AMANHECER NAS TREVAS - PARTE 3
Percebeu que o tempo passava, devagar, mas a sombra das matas agora o permitira ver o sol, com um intenso azul; agora, no entanto, um clarão avermelhado com grossas nuvens acima de sua cabeça.
Percebia que o tempo, esse recurso escasso, desvanecia, escorria por suas mãos, fazendo cócegas entre os vãos de seus dedos, mantendo apenas farpas escuras sob suas unhas.
Aquela era perfeitamente a sensação do esvair das horas, perante a morte, pelo menos, imagino eu. Afinal, a terra, a lama entre as unhas, nas cutículas, sob a pele, irrita, coça e faz lembrar do trabalho, do suor, talvez lágrimas, tudo o que faz cansar, deixar para trás o sangue.
Quanta reflexão ante a morte pensava. Em sua cabeça seguia uma torrente de pensamentos e ideias, desvaneciam, desmanchavam, chegavam e partiam, convidadas inesperadas e indesejadas.
Não mais sentia medo; os barulhos e sobras não mais perseguiam. Não mais pareceria necessário pular, nem retroceder, esperando uma decisão entre o ruim e o péssimo, não mais precisaria lutar entre a mente o corpo, entre duas mortes certas.
Agora, o que sentia era a calma; sim, agora posso respirar. Seu coração, apesar de ainda turvo entre a adrenalina e o sangue quente, acalmava-se, acomodava-se.
Ali começou a lembrar-se, pequenas visões passavam-lhe pela mente.
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Nome? Hm... Não, ainda não. Antes, flashes da infância.
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Um nome? Alguém? Talvez, pode até ser... Uma criança e uma mulher. Em algum lugar.
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Algo mais?
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Estranho, disse consigo. Imagens da infância. Uma bola, um quintal. A época em que achava que o mundo acabava no muro de concreto.
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Será que crescera tanto desde aquele tempo? Será que não deixara de ser uma criança fugindo? E de que fugia? Foge-se do medo, do pavor, do desconhecido. Não se enfrenta o que não se conhece.
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O maior medo é o da derrota. Certeza absoluta.
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Ali, acomodado, parado, longe do perigo e das coisas de um mundo esquecido, começou a sentir-se vivo. Teve fome, sentia o suor seco, nas vestes das roupas. Sede e dor de cabeça, nas juntas. Os flashbacks misturavam-se, cenas de uma vida combinadas com sentimentos.
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Arrependimentos. Egoísmos. As perseguições que causara, que sofrera. Rostos que o espionavam no escuro, através do berço, na soleira da porta. Corria, disparava, nunca encontrava a liberdade. Refugiara-se na fase adulta, num casulo de ilusões e promessas de uma vida brilhante.
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Sentou-se aos pés de uma árvore, ao olhar deu de cara com um bosque de pequenas árvores, mais esparsas, onde podia caminhar.
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Olhando para cima, observava aves ao longe, no alto. Pareciam corvos, urubus, águias. Pensou por um momento que sabiam o que aconteceria. Ora, comida! Há, sinto muito meus amigos, ainda estou vivo, vocês se lascaram!
Fazia esforço para relembrar, para chegar às respostas que buscava, mas não conseguia; tudo lhe parecia alheio, suas ideias e sensações voavam para longe, como as aves sobre sua cabeça.
Quem sabe as coisas que estou pensando estão ali, como estes corvos, sim, quem sabe se meus pensamentos não são como estes urubus, furtivos, o cérebro tentando me pregar uma peça?
Dizem que descobrimos como somos quando estamos em desespero, em medo, com o coração na mão, quando somos perseguidos e estamos feridos.
Pensou nos pássaros, ali, livres e soltos, indo a qualquer lugar, sem precisar de um passado, de um pretérito, de um caminho cheio de mapas, nada além da luz da lua e do sol e as estrelas.
Ah, os homens, os homens... Nada sábios, apenas bufões. Nada inteligentes, apenas malandros. O Homo Sapiens, Homo Nada Sapiens!
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A madureza. A vileza. Os dias lentos, o tédio, o medo, a vontade de cruzar o oceano em busca de terras que nos prometemos.
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Nada vi que não pudesse ser chamado de real. Não, nada além do dia de hoje, do momento, do segundo, a fração, a hora em que tudo muda. Despe-se de orgulho e vaidade. Nada vi que não pudesse ser chamado de real, porque esta vida é um sonho, e quando tudo se vai, sobramos nós.
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Tão poderoso, capaz de construir casas, prédios, aviões, viajar para terras distantes, armazenar imensas informações em seus cadernos e laptops, e, no entanto nada pode fazer sozinho; tão capaz de destruir a natureza, porque não pode viver com ela.
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Eis o poema da sabedoria
Plana como ave
Como falsa deusa
Cegando sem dar direção
Qual homem é sábio?
Qual história tem final feliz?
Será necessário dizer
O que os outros já sabem?
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Qual a diferença entre ser sábio e ser tolo? A experiência? O conhecimento? A inteligência? Talvez não seja tão fácil; há sábios que parecem crianças, moram em tendas, retiram-se para o final dos mundos, escondem-se nos rochedos. Há os que entendem das ciências, das artes, porém traem, roubam, estupram, matam a si mesmos com álcool e drogas, aos com suas armas e bombas.
Pensou que talvez pudesse haver uma sabedoria antiga, primitiva, ancestral, vinda do passado, dos seres antigos, esquecida pelos nossos nestes dias.
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Somos loucos
Bufões presos em gaiolas
A sanidade é relativa
Dura até apertarmos os calos
Até a chegada da dor
Da fome e do desespero
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Sim... A necessidade. Qualquer coisa cai em frente a isso. O dinheiro, o ouro, o carro zero, o desejo de ser visto, já percebeu quantas grandes crianças de vinte e trinta e sabe se lá quantos anos andam por aí por causa destas coisas?
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Somos inteligentes
Mas antes somos humanos
Somos sensatos
Até as feras nos perseguirem.
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Precisara, pois, despir-se. Entregar-se, de corpo e alma. Lançar-se àquele mundo selvagem que nada lhe era familiar, sendo, no entanto, seu novo território, a única coisa que conhecia, a cujas regras buscava adaptar-se, para que pudesse sobreviver.