesmo tempo. Acordaram sobressaltados e atônitos. Nem todos se lembravam com clareza sobre o que tinham sonhado, mas concordavam entre si que foram atormentados vigorosamente pelo mesmo pesadelo.

Na verdade, nem todos, acrescento, tiveram esse pesadelo coletivo. Além do Comendador, sua esposa, dona Hermengarda e seus oito filhos, quatro homens e quatro mulheres, só quem não sonhou naquela noite fora Dona Glorinha, uma negra que desde criança ajudava na cozinha e o filho pequeno do Comendador, que se chamava carinhosamente de Felipinho, que nessa época tinha apenas cinco anos.

Dona Glorinha quando soube do estranho evento, benzeu-se toda e acendeu três velas para cada um dos Arcanjos São Miguel, São Gabriel e São Rafael, dos quais era fervorosa devota.

Dona Hermengarda observou ainda que os cachorros estavam nervosos desde muito cedo e não sossegaram durante a noite toda. O papagaio tagarela que ficava na cozinha, estava também estranhamente mudo, o que não era muito comum. O Comendador fez pouco caso do assunto e botou a culpa dos pesadelos na comida pesada de Dona Glorinha. Todos riram.

Dona Glorinha ainda sugeriu ao Comendador que chamassem um padre com urgência para benzer a casa, pois coisas assim não eram de bom agouro. O Comendador, avesso a qualquer tipo de crença, desconversou. Chamar um padre para quê? Os padres que fiquem lá com suas bíblias e suas hóstias, escarneceu entre estrondosa gargalhada, seguida pelos filhos, visivelmente nervosos. Na minha casa não entra padre, disse taxativo, encerrando o assunto. Antes tivesse engolido tal ofensa.

Dona Glorinha chamou dona Hermengarda à parte e disse que precisava sair mais cedo naquele dia, pois teria que ir buscar o filho na rodoviária, pontualmente ao meio-dia. Dona Hermengarda concordou, mas antes ela teria que deixar o almoço pronto e que levasse com ela o menino Felipinho. Assim ficou então acertado entre as duas mulheres.

A manhã transcorreu normalmente, como de costume. Como era um dia de sábado, todos ficaram em casa. O Comendador sentou-se na enorme varanda do sobrado para ler o jornal e beber uns aperitivos para esperar o almoço. Os filhos do Comendador ficaram na piscina e as meninas sentadas nos bancos do jardim entre conversas e risinhos de adolescentes. Uma manhã agradável.

Às onze horas, Dona Glorinha terminou o almoço e conforme havia dito, saiu acompanhada do menino Felipinho rumo à rodoviária para buscar o filho. Segundo ela, tencionava retornar ao sobrado lá pelas duas horas, ainda a tempo de pôr a mesa para o almoço. Dona Hermengarda sossegou e disse que ela não se avexasse. Poderia tirar a tarde de folga e só voltasse no fim do dia. E assim o fez.

Ao meio-dia em ponto, todos estavam sentados à mesa do almoço: o Comendador, dona Hermengarda e os oito filhos do casal. Um dos rapazes observou que o papagaio havia sumido e não foi encontrado em lugar nenhum da casa. Dona Hermengarda também avisou ao marido que os cachorros, que eram dois, da raça rottweiler, pularam o muro e fugiram para o terreno ao lado. O Comendador impassível, prometeu ir buscá-los depois do almoço. O almoço então foi servido.

Às treze horas em ponto, ouviu-se um ruído surdo seguido de um assobio. Ninguém deu importância. No minuto seguinte o centenário palacete assobradado de três andares desabou de uma vez só, ruindo sobre todos, elevando uma descomunal coluna de poeira nunca antes vista. O barulho foi tão grande e ensurdecedor que foi ouvido a quilômetros de distância. Uma impressionante montanha de destroços tomou o lugar do sobrado, afundada no chão pelo peso descomunal da construção centenária, abrindo uma cratera de tão grande porte, como se um terremoto tivesse passado por ali.

Longe dali, dona Glorinha, o filho dela que foram buscar na rodoviária e o menino Felipinho, mal sabiam o que tinha acontecido, mas o que o menino falou, a fez estremecer da cabeça aos pés. Sem ver para quê, o menino virou-se para ela e disse pausadamente: “Agora estão todos definitivamente enterrados!”. Claro que dona Glorinha só foi entender horas depois e o menino não falou mais sobre o assunto.

Anos depois, Dona Glorinha, “como um fantasma que se refugia na solidão da natureza morta”, voltou ao local onde antes era o robusto e centenário palacete assobradado do Comendador e só encontrou um enorme vazio.

Ali mesmo desceu ao “tenebroso abismo, onde a dúvida ergueu altar profano”.