Iniciação
Olhos firmes no chão. Cada passo contando uma ruminação das coisas de sua mente perturbada. Capim, pé de boa-noite, formigueiro... Se sentou e limpou o sangue de suas mãos. A pele dos punhos descascadas, da boa sova que deu naquele moleque. Quase sua idade. Mas por que aquilo? Aquela raiva toda querendo explodir e descontar no primeiro brocoió que encontrasse. Tinha cara de brocoió. Lembrou do pai batendo em sua mãe. E lembrou da mãe matando o pai. Fugiu e deixou ela lá com aquela culpa toda. Ele gostava do pai.
O pé de amêndoa que se recostara tava carregado. Mas ficou só lá pensando nas coisas. Naquele mato todo ao seu redor. Na liberdade de moleque do mato que agora era. Fechou os olhos e percebeu um cheiro ruim. Tava cheio de carochas. Aquele cascudo fedorento, que adora um pé de amêndoa. Sacudiu do corpo, quando notou uma risada: “Hum! Hum! Hum! Hum!” Olhou por trás da arvore e viu um velho negro de chapéu de palha mascando tabaco. “Que é que cê ta rindo aí?” O homem se dignou a continuar a mascar, e a olhar pro menino, como se esse fosse o ser mais ignorante do mundo. O homem se levantou, deu meia volta e desapareceu numa moita. O menino caminhou cauteloso até o lugar do velho. Atravessou a moita e continuou caminhando. Vislumbrou uma vila antiga. As casas todas feitas de palha e pau a pique. Tinha muitos negros e índios. Um medo repentino tomou seu corpo. Mas não era menino de medo besta. Foi até o velho que estava sentado em um tronco de arvore, com duas moças próximas a ele.
- Diga, caboquinho. Hoje é seu dia de sorte. Quer se tornar lenda da mata? – Inquiriu o velho.
- Hein? Lenda do quê? – Parecia aquelas troças de adulto. Aquelas que gostavam de rebaixar os outros. Olhou desconfiado, mas mesmo assim suava frio. Como se o que ele dissesse fosse sério.
- Qual seu nome?
- Romão. Romãozinho. – E olhou ao redor. Estavam todos olhando pra ele. Índios com flecha, índias com cabelos tão longos e belos como a noite; capoeiristas, negros e negras vestidos de branco. Uma mesa cheia de frutas e pratos saborosos.
- Aqui, vossuncê começa, Romãozinho. Aqui, vossuncê termina. – Esfregou as duas mãos, gritou uns sons estranhos, abriu a boca e saiu uma fumaça negra e densa. Foi envolvendo o menino. Foi envolvendo tudo ao redor, até que de trevas foi o que restou.
Romãozinho se viu em cima de uma arvore. Não soube como veio parar lá em cima. Era uma arvore alta e robusta. Desceu com um salto só, e aterrissou simplesmente em pé! Aquele velho feiticeiro fez alguma coisa com ele. Olhou para as mãos, pros pés. Parecia normal. Olhou para frente e sorriu. Seu sorriso maligno já bem habituado. Iria aprontar e muito.
No povoado de Laginha era dia de festejos. Romãozinho não era visto por ninguém. Estava invisível. Foi quando tentou tocar o ombro de um menino. Este ficou parado como uma estátua. E reparando em um homem vendendo laranjas, a intenção do menino se tornou a de Romãozinho. Foi lá e derrubou o cesto, chutou as laranjas e quebrou os jarros. O menino foi pego e levou uma baita surra. Romãozinho se acabava de dar risada. Tentou fazer o mesmo com adultos, mas não conseguiu. Só conseguia com crianças. E era uma arruinação que não se acabava. Vasos quebrados, janelas destruídas, brigas e dentes quebrados, crueldade com animais. E o melhor de tudo era que quem apanhava eram os outros, não ele. Era a melhor parte. Bastava a força do pensamento e as crianças criavam o caos a seu redor.
Romãozinho foi se divertindo com sua arte com o passar do tempo: em feriados, dias santos, feira livre, festejos e etc. E ia sempre transitando dos pequenos povoados e cidades que atazanava, à vila oculta nas moitas. Foi em um desses momentos de visita, que chegando encontrou o velho muito desgostoso, fumando seu cachimbo.
- Qué que cê tem, que ta com essa carona aí? – Perguntou o menino dando risada e comendo um pedaço de frango que estava na mesa. O velho olhou para ele lentamente:
- Ô, meu amiguinho. Que você apronte, eu não ligo não. Você ta livre. Eu escolhi você justamente pra isso.
- Então, que é?
- Cê mexeu com quem não devia.
Atrás do menino, duas crianças gêmeas, vestidas à moda de D. Pedro I, exatamente iguais! Seguraram Romãozinho pelos braços e o puxaram para longe. Romãozinho gritava e esperneava, mas a força dos dois meninos gêmeos era sobre humana. E não faziam o menor esforço para arrastá-lo.
- Aqui, vossuncê termina. – Sentenciou o velho.