AMANHECER NAS TREVAS - PARTE 2

Pensou, estou a salvo. Porém, como estar seguro, aqui, longe de tudo, onde nem as memórias podem chegar?

Um lugar sem memórias, sem imagens, nomes, referências. É aqui que, por vezes, queremos ficar. É aqui que, por vezes, buscamos refúgio. Um lugar confortável e gostoso, onde os pecados, as falhas, os medos não possam nos atingir.

Vendo as águas abaixo de si, caindo da catarata, partindo-se sobre as pedras, espumando o céu abaixo de seus pés... Não é muito alto, dá pra pular!

Para trás, bem, os urros, os rugidos e o respirar pesado, menos presentes, mais e mais distantes, o hálito da quimera maligna parecia mais longe. No entanto presentes; as feras sempre se escondem, querem nos pegar desprevenidos, disse a si mesmo em pensamentos contraditórios que borbulhavam após a adrenalina da fuga desvairada anterior.

No entanto sabia que as águas também poderiam esconder seus segredos, suas hidras, pequenas garras prontas para segurar-lhe e devorarem pouco a pouco – sendo a partir das memórias, das dores ou das cãibras e cansaços.

Sabia nadar? Pouca recordação, até aqui, até agora. Como se jogar de cabeça, dar um salto no escuro, como se aventurar numa queda se não se lembrava dos primeiros mergulhos, das primeiras piscinas, do primeiro porre e queda numa festa a beira mar?

Foi então. Naquele momento. Não teve certeza; apenas suspeitou. Ao longe, entre as águas, os detritos e juncos, a grama alta. Um crocodilo! Boiava, ali, por perto, aparência de tronco seco, as crostas duras, para fora.

Droga! E agora? O rosto se dilata, devagar, em descrença. A esperança cedendo lugar à dúvida, devorando a força de vontade, logo o medo e desespero. As mãos tapando o rosto, na altura da testa.

Não, não era possível, um crocodilo? Bem agora? Não; um engano, uma peça da minha mente. Não passou de um susto tolo, olhe de novo. Nada além de um tronco de árvore ali, no rio. Sim, uma árvore antiga, derrubada e caída no leito, boiando com o tempo, madeira morta pendurada, nada que passasse de liquens, musgos e cipós.

Olhos? Não, apenas seixos d’água, coloridos, refletindo o sol. Focinhos? Não, nada que assustasse, bastava observar e ali havia somente furos numa velha canoa que pequenos animais e plantas haviam improvisado, tudo uma peça do bioma a minha volta, ecossistema de enganos e pequenas brincadeiras, peça de desgostos para testar a humildade dos seres externos.

Ótimo, tudo ok? Beleza, agora é só pular. Grandes felinos, em meu encalço, pensou, esse é um motivo suficiente para continuar nervoso. Só um salto. Só... Um... Salto... S...A...L...T...O...

Faltou coragem? Faltou um impulso, um desejo, faltou alguma coisa? Talvez, uma nova olhada... Afinal, o perigo nunca parece o perigo. O monstro, o animal, a fera. Nunca disfarçam seu rosto, nunca se revelam até a hora fatal. Até o bote.

Ótimo, um leão atrás de mim, um crocodilo à frente. Legal, escamas e jubas. Antes pular logo e quebrar o pescoço, pelo menos não há dor. Que saco, é só um tronco... Mas aquele mas, aquele ou, aquela imagem a nos perseguir...

O perigo mora na dúvida, passou pela sua cabeça. As perguntas, as falhas, as coisas que queremos saber, caminhos à frente. Estradas bloqueadas ou livres? Um barranco caído no meio do caminho, nenhum aviso, nenhuma história. Uma placa faltante. Como evitar um acidente?

Há aquele momento em que todos nós, homens, mulheres, crianças, nos vemos na beira do abismo, no barco da cachoeira, por vezes sem remos. A falha, a pergunta. A estrada se bifurca, há dois caminhos, um à esquerda, outro à direita. Isso, quando não há três, quatro, cem, mil caminhos. Um círculo nada mais é que uma linha entre inúmeros pontos, saindo de uma reta, em todas as direções. Quantas linhas juntas formam um círculo vicioso?

Há situações em que a incerteza nos faz pensar, afinal somos incertos, não somos exatos, e sim errados e errantes, o erro é o que nos faz viver, pensamos que amanhã tudo poderá ser melhor.

Há imagens que podem se passar sobre o passado, sobre nossas falhas, nossos pecados secretos, tudo o que já havíamos deixado para trás.

Há um porém, um mas, um senão, um entanto. O grande problema do porvir, do futuro, da mudança, da decisão. É uma frase. É uma ideia, uma afirmação. Ela depende do futuro, reverbera na mente como um rugido, um olhar furtivo e furioso no escuro do coração. “PODERIA TER SIDO”.

Quantos jacarés, crocodilos, gaviais se escondem, debaixo das águas, lá no leito? Dentes afiados, perto de nós, ali na hora de se matar a sede, bem no momento mais perigoso, piscar de olhos cruel e desleal.

Pior do que o “SERÁ?”. Terrível além do “SE EU SOUBESSE”. Qual é a coisa que mais destrói, o leão ou o crocodilo? Qual é o mais faminto, o mais misericordioso. Deixar de lado o medo ou se jogar direto no escuro.

Lá, onde há cantos, arestas, onde há as frestas no forro do teto, no chão, nas nossas belas casas onde a mobília dourada e as virtudes brilhantes não nos deixam ver as teias de aranha, os cadáveres de insetos, as pequenas larvas que se multiplicam, criaturas novas prontas para nos atacar à noite, no escuro.

O fato é que o risco, o arrisco, nem sempre é desastre, nem sempre é mal, pode vir para o bem, o teste final para o que queremos.

Lá é onde estão as dúvidas, nas falhas, nas frestas. As perguntas, que bloqueiam nossas ideias, precisamos de uma luz e, então, só o que encontramos as trevas.

Porque um monstro despertou em nós, e então começamos a fugir, em direção a um fundo que pode ser a salvação ou a falsidade, levar-nos à boca de um perigo real e faminto, destruindo-nos, vingança de um passado faminto que insiste em nos perseguir.

Pois eis, pensou, não há nada pior que a verdadeira fera, a derradeira selva, a verdadeiro organismo mau que assola as nossas vidas, seja nos pântanos da nossa mente, seja no inconsciente, seja no espaço e através do tempo: a incerteza e o desconhecido, aquilo que nos leva a acreditar e ser como esses monstros, devoradores de almas e decepcionadores, falsos e mentirosos, o medo ancestral do nosso próprio pecado que clama do fim do túnel, o verdadeiro zumbi, o pescoço do dinossauro sobre a água, a barbatana do tubarão a despontar no nosso aquário medíocre de falsidades paradas.

A mudança, a chance de reescrever a história. O grito de protesto, eu não vou morrer aqui. Se ao menos eu pudesse enxergar melhor, chegar mais perto. Para trás, o orgulho, a fera maligna e ferida, pronta para nos destruir. À frente, uma nova chance, sem a certeza. Este é o momento: o que não se pode é ficar aqui.