AMANHECER NAS TREVAS - PARTE 1

Quem conhece o fim? O que emergiu pode afundar, e o que afundou pode imergir.

H. P. Lovecraft

Acordando. Despertando. Ah... A cabeça. Doendo. Virando, a mão direita na cabeça. Uma careta. De dor.

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Nossa... Onde estou?

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Aqui... Que lugar é este?

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Escuro, folhas, terra, pedras. A mão numa raiz. Uma árvore. Alta. Grande, forte, parece não ter fim.

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Hm... Ai... Droga, que coisa. De pé. Vai, levanta. Levanta! Preguiçoso!

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Perguntas. As mãos a esfregar os olhos. Palmas fechadas. Bocejo. Sono? Muitas perguntas. Onde? Quando? Como? O quê? Quem, quem é você, quem sou eu?

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Perdido estava, na selva, longe de tudo e de todos, tal como os homens que, desde longas datas buscam encontrar-se em si mesmos. Corria entre grandes árvores e cipós, sem saber exatamente seu caminho ou lugar, apenas pisava e pisava, os pés tocando folhas e gravetos mortos.

Por vezes machucava-se, contra uma pedra ou um ninho de cupins, logo notava as roupas puídas e cheias de pequenos cortes.

A luz do sol era barrada pelas copas, não havia céu. Podia tanto ser meio dia, amanhecer ou crepúsculo; não, ali não existia o tempo, apenas um ser lutando, fugindo, perdendo-se na vastidão do verde escuro que se estendia além dos horizontes e de todas as visões.

Temia o barulho das feras selvagens. Em especial, as garras assustadoras nos troncos. De repente começou a diminuir sua marcha. Ali estava um grande tronco, milenar, vários e vários anos de idade, tanto quanto podem crescer nas florestas sem a interferência de mãos e olhares humanos. Sim, a floresta, a mata, o ermo, onde a natureza, essa mãe ancestral, tem sua própria dimensão, suas próprias regras, cosmos internos e externos onde o tempo não importa, o espaço não existe, apenas um universo próprio onde todas as coisas coexistem enquanto lutam para sobreviver.

Aqui não há espaço para eternizar-se, pensou. Que absurdo! Tanta coisa para pensar, os braços cortados, a mente confusa, nenhuma lembrança. Para trás uma vida de sonhos e desejos, os reinados dos homens e sua sabedoria, os tesouros que fluem nos rios de asfalto e os arranha-céus, onde humanos moradores das nuvens nunca descem de seus sonhos. Sim, vivem sem acordar. Não, aqui não há espaço para viver para sempre, apenas para sobreviver.

O rugido de uma fera. Um monstro, um animal. Um olhar aterrorizado para trás. A respiração, densa, ofegante. Um animal monstruoso, pensou. Estendeu os braços a sua frente, as mãos abertas, com os dedos para cima. Pare, pensava, provavelmente. Fique aqui. Para quem eram tais pensamentos, para a fera ou para si mesmo?

Passam-se momentos de silêncio. Sepulcral. A mata densa é uma sepultura, fria e úmida, onde não se ouve nenhum som. Nunca antes morte e vida estiveram tão perto, irmãs que se encontram no final da curva de todas as nossas estradas.

Sua mente voltou-se à imensa árvore. Ali havia quatro imensas marcas de garras. As feridas no tronco estavam vermelhas. Rubras, sangue escarlate as manchava. Pé ante pé, prosseguiu, evitando qualquer ruído. Tocou o tronco com a mão esquerda, seguida da direita.

Uma gota vermelha em seu ombro, um olhar para a copa. Pedaços de um animal despedaçado. A mão logo é levada à boca, oh, minha... Não é possível se conter; um jorro de vômito, antecedido por uma cãibra de fome e seguido de um curvar violento sobre o chão.

Não pode ser! Deve ser uma onça, um jaguar, um lince... Estou perdido! De repente, o homem, a fera das feras, o alfa da natureza, aquele que constrói prédios, viaja aos cantos mais remotos do Universo, observa os mais minúsculos seres com suas lentes de aumento, sitiado por um ser tão simplório como um gato gigante.

A altivez e a arrogância da espécie, rebaixadas e subjugadas. Sem armas, sem faca, sem fogo, quanto mais e mais tralhas tecnológicas, mais e mais perdido, oh, pobre homem, símbolo de progresso e da vitória, agora aterrorizado pelas vítimas de seu progresso e destruições. Qual, agora, é a grande fera?

Farfalhar nas árvores, ao longe, a silhueta de um leão. Entre os arbustos, a inconfundível visão de uma majestosa juba, prepotente e poderosa. Aqui, eu sou o rei. Eu sou o sol. Tudo me obedece. Uma breve troca de olhares, um de medo, outro de ira. A cólera do monarca, o desespero do súdito, um leve som gutural de ambas as gargantas.

Seguiu-se uma furiosa e alucinada corrida pela sobrevivência, homem e animal, selvagem e civilizado, não se sabendo, ao certo, quem era quem. Nas selvas, entre os cipós, há, como se pode imaginar, uma civilização própria, um novo conjunto de regras, novos esquemas inimagináveis, nos quais há muito tempo o Homo Sapiens deixou de fazer parte.

De repente, ali, tal espécie deixava de ser a mais evoluída, a mais inteligente, poderosa e capaz. De repente, todo o avanço retrocedeu devagar no tempo, a busca pela sobrevivência recomeçou, as leis passam a ser a observação, os sentidos primários e a luta sem trégua para permanecer neste mundo. Sim, um mundo dentro de um mundo, átomos dentro de moléculas, a lei do mais fraco, teríamos mesmo abandonado nossas cavernas ou apenas as tornamos mais modernas?

A imponência da fera nos leva para mais e mais longe, para seu domínio, ao qual tentamos escapar alucinadamente, pesadelo sem fim enquanto os rosnados ancestrais nos perseguem.

Sim, a passagem alucinada da vida pela nossa frente, pelos nossos olhos, inclusive daquele que não se recorda de seu passado, apenas sabe que poderia ter sido diferente, apenas quer escapar para viver, convencendo-se de que a existência vai muito além de se enclausurar atrás de mesas de madeira morta, cercado de maletas cheias de fortunas, do brilho reluzente de umas poucas moedas de ouro.

Caramba, se eu escapar, eu vou... Sim, isso eu... Ah, não, mas isso eu sei que... Ah! As doces promessas que se faz ao fugir de um momento amargo!

Tantos rugidos de doenças, de vinganças, frustrações, feras leoninas que não cedem em nosso encalço, apetites vorazes de monstros selvagens, que saem por baixo de nossos tapetes nos sonhos, nas conversas informais, na selva de nossas vidas.

Talvez haja. Sim! Talvez haja uma verdade eterna, uma consciência, algo qualquer que a selva desperte na mente humana, sim, essa verdade é o perigo. Não, o Perigo, com letra maiúscula, ele é um ser, uma criatura viva e pulsante, habitante dos corações dos homens e dos pesadelos.

Quem pode sobreviver a avanços e mais avanços, quem é capaz de fugir das garras do rei das selvas, do alfa, aquele que preda todas as coisas, orgulhoso, majestoso.

Pode-se imaginar pior sonho do que ser devorado por um monstro? Sim, o it pulsante e vivo, a carne e os ossos sendo triturados, o cheiro acre da própria pele, sendo mastigada e roída.

Preferia, pois a morte. Sim... Mas que ideia! Morrer é morrer, ser devorado por uma criatura feroz e inumana, não seria o mesmo que agonizar por um câncer? Ou num violento acidente, entre os escombros?

A verdade é uma só: o Perigo é mais assustador, mais sombrio, mais voraz. Ele não está na certeza da morte, todos já atemos, ele não está na metrópole que habitamos, e sim no olho duro do assassino, na voz embargada do viciado. O Perigo mora na selva, atrás do escuro. Reside nas sombras atrás da porta do quarto. Embaixo da cama. Vem à tona em cada sussurro leve quando apagamos as luzes. O Perigo não é o Medo; antes ele é aquele fogo que consome a esperança e acende a chama do desespero. Fuja.

Os mais ferozes predadores, sim, os mais belos, os mais poderosos, sombrios e destruidores. Quem é capaz de suportar a longa marcha da fuga? Quem é capaz de sujeitar-se a encarar seus imensos dentes, mesmo que suas pernas não aguentem parar de correr? Fuja.

Então, foge, dispara, sabendo que a causa é perdida, não posso gritar por socorro, ninguém há de ouvir, porque este é um lugar esquecido, entre o pensamento e o infinito, as regras aqui são outras, não há tempo para aprender a jogar.

As pernas devagar vão se cansando, a sola dos pés deixa marcas para trás, rubro sangue de uma corrida desigual.

E se o impossível acontecer? E se for possível fugir, arrependendo-me. E se no final da trilha houver um espaço livre, um pequeno vão em que haja uma clareira, um lugar claro para pensar, para olhar para trás? Posso ir até lá, pensa-se. Só mais um pouco... Mais... Mais... Ah, não... Dores, cãibra, fome, o peito não mais respira.

Há porém na distância uma pedra. E de repente, um milagre, a fera maligna, tão bela quanto horrenda, cessa a corrida, contém-se. Miados e urros, no entanto, ainda se põem por perto. Sim, parece não haver jeito, é preciso retroceder e dar espaço, à frente há apenas um precipício, o inseguro, onde se vê um rio gigante, embora próximo, tão longe e inacessível, onde há um espelho onde se reflete o nosso pior inimigo: o nosso rosto.